Rei Édipo: do Texto Clássico ao Questionamento Pós-Moderno

Uma leitura não necessariamente freudiana da peça de Sófocles atendendo à transformação da psique do herói de ontem na mente de hoje. Texto de Ricardo Boléo. Licenciado em Estudos Artísticos pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mestre em Teatro pela Escola Superior de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa. Imagem: A depiction of Oedipus and the sphinx, taken from an Attic kylix produced by an artist known to modern scholars as ‘Painter of Oedipus’.

A tragédia Rei Édipo foi escrita por Sófocles por volta de 427 a. C. e considerada por Aristóteles o exemplo mais perfeito de tragédia, sendo uma das poucas que aplica meticulosamente a lei das três unidades, como veremos – cânone inviolável para os dramaturgos franceses do século XVII. Muitos pensadores e teóricos escreveram e apontaram as suas leituras sobre a tragédia de Sófocles, porém depois do século XX, escrever seja o que for acerca da tragédia Rei Édipo de Sófocles sem se falar de Sigmund Freud tornou-se algo quase incontornável depois de este ter revolucionou, através da psicanálise, o entendimento da psique humana, abordando questões do consciente e principalmente do inconsciente. Munido de leituras diversas e de teorias novas e revolucionárias na matéria, Freud ao ler Rei Édipo formulou a partir deste uma teoria a que deu o nome de Complexo de Édipo, definindo-a como a fase em que a criança atinge o período sexual fálico e se dá conta da diferença de sexos tendendo a fixar a sua atenção libidinosa nas pessoas do sexo oposto dentro do seio familiar. Além do incesto, na definição do mesmo complexo o neurologista austríaco afirma também que é através dele que surge o aparecimento de toda a obra de arte.

Paralelamente a esta leitura de Freud ao Rei Édipo há muitas outras que serão possíveis pela qualidade literária desta tragédia. Sendo assim, creio ser exequível abordar-se o tema tendo como foco para a leitura e análise o período histórico em que o texto foi escrito. Isto porque uma das hipóteses de leitura para a Grécia daquele tempo assenta na possibilidade de que esta se inseria no período de transição em que o pensamento mítico se encontrava já deslocado e o pensamento racional ainda não completamente assimilado. Se, pela História, sabemos que isto é de uma incrível importância ao nível da definição e aplicação prática de um regime democrático (assim como do poder jurídico), é também um ponto de partida interessantíssimo (e quiçá ponto de chegada) para compreendermos algumas definições do pensamento contemporâneo ou pós-moderno. Oedipus

Comecemos pelo ponto que creio ser mais fácil de granjear consenso. A questão da figura de Édipo (Οἰδίπους) se tornar juiz durante a investigação criminal, que é toda a tragédia, buscando um criminoso e tentando identificar um crime, transporta-nos para o clima de tribunal do mundo contemporâneo ocidental. Mais importante que isto será o facto de o juiz ser um homem e não mais os deuses os tutores incontornáveis e inegáveis da lei. Posto isto, aparece a figura da primeira testemunha da História, o escravo que vem confirmar quem Édipo é. Anteriormente a palavra de um deus, neste caso Apolo, teria sido suficiente para a confirmação da identidade do filho de Jocasta. A instalação da democracia aliada ao pensamento racional leva a que a introdução de testemunhas para a confirmação da palavra de Apolo[1]seja necessária. O escravo, além de confirmar os factos, fala a Édipo dos pés amarrados; este liga-os irremediavelmente às marcas que tem nos seus próprios pés[2], fazendo com que a palavra de uma testemunha, indicando uma prova palpável, leve Édipo ao reconhecimento de si próprio (pois só se havia colocado no lugar de juiz por não ter conhecimento de si)[3].

Esta conjuntura leva a crer que o homem grego passe a ver-se como um cidadão que tem leis feitas por si para os homens e não as leis divinas apenas por autoridade. Do ponto de vista desse homem, a sociedade dividia-se muito claramente por cidadãos que participavam da vida política, jurídica e até artística (além da religiosa) de Atenas; na escala hierárquica viriam depois as mulheres e crianças e só depois aqueles que não tinham qualquer importância socialmente, os escravos. Existiam ainda homens expulsos e escravos libertos que não tinham qualquer relevância, do ponto de vista do cidadão grego, para a vida da cidade.

A tragédia em questão pode ser definida através da ideia de um conflito entre personagens e/ou o conflito interior da própria personagem[4]. O caso de Édipo supõe que esteja em conflito consigo mesmo. Isto leva a que se dê um caso raríssimo e de grande genialidade dramática: Édipo é simultaneamente protagonista e antagonista[5], é descobridor e objecto da descoberta[6]. A partir desta interpretação há possibilidade para se fazer ponte com o pensamento contemporâneo, na medida em que o filho de Jocasta é o protótipo do indivíduo que se desconhece (desconhece também a sua origem, a sua força, etc.). Este modo de pensar entronca na psicanálise freudiana e pode-se dizer que é um pensamento icónico da pós-modernidade.

A mitologia dilui-se na tessitura da tragédia em apreço e ajuda a levantar questões em torno da humanidade do protagonista, provocando tensões e ambiguidades. É também nestes momentos trágicos que o homem se coloca perante o homem e se codifica: tenhamos em conta o nome de variadíssimas teorias psicanalíticas que foram beber à fonte da tragédia grega e lhe devem algumas das suas conclusões. Detenhamo-nos novamente no texto clássico propriamente dito.

A VOZ. Matará o pai. Casar-se-á com a mãe.

Oedipus and Antigone, 1812, Christian Wilhelm Eckersberg

Édipo tenta fugir à sina lida pelo Oráculo e acaba irremediavelmente por cumprir o seu destino de matar o pai e casar-se com a mãe, tendo filhos com ela, constituindo uma prole. O parricídio e o incesto não correspondem ao carácter de Édipo, nem a uma falta moral (adikia) que tivesse cometido. Em relação a Mérope e Pólibo – que julga serem os seus verdadeiros pais – nutre sentimentos de ternura real. Édipo é vítima de uma maldição divina tão desfundamentada, tal como os heróis que gozam de protecção dos deuses noutras lendas[7]. Mas é este cumprir do destino que origina a peste que assola a cidade, uma peste que, além de metamorfosear o imponderável, aquilo que se não controla e que é originado pela arrogância do pensamento, torna Édipo culpado por cada uma das mortes das vítimas. Assim é Édipo, o homem que não se conhece e que continua numa incessante busca por um crime e um criminoso, que não se quer aceitar como culpado e originador da peste. Esta culpa é referida por Tirésias, o famoso profeta cego de Tebas, não sendo aceite por Édipo; Tirésias simboliza o pensamento mítico tão desprezado por Édipo. De acordo com atradição mitológica[8], Tirésias passou sete anos transformado em mulher pelo que a sua figura por si só é uma personificação de um ser incrivelmente uno que consegue reunir o masculino e o feminino. Tirésias é também uma antítese de Édipo: é um cego que sabe, que vê e Édipo é um homem que não consegue descortinar dados além da sua arrogância e raciocínio lógico. É aqui introduzida, pela primeira vez na História da Literatura, a metáfora da cegueira. Esta sequência de eventos leva Édipo a querer cegar-se[9] – com um alfinete de ouro arrancado à túnica de Jocasta que acabava de se suicidar[10] – num momento em que adquire finalmente conhecimento de si próprio e da dimensão da sua pequenez. A tragédia passa então a decorrer na consciência que assiste a este processo de desocultação, numa transição do desconhecido para o conhecido. A ironia e o erro sustentam-se neste processo de desocultação: a tragédia representa um momento de incomensurável verdade, só no risco da aceitação do saber (que pode ser magnífico ou terrível, dependendo do uso que se lhe dá, e não se sabendo de antemão a que conduz um saber sem que se o tenha experimentado) se mostra o destino.

Mas este ímpeto (ou vontade) de Édipo de assumir a responsabilidade da decisão de se cegar representa, na verdade, uma tensão dramática constituída pela questão ethos-daimon: só depois de se mutilar Édipo tem consciência de que aquele acto foi provocado por um daimon (δαίμων)[11] tal como o coro anuncia[12]: o homem pode sempre fazer as suas próprias escolhas mas essas forças que as impulsionam estão sempre presentes como característica ambígua da vontade do homem, como o é a escolha e o que advém dela. Um dos mais importantes ensinamentos da tragédia é a “aprendizagem pelo sofrimento”[13]; no entanto, em Sófocles e em particular em Rei Édipo é a experiência de ver sofrer o outro que pode determinar a aprendizagem verdadeira.

Jean Auguste Dominique IngresOedipus and the Sphinx

Quando iniciei o texto, dizendo que o foco de leitura que queria dar a esta tragédia era outro que não o tratamento convencional de Freud, referi também que, depois da leitura do psicanalista, era impossível contornar a interpretação freudiana, assim como leituras e teorias posteriores estariam irremediavelmente circunscritas a esta visão psicológica de leitura ao trágico. Posto isto, tudo o que referi até aqui e que vai constituindo uma visão geral do Rei Édipo, leva-me a ponto de grande interesse, já referido, embora não explorado. Atentemos no seguinte excerto.

ESFINGE. Interrogá-lo-ei. Interrogá-lo-ei… Está bem. (com um último sinal de surpresa para Anubis.) Qual o animal que anda de quatro patas pela manhã, em duas ao meio-dia, em três à noite?…

ÉDIPO. O homem, ora essa. O homem que gatinha de quatro patas quando é pequeno, que anda nos dois pés quando é grande, e que quando fica velho se apoia na terceira pata de um cajado. (A ESFINGE rola no soco.) Vencedor! (Sai pela direita. A ESFINGE escorrega na coluna, desaparece atrás do muro, reaparece sem asas.)

ESFINGE. Édipo. Onde está ele? Onde está ele?

Recordemos a Esfinge, que aterrorizava Tebas. Numa primeira análise, estabeleçamos que com Édipo deslindando o mistério da Esfinge se acabam os segredos e relacionemos isso também com o final dos segredos da vida de Édipo que descobre quem é e de onde vem. De seguida, lembremos um poema de Mário de Sá-Carneiro, poeta modernista português, que diz “sou esfinge sem mistério no poente” que é também o sentimento que se apodera de Édipo no sentido em que todas as suas dúvidas são dissipadas e até consegue derrotar a Esfinge[14]; esta, sendo a portadora dos mistérios mais difíceis de solucionar, acaba por ficar também ela sem segredos para Édipo[15]. Em segundo lugar, o mistério que Édipo deslinda é um espelho de si próprio[16] e também a certeza que o homem pós-moderno tem: o homem tem a vida para viver. Das experiências e vivências que o homem tem, transforma o seu pensamento podendo multiplicar-se em inúmeras personalidades pensantes. Édipo, racional, deslinda o mistério. O mistério é uma mensagem subliminar: às vezes as respostas mais óbvias são as mais difíceis de encontrar. Aqui pode ser referida também a ambiguidade da condição humana personificada pela Esfinge; ao mesmo tempo, um véu se levanta porque a única coisa que Édipo sabia antes do seu encontro com a Esfinge é que todos os enigmas são enigmas do homem e, portanto, o próprio homem deverá ser a resposta a todos os enigmas. Mas o erro de Édipo vem sendo cometido por todos os séculos seguintes: Édipo pensou que a fórmula era a solução e representava apenas uma dificuldade: os monstros voltam sempre e portanto a Esfinge não é um enigma resolvido[17].

Tendo sido escrita no período de transição entre o pensamento mítico, não lógico, e a racionalidade, Rei Édipo torna-se numa obra em que o conflito entre essas duas formas de pensar se apresenta de uma forma muito clara: a tragédia de Sófocles anuncia a catástrofe do domínio da racionalidade. Uma das tensões dramáticas é originada pelo conflito de Édipo com os deuses, pelo excesso de arrogância (hybris) e pelo uso que faz da razão: esta é uma das forças geradoras da tragédia: o indivíduo imagina-se superior aos deuses, como se a razão fosse o caminho para a resolução de todos os problemas do âmbito humano. Daqui é possível fazer-se uma ponte com o modo de pensar actual na medida em que o pensamento lógico racional tem vindo a ser desconstruído cada vez mais. Édipo compreende no desenrolar da tragédia que sabe muito pouco; em paralelo é isto que apredemos hoje diante de circunstâncias diferentes. Ao tomar conhecimento de si, Édipo tem a sabedoria[18] do homem que é apto a reconhecer a sua própria figura no outro, espelhando-se num único vínculo que unifica todos os homens num mesmo e incerto destino.

Sófocles escreve este herói como modelo da condição humana e é através da antecipação da catástrofe da racionalidade que dá à comunidade que recebe a sua obra uma espécie de “aviso” que se reproduz nas gerações vindouras. Hoje estamos a desconstruir esse pensamento que superioriza a razão e contemplamos retrospectivamente a tragédia que prenunciava esse efeito como detentora de respostas. Em alternativa, teremos de perguntar-nos algo que em nenhum outro período foi tão pertinente: seria o homem grego, trágico, semelhante em questionamento e visão de mundo ao homem pós-moderno? Talvez nunca saibamos a resposta, talvez a pergunta seja apenas uma plataforma que permitirá encontrar novas respostas para outros enigmas, assim como o foi a resposta de Édipo. Teremos sempre de ter em conta que a narrativa dramática deverá permanecer aberta a novas e diversas interpretações e que Rei Édipo tenha podido, através da História do Pensamento Ocidental, adquirir novos sentidos à medida que a questão da ambiguidade no homem se foi deslocando e reposicionando em termos distintos daqueles que o enigma da existência humana entendia como paradigmáticos para os trágicos gregos.

Bibliografia

ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: F. C. Gulbenkian, 2004;

COCTEAU, Jean. A Máquina Infernal. Petrópolis: Editora Vozes, 1967;

FREUD, Sigmund. Da Interpretação dos Sonhos. Lisboa: Relógio d’Água, 2006;

GRAVES, Robert. Os Mitos Gregos. Lisboa: Edições Dom Quixote, 1990;

LOURENÇO, Eduardo. Esfinge ou a Poesia. In Tempo e Poesia. Lisboa: Relógio d’Água, 1987;

NIETZSCHE, Friedrich. Origem da Tragédia. Lisboa: Edições Europa-América, 2005;

REINHARDT, Karl. Sófocles. Brasília: UnB – Editora Universidade de Brasília, 2007;

SÁ-CARNEIRO, Mário. Poemas. Lisboa: Relógio d’Água, 2003;

SILVA, Maria de Fátima. Poeta, Criação e Público. A Noção de Trágico nos Criadores Teatrais Atenienses. In O Trágico. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, 2010;

SÓFOCLES. Rei Édipo. Trad. de Jorge Silva Melo. Lisboa: Bicho do Mato, 2010.

  1. Os deuses sabem e dizem sempre a verdade mas exprimem-na em palavras que, para os homens, parecem querer dizer outra coisa. Há uma dupla dimensão na linguagem dos deuses, tal como há uma dupla dimensão na visão de Tirésias. Seria necessário que Édipo tivesse o dom da dupla escuta para que pudesse resolver automaticamente todos os enigmas.
  2. Para que a profecia do Oráculo de Apolo não se cumprisse, Jocasta, a rainha de Tebas, abandona o filho na montanha com os pés furados e atados.
  3. “O indivíduo visado pela desgraça não deve ser nem bom – porque se o mal atingir um homem bom, em vez de temor e piedade, provoca repugnância – , nem mau – porque que a felicidade sobrevenha a quem é mau é a situação mais contrária à essência da tragédia; se é a desgraça que o atinge, alguma emoção despertará, mas não o temor e a piedade.”, Maria de Fátima Silva
  4. O ideal de herói trágico será aquele que não é particularmente virtuoso nem perverso, mas vítima do seu próprio erro ou fragilidade humana.
  5. “Deve ver-se a ilusão e a verdade enquanto forças antagonistas que condicionam o homem e o prendem, mal pensa poder atingir a mais alta esperança, ei-lo derrotado e caído por terra.”, Karl Reinhardt
  6. “É o médico que, para falar do mal que atinge a cidade, utiliza um vocabulário médico, mas também o doente e a doença.”, Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Nacquet
  7. “A sua mácula, o seu ágos, não é mais do que o reverso do poder sobrenatural que se concentrou nele para o perder.”, Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Nacquet
  8. A teoria seria a de que quem visualizasse o acasalamento das cobras seria punido com a “doença da fêmea” (Heródoto), ou seja, a homossexualidade.
  9. A cegueira de Édipo tem sido interpretada pelos psicanalistas como sinal de castração, embora os gramáticos gregos a tivessem interpretado como eufemismo para a impotência.
  10. Robert Graves assinala que o suicídio de Jocasta por enforcamento será provavelmente falso e que o mais certo é que tenha saltado de um rochedo tal como a Esfinge.
  11. As Fúrias personificam a consciência embora, neste caso, num sentido muito limitado: derivando apenas da infracção de um tabu em torno da mãe.
  12. Quando a trágica verdade é esclarecida, vem um mensageiro anunciar a cegueira de Édipo e o suicídio de Jocasta, sua mãe.
  13. Enunciada pelo Coro de Agamémnon
  14. A Esfinge acaba por se suicidar, assim como o faria depois a sua sacerdotisa Jocasta.
  15. Nietzsche escreve n’A Origem da Tragédia que o mito de Édipo parece de facto indicar é que qualquer pessoa que, através do seu conhecimento, lance a natureza para o abismo da destruição, terá de experimentar a dissolução da natureza.
  16. “Identificando-se simultaneamente com os seus jovens filhos e com o seu velho pai, Édipo, o homem de dois pés, apaga as fronteiras que devem manter o pai rigorosamente afastado dos filhos e do antepassado, para que cada geração humana ocupe, ao longo do tempo e na ordem da cidade, o lugar que lhe compete”, Jean-Pierre Vernant, Pierre Vidal-Nacquet
  17. “Impossível aceitar como Édipo que tudo está feito só porque descobrimos a fórmula que permite que tudo se faça.”, Eduardo Lourenço
  18. Esta sabedoria advém da compaixão que o conhecimento prévio da história de vida de Édipo lhe suscita.