Senhoras e Cavalaria no séc. XVIII: um Exercício de Imaginação Histórica

Tenho muita estima por esta imagem que me diz tanto e que está cá em casa há muitos anos: uma senhora dirige-se ao ferreiro da vila porque o seu cavalo perdeu uma ferradura.

(Nesta época – provavelmente século XVIII – o ferreiro tem o ofício de trabalhar o ferro em todas as suas vertentes e ainda não há uma “especialização” em ferrador de cavalos. Por isso o mencionei como ferreiro)

A senhora veste um traje de equitação constituído por um caso curto cingido à cintura e uma saia comprida. Como adereço deste traje tem um chapéu preto (não me parece que o nome adequado seja chapéu, mas desconheço o nome correto) e na mão direita tem um pingalim que é nada mais do que uma varinha comprida.

Gosto de pensar que esta senhora está a causar choque ao senhor à direita, que a observa com um ar desconfiado e ao mesmo tempo trocista, pensando: “por que raio veio sozinha ao ferrador? Ninguém a acompanha? Onde está o palafreneiro?! [moço responsável pelos cavalos que acompanha os senhores nas caçadas e passeios]. Que vergonha estar uma mulher sozinha a falar com homens ainda para mais tão rústicos! E o que percebe ela de cavalos?! Aqui está uma boa intriga…”

Mas naturalmente ela percebeu o desconforto da sua montada e assim que chegou à vila apeou e encaminhou-se ao ferreiro. A sensibilidade feminina percebe a importância do bem-estar do animal e não o submete a incómodos desnecessários.

E na verdade, ela está acompanhada porque mais atrás, junto às casas está um senhor com uniforme de montar a conversar com uma senhora e desabafa “veja lá, D. Genoveva! Ela insistiu em ir sozinha! Com aquela conversa tão descabida de” não me acha capaz de resolver o assunto sozinha? ” e veio por aí a diante! Que hei-de fazer?! Não posso dizer nada… Claro que se vai comentar… Ficar falada aí na vila… E olhe quem lá está também… Pois é. E para quem sobra, diga lá?”. D. Genoveva, em cuidados com a reputação da nobre senhora afiança ao seu bom amigo que tudo fará para a informar dos perigos eminentes. Uma tão boa senhora, não pode de maneira nenhuma cair em desgraça para bem das alminhas que ela socorre. 

Mas esquecem-se que desde cedo esta mulher, muito embora o título de senhora, foi em tempos a pequena menina que corria até ao riacho, subia às árvores e frequentava às escondidas as festividades populares para mal dos pecados da sua perceptora.

Ainda no estabelecimento do ferreiro, o senhor que a olha de soslaio com ar de troça inicia o seu intento de fazer estremecer a confiança desta bela mulher. “Senhora, por aqui? Acaso o seu criado não poderá trazer o animal sem a sua presença? Não pretendo de todo avaliar a sua conduta, desde sempre imaculada…” Esta, habituada aos chistes de senhores pretensiosos afirma, “Caro senhor, se porventura é do conhecimento geral a minha conduta, não será agora motivo de preocupação. Todos nesta vila são testemunhas do zelo que coloco em toda a administração da minha casa. Ao contrário de outras senhoras, não me incomoda sujar o meu vestido e trocar palavras simples com as gentes desta terra. Seria até injusto alterar a minha conduta para com estas pessoas. Desde tenra idade que percorro estes caminhos que agora trilho de olhos fechados. É também público o cuidado que devoto a todos os que estão sob a minha alçada. Mas uma vez que se referiu a esta tarefa em particular deixe-me acrescentar o seguinte: da minha educação proveio também a minha afeição aos cavalos, como bem sabe. Sempre fiz questão de obter conhecimentos práticos este é um deles. Uma ferradura solta não permite que a minha montada usufrua tanto como eu dos nossos passeios e vim apenas tratar do assunto. Como vê, não há motivo para temores infundados.”

“Vossa Senhoria, aqui o nosso Tejo está pronto. Este malandro bate com os cascos na porta e é o que dá! Desde poldro com esta manha! Amanhã vou para os lados das Moreiras ver a junta do Albano, aquilo é obra senhora! Faz agora quinze dias que se lhes deu uma moléstia e agora o homem não trabalha! Perdão.. Isto quando me dá para falar até as gralhas se calam!” “Não se preocupe e agradeço-lhe ter-me informado.” 

O jovem ajudante de ferrador apressa-se a colocar o animal pronto e já Gerónimo se aproxima ajudando a sua senhora a montar novamente. “Obrigada, não se esqueça dos meus cavalos! Precisam de uma vistoria e quero-os de saúde.”

No caminho de regresso reflete sobre os últimos acontecimentos. “Temem-nas. As mulheres letradas a quem os pais deram uma educação igual à dos varões são temidas. Só um néscio como aquele com as suas palavras veladas e que desconhece o valor da compaixão para falar assim…”

Entrega o cavalo a Filipe e avisa-o da visita próxima de Gerónimo quando chega D.Genoveva: “Que te trouxe aqui? Está alguém em cuidados na vila?” “Não senhora, aquilo é gente forte… Enfim.. Olhe , que Deus me perdoe mas sabe que sou assim e não se me cala a boca! A gente viu a senhora lá no Gerónimo mas não tivemos como avisá-la…. O filho do Dr. Teixeira chegou agora de Coimbra e dá-se a ares de doutor…. Perguntou por si.. Diz que queria saber da sua saúde… Mas aquilo é má rez.. Ó se é!” “Descanse. Não irei recebê-lo de forma alguma. Insiste na venda da minha propriedade. Diz que o avô teima em incomodar-me com a gestão das terras, que uma senhora não devia ocupar-se de semelhante tarefa. Há quantos anos saiu daqui? Desconhece o valor que aqui está que não se quantifica em dinheiro. Estudou em Coimbra, esteve em Lisboa a pavonear-se e decidiu regressar. “ “Deus a abençoe!”

Chamava-se Mariana. O seu avô, conhecido na região, atribuiu à neta a quem criara com todo o desvelo a gestão das terras a riba do Tejo. Os seu pais vivem na capital e apesar das visitas frequentes permitiram que a sua jovem e ousada filha se educasse segundo os preceitos da província. Mas sem a excessiva religiosidade e as crendiçes destas terras.

É provável que Mariana, apesar da época em que nascera, não seja única mulher a tomar a dianteira  na vida rural.