Recomendações de São Valentim para o Dia dos Namorados

Como todos os nossos leitores por esta altura já se aperceberam, não somos dados a assinalar efemérides nem propriamente, em regra, marcar aniversários, cívicos ou outros, seja do que for. No entanto, em relação ao Dia de São Valentim, ou seja, o Dia dos Namorados, de 2024, decidimos abrir uma excepção, exclusivamente em virtude de termos encontrado realmente algo interessante para dizer e mostrar (ou, pelo menos, algo não demasiado cliché). Podendo nós começar com a recomendação de leitura do delicioso poema alegórico de Geoffrey Chaucer, O Parlamento das Aves [Parlement of Foules], do final do século XIV, achamos que esta pequena mostra cultural ficaria logo demasiado sublime, por isso optámos, ao invés, por abrir recomendando um poema de W. H. Auden (1907-1973) – amigo e parceiro sexual intermitente do igualmente irreverente e interessante Christopher Isherwood, além de ex-aluno de J. R. R. Tolkien em Oxford nos anos 20 -, o perversamente delicioso e sublimemente pessimista (quanto ao amor) ‘As I Walked Out One Evening’, de 1937, em que, face aos êxtases contemplativos de um apaixonado e às suas apóstrofes à eternidade do amor que sente, sardonicamente lembra a inelutável finitude do amor terrestre em função da igualmente inexorável força do tempo, isto é, dos relógios. Podia perfeitamente tratar-se de uma paráfrase ateia da famosa frase bíblica atribuída ao sábio Rei Salomão: vanitas vanitatem, et omnia vanitas, ‘vaidade das vaidades, e tudo é vaidade’. Neste sentido, aliás, tem algo em comum com a mais famosa paráfrase do Salmo 136 constante da literatura portuguesa, a saber, a redondilha magistral ‘Sôbolos rios que vão’, de Luís de Camões. É excelente tanto pelo carácter deflacionário quanto à constância dos sentimentos humanos, de que realmente não devíamos precisar de ser relembrados, pelo controlo da rima, pelo carácter simultaneamente austero e sumamente expressivo da linguagem, pelo pícaro da situação e pela mordacidade levemente deprimida da ironia. Ora leiam, ou ouçam, recitado pelo próprio autor, cremos, numa fase já avançada da vida.

Não menos condizente, de alguma forma, com o espírito do poema de Auden, podíamos indicar, por exemplo, o filme Christopher and His Kind (2011), de Geoffrey Sax, baseado na autobiografia do mesmo nome do amigo de Oxford e amante de Auden, o escritor Christopher Isherwood, no qual relata, com doses idênticas de satisfação, tristeza, hedonismo, romantismo e nostalgia, as suas aventuras eróticas, artísticas, sociais e políticas na Berlim do final dos anos 20 e inícios dos anos 30, até à tomada do poder por Adolf Hitler durante o ano de 1932. No entanto, preferimos ‘citar’ um excerto do primeiro filme da trilogia de Richard Linklater, Before Sunrise (1995), em que, a certo ponto, o personagem interpretado por Ethan Hawke (nos tempos em que Hawke era um jovem ator absolutamente recomendável em termos artísticos), tendo precisamente a sua amada mais ou menos ‘nos braços’, cita um verso do poema acima recomendado, ‘the years shall run like rabbits’. A citação é interessante porque, naquele momento, o personagem se encontra numa situação idêntica à do amante anónimo do poema de Auden, tendo encontrado o presumível amor da sua vida no dia anterior, feito amor (duas vezes, viríamos a descobrir no segundo filme, literalmente nove anos depois) com a mesma (interpretada algo magistralmente por Julie Delpy), e estando indubitavelmente também ele convencido, para citar de novo o poema de Auden, de que ‘love has no ending’. Percebemos em 2004 que tanto o personagem de Auden como o de Linklater se vêem desenganados impiedosamente desta feliz superstição, de certo modo por obra do mesmo agente, o inexorável Tempo, isto é, pelos relógios falantes de poema de Auden. No entanto, e porque as alusões de Linklater a ‘As I Walked Out One Evening’ não acabam aqui, escolhemos como aperitivo visual precisamente as cenas finais do dito filme, em que é feita uma nova referência implícita a Auden (a qual, estamos certos, não fomos os primeiros a notar). A estrofe final do poema é:

It was late, late in the evening,
The lovers they were gone;
The clocks had ceased their chiming,
And the deep river ran on.

Que no filme a cena se passe de manhã bem cedo e não ao entardecer não tem de causar grande dificuldade ao reconhecimento da alusão: é, de qualquer modo, tarde para os amantes no dia da sua paixão, em virtude da escassez do Sr. Tempo. Como se vê nestas vinhetas do filme de Linklater, ‘os amantes partiram’, os relógios que tanto os apressaram e ameaçaram estão de novo calados porque vitoriosos, e os lugares por onde passaram os amantes ao longo da sua noite de romantismo onírico estão tal como estavam antes da sua passagem e, em virtude da mesma, sentem-se assinalavelmente mais vazios, ecoando uma certa morbidez de pensar que os sítios onde fomos mais felizes são sítios que, para muitas outras pessoas apenas representam o seu atalho através do parque, ou as traseiras de sua casa, ou outra qualquer coisa prosaica e que, tal como o rio de Heraclito, ou dito de outra forma, o rio do espaço no tempo, continuam lá, seguindo o curso temporal próprio da sua existência, independentemente do nosso desaparecimento e do das pessoas com quem lá fomos felizes. Por fim, a vista majestosa do Danúbio na cidade de Strauss apenas reitera visualmente isso mesmo, e o dictum heraclitiano que prenuncia que nunca mais poderão atravessar o mesmo rio, ou a mesma Viena, outra vez; o que, aliás, é tornado explícito no segundo filme pois, quando, finalmente se reencontram, é em Paris, e não na Viena assombrada pela noite de quase uma década antes, que tal reencontro se dá – ou seja, atravessando um outro rio. Ora espreitem e, se possível, vejam ou revejam o filme todo.

A próxima sugestão cultural de São Valentim que vos oferecemos é a muito mais optimista (ainda que também algo nostálgica, como quase tudo o que o autor compôs) peça lírica de Edvard Grieg, ‘Wedding Day at Troldhaugen’ (Livro VIII, Op. 65, nº 4), composta em 1896 e tendo como inspiração as reminiscências de Grieg e de sua mulher, Nina, sobre a celebração das bodas de prata de ambos em 1892, aqui tocada pelo extraordinário pianista russo Nikolai Lugansky, o qual um dos membros da nossa equipa teve o enorme prazer (algo delirante) de ouvir tocar no Palácio da Vila de Sintra em 2008, quando o dito anónimo era miúdo e Lugansky era consideravelmente mais jovem, ainda mais atraente de aparência e igualmente brilhante, tendo tocado, a par da sonata sombria de Janáček, uns Estudos de Execução Transcendental de Liszt como o nosso informador nos afiança nunca ter ouvido nem antes nem depois, incluindo a famosa ‘Campanella’, uma peça que requer tanto uma delicadeza extrema como um notável virtuosismo. A peça de Grieg ilustra bem, no fundo, um lado do amor completamente desconhecido do poema de Auden, mas que de alguma forma se reflete em Before Sunrise como um futuro (im)possível cujos seus personagens almejariam um dia poder contemplar retrospectivamente também – e que, com base nas evidências do terceiro (e pior) filme da série, não há grandes garantias de que lhes tenha sido concedido.

O poema a que o fantástico grupo coral inglês The King’s Singers dá voz no vídeo abaixo, ‘The Rose’, de Amanda McBroom, começa de uma forma algo previsível, com o topos das ‘definições do amor’, ou seja, ‘o que eles dizem que é o amor’, num tom algo reminiscente do sobejamente famoso soneto de Camões, ‘Amor é fogo que arde sem se ver’. Mas tal como no caso do soneto de Camões, aqui o clichê começa a dar lugar a uma meditação muito mais interessante à medida que o poema avança. As terceira e quarta estrofes são algo memoráveis, mas são as últimas duas que realmente atingem um equilíbrio de mestre entre a profundidade da emoção, a importância da ‘mensagem’ e o controle da linguagem que as exprime, realçado nesta interpretação pelo modo como é cantado pelos seis membros do grupo:

When the night has been too lonely
And the road has been too long
And you think that love is only
For the lucky and the strong

Just remember in the winter
Far beneath the bitter snows
Life’s the seed, that with the sun’s love
In the spring becomes the rose

No meio do Inverno geral que frequentemente o mundo é (ou que o fazemos ser), a ideia de que a semente da rosa do amor possa desabrochar, por efeito do ‘amor do sol’ uma vez derretidas as neves e chegada a Primavera, é uma mensagem sobejamente poderosa, quanto mais não seja porque nos relembra que o inverno que vivemos é uma estação da qual frequentemente somos nós mesmos o fenómeno meteorológico causador e, precisamente, em virtude disso nos convertemos na semente soterrada que aguarda a agência exterior do sol, figura do amante, que através do amor nos resgate de novo para o território silvestre da Primavera da vida. Uma ideia que tem tanto de humano como de metafísico, e sobretudo de religioso-teológico, como bem compreenderam os místicos e ascetas, nomeadamente no cristianismo, mas não só.

Finalmente, a canção ‘Dance Me To The End of Love’, do extraordinário Leonard Cohen, reitera o ponto fundamental de ‘The Rose’, mas concretizando-o e expandindo-o nos pedidos de um amante de que, no fundo, o ensinem a amar e a viver o amor, e cujo refrão se poderia parafrasear como ‘amemo-nos até a morte’, ou seja, que o professor, ou presumivelmente, no caso de Cohen, a professora, não abandone o aluno a meio do ‘ano letivo’ da vida, isto é, nas palavras de Cohen, ‘til I’m gathered safely in, noutras palavras, ‘até eu estar entregue [em casa]’. Isto é, no fundo, o que todo o aluno, como todo o amante, ou todo o filho(a), deseja e pede, aos professores, aos que o amam, ou a Deus, pois viver é ter de enfrentar ‘o pânico’, para citar de novo a canção, tarefa em que acompanhamento não deixa nunca de ser essencial. Qualquer filósofo platónico ou neo-platónico reconheceria aqui uma intuição fundamental, a saber, a de que o amor humano é, para cada alma, o fio de Ariadne que lhe permite encontrar o caminho de regresso a casa, seja esta a casa terrestre ou, mais ‘platonicamente’, a fons amoris, isto é, a Divindade da qual procedemos e à qual retornaremos. O que, bem vistas as coisas, é um pensamento, independentemente da verdade que possa exprimir, também inegavelmente sublime e encorajador quando perdidos na peregrinação da vida.