Texto de Nuno Lopes Margalha, em parceria com o Instituto Português de Relojoaria. Os relógios atómicos são as máquinas mais precisas já criadas pelo ser humano. Do protótipo de amónia de Harold Lyons em 1949 ao estrôncio aprisionado em redes ópticas, marcaram a transição da observação dos astros para o domínio da física quântica. Hoje regulam o GPS, sincronizam a banca mundial e testam a relatividade de Einstein. Mas também guardam histórias curiosas: um protótipo com um relógio de parede em cima, satélites “falhados” que confirmaram teorias, e cientistas que ousaram redefinir o próprio segundo.



Em 1949, o físico norte-americano Harold Lyons, no National Bureau of Standards (hoje NIST), apresentou o primeiro relógio atómico capaz de operar, baseado na molécula de amónia. A fotografia clássica de Lyons, com um relógio de parede colocado em cima do protótipo, tornou-se icónica: era a prova de que aquela máquina de laboratório, aparentemente um armário metálico, media o tempo de forma inédita.
Louis Essen e o césio que mudou tudo

O salto decisivo chegou em 1955, quando Louis Essen e Jack Parry, no National Physical Laboratory (Reino Unido), construíram o primeiro relógio de césio-133 funcional. Essen já tinha experiência em medir a velocidade da luz, e foi graças ao seu rigor que o césio ganhou estatuto de padrão. Foi esse trabalho que, em 1967, levaria a redefinição do segundo no Sistema Internacional de Unidades.
A definição do segundo e o papel das instituições
Desde 1967, o segundo é a duração de 9 192 631 770 oscilações do césio-133.
Esta decisão, tomada em Sèvres, tirou a unidade básica do tempo do domínio astronómico (variações da rotação da Terra) e colocou-a na estabilidade quântica.
Desde 1967, o segundo é definido como a duração de 9 192 631 770 oscilações da radiação do átomo de césio-133, uma decisão tomada em Sèvres pela Conferência Geral de Pesos e Medidas. Esta redefinição marcou a transição da era astronómica para a era quântica: deixou-se de depender da rotação irregular da Terra e passou-se a basear a unidade fundamental do tempo numa propriedade imutável da matéria. O césio-133 foi escolhido pela sua estabilidade, pela facilidade de manipulação em laboratório e pelos resultados fiáveis já obtidos no primeiro relógio atómico funcional de 1955.
Exactidão e estabilidade: uma dupla de protagonistas
Dois conceitos atravessam toda a história: exactidão, que mede a proximidade ao valor verdadeiro, e estabilidade, que mede a regularidade ao longo do tempo. O físico Jerrold Zacharias, do MIT, trabalhou em relógios de césio ainda nos anos 50, e ajudou a clarificar estes conceitos em aplicações práticas.
Do laboratório ao espaço: engenheiros e cientistas no GPS e Galileo
O sistema GPS nasceu de equipas multidisciplinares nos Estados Unidos, com a união entre físicos, engenheiros de satélite e militares. Relógios de césio e rubídio desenvolvidos por grupos como o de James Jespersen garantiram a precisão inicial do sistema.

Na Europa, o programa Galileo foi impulsionado por equipas da ESA e da indústria, com o contributo de especialistas em máseres de hidrogénio como John Vanier e engenheiros em Neuchâtel, Suíça. Em 2014, quando dois satélites ficaram em órbitas erradas, investigadores como Pacôme Delva aproveitaram a oportunidade para testar a relatividade geral com relógios a bordo.
Do césio à luz: os pioneiros dos relógios ópticos
A revolução óptica tem protagonistas claros: Jun Ye, no JILA, que liderou o desenvolvimento dos relógios de estrôncio mais precisos do mundo; Hidetoshi Katori, em Tóquio, que criou a arquitectura de “rede óptica” para aprisionar átomos de estrôncio com lasers; e Thorsten Tamm, no PTB alemão, que comparou padrões ópticos a longas distâncias por fibra óptica. Estes cientistas abriram caminho à geodesia cronométrica, área que revela diferenças de gravidade através da comparação de relógios separados por centenas de quilómetros. É ciência de ponta sustentada no batimento dos átomos.
Três pequenas histórias para contar no intervalo do café
1) Um relógio com outro relógio por cima (1949). Harold Lyons, para mostrar ao público que a sua máquina era um relógio, colocou um relógio de parede em cima do protótipo de amónia. A imagem tornou-se símbolo da nova era.
2) Louis Essen e a vitória do césio (1955). Louis Essen enfrentou críticas de vários astrónomos, que consideravam arriscado substituir a observação das estrelas pela regularidade de um átomo como referência para medir o tempo. Décadas depois, a sua persistência foi reconhecida: sem ele, o segundo ainda seria definido pelo movimento irregular da Terra.
3) Satélites “falhados” que confirmaram Einstein (2014). Dois satélites Galileo em órbitas erradas tornaram-se laboratório natural para testar a relatividade geral. Uma falha de engenharia transformou-se numa das experiências mais elegantes da física moderna.
Para que serve, afinal, tanta precisão?
- Navegação por satélite: sem relógios atómicos e correcções relativísticas, o GPS e o Galileo perderiam a utilidade em minutos.
- Redes de telecomunicações e banca: transacções financeiras e fluxos de dados são ordenados ao nanossegundo.
- Ciência fundamental: relógios ópticos testam constantes fundamentais, procuram variações subtis ao longo do tempo e oferecem geodesia cronométrica.
E amanhã?
Os relógios ópticos já atingem precisões na casa dos 10⁻¹⁸, e discutem-se agora padrões baseados no estrôncio ou no íterbio para substituir o césio como definição oficial do segundo. Quando esse dia chegar, o mundo continuará a viver normalmente — mas por trás da internet, dos satélites e da ciência de ponta, os protagonistas invisíveis serão os físicos e engenheiros que, desde Harold Lyons e Louis Essen até Jun Ye e Hidetoshi Katori, transformaram a forma como medimos o tempo.
