Através da articulação de conceitos fundamentais de Rivette, Haraway, Miorzoeff, entre outros, sobre cinema, revelam-se-nos a trama do filme 12 Angry Men e os principais gestos e intuições das personagens. A justiça e as leis do cinema concorrem juntas para o amadurecimento de uma absolvição silenciosa dentro de uma sala de jurados não necessariamente silenciosos. Palavras-chave: 12 Angry Men; Nicholas Mirzoeff; contra-visualidade; cinema-ritual. Texto de Tiago Cravidão. Revisão de Sílvia Pereira Diogo.

«Quand la loi n’est pas juste,

la justice passe avant la loi.»

Jean-Luc Godard

Introdução

Este texto desenvolve e aprofunda uma improvisada intervenção de final de sessão que teve lugar no dia 29 de setembro de 2022 na Casa do Cinema em Coimbra, a propósito da exibição do filme 12 Angry Men[1], programado no contexto de um ciclo sobre Cinema e Direito.

É a partir dessa intervenção repentina que este texto começa por aproximar o filme de Sidney Lumet não só à proposta desenvolvida por Donna Haraway no artigo «Situated Knowledges: The Science Question in Feminism and the Privilege of Partial Perspective», mas também à leitura de «The Right to Look» de Nicholas Mirzoeff, para de seguida, refletir a partir da obra «Zen e a Arte do Tiro com Arco» de Eugen Herrigel sobre como a metodologia específica da prática do cinema poder ser, ela mesma, uma forma de escutar o mundo. Antes, porém, convoquemos Rivette e o seu pensamento sobre o que faz, afinal, de um filme um filme (Oliveira, 2008).

Instado a refletir sobre o que «faz de uma obra, uma obra», Rivette converte a pergunta para «encontrar justamente os termos da relação que faz com que uma obra cinematográfica mereça ser chamada de um filme». A proposta do realizador organiza-se entre dois polos: inspirado pela entrevista que Pierre Legendre concede à revisa Télérama (Legendre, 1998), o realizador convoca a ideia de lei que associa a qualquer coisa que vem de trás; uma tradição que permite continuar o que nos chega. Segredo é o segundo polo, e diz: «não é um enigma da narração nem releva da bricolage» é alguma coisa «que o cineasta transporta sem saber, é o segredo de coisas muito pessoais, muito existenciais, muito sugestivas de que o filme se descobre portador» e que continua: «diz coisas sobre ele [realizador], sobre a humanidade, coisas que ele não tinha a menor intenção de dizer» (Oliveira, 2008).

Para Rivette o que torna um filme possível é a relação entre lei e segredo. Uma relação onde o segredo para se expressar deve estar conforme à lei. Neste sentido, segredo seria algo existencial e a lei da ordem do mais universal, sendo que é da riqueza e complexidade da relação entre estes dois polos que se molda a «intensidade do filme». É então que Rivette afirma um terceiro elemento a que chama perigo: resultado da tensão entre lei e segredo. Perigo seriam todas as dificuldades, riscos, improbabilidades que não só os participantes no filme enfrentam, como as opções estéticas e morais que o filme assume. Diz Rivette: «É uma série de perigos sobrepostos, talvez não haja um grande filme sem o sentimento de que podia ter sido uma catástrofe, que o deveria ter sido, sem esta espécie de milagre que tudo salvou, de resto à força de trabalho, cálculo e obstinação». Perigo é, diz mais à frente: «o nome da relação entre a lei e o segredo» (Oliveira, 2008).

12 Angry Men

Este filme, realizado por Sidney Lumet, é um filme de leis e segredos e, no sentido de Rivette, perigoso. Com argumento de Reginald Rose, adaptado a partir de uma série de televisão, o filme estreou em 1957, tendo o jornal The New York Times elogiado não só a forma como o argumento «disseca» o processo decisório de um júri, mas, e sobretudo, as prestações dos atores, destacando em especial o trabalho de Henry Fonda (Weiler, 1957).

Terminada a audiência, o jovem acusado do homicídio do pai aguarda a decisão do júri. É esse o processo decisório que o filme mostra. Se, para além de uma razoável dúvida, os jurados, estiverem convencidos de que o jovem matou o pai, então devem condenar o rapaz, mas se, pelo contrário, e apesar de toda a prova produzida, subsistir uma, ainda que pequena, margem de dúvida, então impõe-se a absolvição.

O júri é constituído por doze elementos todos eles homens, brancos e de classe média. Não têm nomes próprios, sendo os atores creditados pelos números correspondentes a cada personagem. Assim, o #1, Martin Balsam, treinador de futebol, é o porta-voz do grupo, #2, John Fiedler, trabalha num banco, #3, Lee J. Coob tem uma empresa de transportes, #4, E. G. Marshal, é corretor na bolsa, #5 Jack Klugman nasceu num bairro pobre, #6, Edward Binns trabalha na construção civil, #7, Jack Warden, é comerciante, #8, Henry Fonda é arquiteto, #9, Joseph Sweeney o mais velho do grupo, #10, Ed Begley é dono de uma oficina, o #11, George Voskivec, é relojoeiro, e #12, Robert Webber trabalha em publicidade.

A estrutura narrativa do filme é como a sua montagem, transparente. Em tempo real, num único espaço, o jurado #8, interpretado por Henry Fonda, inverte a sua desproporcional desvantagem inicial. Pela sua artimanha e argúcia, o herói, mais fraco, converte onze votos de condenação em doze votos de absolvição. Davis, Henry Fonda, vai de forma surpreendentemente verosímil completar um após outro os seus doze trabalhos, qual Héracles divino.

O filme foi produzido por Henry Fonda e pelo próprio argumentista que entregaram a Lumet o seu primeiro projeto de cinema. A produção demorou cinco semanas, três de rodagem e duas de ensaios e, apesar de uma boa receção na crítica, falhou, na altura do seu lançamento, o sucesso nas bilheteiras. Hoje, o filme conta com a nomeação pelo «American Film Institute» para os cem melhores filmes americanos de sempre e com a atribuição do segundo lugar na categoria de melhores filmes de tribunal.

Gesto – perigo

A validação das sentenças, do conhecimento científico e dos filmes da tradição clássica obtém-se também pela objetividade e clareza do seu modo de fazer, ou seja, da sua objetiva metodologia. Ora, é a partir de um ponto de vista feminista que Donna Haraway pretende discutir a ideia de objetividade, recentrando-a em torno dos «saberes localizado», proposta muito útil para pensar este filme.

A objetividade dos jurados que condena o rapaz antes de qualquer decisão do júri é da mesma natureza da que Haraway relaciona com a objetividade científica: «plenipotenciária, objetivamente neutral, irresponsabilizável e simples». Trata-se do olhar das certezas que o filme vai abalar por via da possibilidade de dúvida: da dúvida razoável a que as leis dão relevância. Será assim a força da possibilidade do erro que fará a deslocação dessa objetividade sem corpo; olho divino que paira equidistante de tudo, para a localização na carne de cada um daqueles homens. A neutra objetividade inicial passa à objetividade que cada um pode ter, a objetividade que cada jurado tem inscrita no corpo, numa ideia sobre o filme que pode ser dita pelas próprias palavras de Haraway: «Only partial perspetive promisses objetive vision» (Haraway, 1988, p. 583), palavras que anunciam o exato momento em que começa o filme de Lumet.

Como no texto de Haraway, o corpo tem também no filme uma importância que importa assinalar. Pois é por ele, pela sua contingência e localização que passará como veremos toda a dramaturgia. Antes, porém, olhemos duas ações, os dois mecanismos que tudo põem em marcha. Dois gestos-perigo: a compra de uma navalha e a abertura de uma torneira.

A certa altura um dos jurados pede para que seja trazida a arma do crime. A navalha tem uma forma bastante particular que convence o júri de que seria impossível que o arguido tivesse junto de si outra faca que não aquela com que é acusado de matar o pai. É nesta altura que, para surpresa geral, o jurado #8 tira do seu bolso uma navalha ponta e mola idêntica à que fora encontrada pela polícia junto ao rapaz. Davis confessa que na noite anterior, quando todos os elementos do júri estavam no hotel a preparar a sessão, decidiu sair e dar uma volta pela vizinhança onde decorrera o crime. Aí entrou numa loja onde pôde ver muitas navalhas idênticas àquela encontrada junto do rapaz. Comprou uma. Essa, que agora mostra aos outros jurados, desfazendo assim o argumento de que a navalha que fez prova em julgamento era um objeto raro, é a circunstância que derrota a tese da ligação entre a arma do crime e o arguido.

Como aliás salienta um dos jurados, Davis, para derrotar a circunstância incriminadora da navalha, teve ele próprio de cometer um crime. Afinal a navalha que comprara fora obtida de uma forma ilegal já que os membros dos júris estão proibidos de sair enquanto decorrem os processos em que estão envolvidos. De uma decisão estritamente legalista, de base formal, e metodologicamente inatacável, vai surgir, por via desta, uma nulidade processual do crime cometido pelo jurado #8 e a possibilidade de uma decisão justa. Uma decisão que aos poucos vai tomando conta dos corpos dos jurados e que começa no segundo gesto que queremos convocar: a abertura de uma torneira.

Na casa de banho do tribunal, Davis abre a torneira e lava as mãos, e, em campo, é possível ver e ouvir a água a correr. Aqui o realizador não só usa a água como um marco narrativo, assinalando a entrada da história no segundo ato, como, e mais importante, dá forma ao segundo gesto–perigo através da imagem de uma torneira a correr. Do ponto de vista da produção, filmar um plano com um ator a falar e com uma torneira a correr em campo é sempre algo que deve ser evitado. A jurisprudência das cautelas da produção de filmes prescreve hoje como ontem evitar a todo o custo a filmagem da água a correr, pois quando existe diálogo deve garantir-se que o texto do ator é registado sem qualquer ruído, deixando para a fase da montagem a colocação do som da água. Porém, neste plano não é assim; a torneira a correr está em campo e Davis diz o seu texto, e é esta simultaneidade que transforma daqui para a frente toda a dramaturgia do filme, pois, a partir daqui, o caminho da justiça passará já não pela argumentação pelo texto, mas pela cada vez maior presença da água nas imagens e no som.

Pela água, esse solvente universal, os jurados dissolverão os seus pontos de vista simplistas e deslocalizados, para, como Haraway propõe na epistemologia da ciência, percorrerem uma versão «corporificada da verdade» (Haraway, 1988).

Os jurados deixam de ver o arguido de «cima, de nenhum lugar» para o passarem a ver a partir dos seus corpos concretos. Um corpo «complexo, contraditório, estruturante e estruturado» (Haraway, 1988). Pois como afirma esta autora, só o «eu dividido e contraditório é que pode interrogar os posicionamentos e ser responsabilizado, construir e juntar-se a conversas racionais e imaginações fantásticas que mudam a história»; que mudam a história da ciência e que mudarão a história que condena à morte este rapaz.

Se, legitimados pela proximidade sonora das palavras cientista e cineasta, colocarmos entre o olhar e o ecrã as páginas de Haraway, assistiremos, em ambos os planos, a gestos que exploram uma outra objetividade na justiça, no cinema e na ciência. E tal como a cientista afirma a necessidade de recusa dos «poderes inocentes que representam o mundo» (Haraway, 1988), o filme afirma a necessidade de quebrar as regras dos filmes para se fazer cinema e da lei para fazer justiça. De facto, se na ciência é a inscrição do conhecimento no corpo que abre espaço ao «saber localizado», e portanto, à objetividade feminista, em 12 Angry Men não só a compra de uma navalha ponta e mola é o crime que franqueia as portas à justiça, como é o risco de produção de filmar a abertura de uma torneira que abre as portas ao cinema.

Será que pondo um homem a chorar e onze a transpirar muito se consegue mostrar a realização de uma justiça localizada? Neste filme, Lumet ensaia, no entanto, a resposta a uma pergunta bem mais importante: como filmar uma ideia? É de facto uma pergunta esfíngica do cinema a que o realizador responde usando a água como leitmotiv de uma certa ideia de justiça.

Invisibilidade

O contexto é «Reaganoid» (Haraway, 1988). Um grupo de homens brancos, cientes da sua gravidade cidadã, tem à sua frente um caso de uma objetividade a toda a prova: alguém como eles foi assassinado pelo próprio filho. Há que aplicar a lei e está feita justiça: rápida e imaculada. O rapaz deve morrer. E assim seria se estivesse na «Colónia Penal» onde um processo racional e mecanicista inscreve nos corpos as sentenças a que foram condenados.

Aqui, porém, a lei, é aplicada por corpos humanos históricos, diferentes, contraditórios e localizados. A este propósito vale a pena recordar a longa sequência inicial da instalação dos jurados na sala, numa «mise-en-scène» apurada pela intensidade dos ensaios e pela organização industrial do sistema clássico americano.

Filmado por Boris Kaufman, diretor de fotografia e irmão de Dziga Vertov, este plano com quase cinco minutos altera as escalas e os valores plásticos da imagem, enquanto carateriza cada personagem através de ações muito expressivas e concretas.

Recordemos como a figura da justiça mimetiza os olhos vendados típicos da figura do Xamã (o que vê no escuro): o que sabe não resulta do mundo visível, mas de articulação de ideias abstratas e nesse sentido universais. É aliás esse o em com que o filme começa com a exploração que o realizador faz da arquitetura do tribunal. Linhas direitas, ângulos precisos, geometria, visibilidade, racionalidade e universalidade. Porém a sequência da instalação do júri na sala expressa bem a tensão entre a arquitetura neo-clássica do tribunal e a entrada de rompante dos corpos e das histórias localizadas, contingentes e contraditórias de cada um dos jurados. Vemos a versão física da justiça como a “corporificação da verdade” (Haraway, 1988).

A organização dos corpos é feita da seguinte forma: o jurado #7 tenta ligar a ventoinha, abre a janela e oferece uma pastilha; o jurado #8 olha para fora da sala, entretido como está com um ligeiro movimento dos dedos (as mãos de Fonda são notáveis ao longo do filme); o #5, desconfiado, indaga do fecho da porta da sala do júri para mais à frente, ainda no mesmo plano, reivindicar o seu lugar; o #10, inquisidor, pergunta para que servem os papéis, procurando com uma piada construir aquela cumplicidade masculina que faz supor a «comunidade invisível de filósofos e cientistas» que Haraway imagina como o eles das ciências e que Lumet declina na versão de homens de meia idade, brancos de reputação intocável: o bonus pater familias ainda hoje usado como critério para aferir a razoabilidade de uma decisão; o jurado #4 lê o jornal e nem se incomoda em tirar o casaco; o jurado #3 senta-se com o punho a apoiar a cara, na memória física do soco que levou do filho e que, como veremos no fim do filme, muito gostaria de o ter dado ao seu pai; o #12, na conversa que tem com o #8, afirma a sorte do grupo em ter recebido um caso sem «death spots», ou seja, sem qualquer margem para dúvidas.

O caso será simples e todos estarão em menos de nada de regresso às suas vidas. A ida ao tribunal não passou de um breve desvio sem importância, nada se passou e o jurado #12 nem recordará o rosto do rapaz que condenou à morte. Toda a mediação do ritual judiciário tornou o jovem invisível. Rapidez e certeza são os pais desta metodologia da invisibilidade.

No texto «The Right to Look», Nicholas Mirzoeff reflete sobre como a construção da visualidade é o «processo pelo qual a história é percecionada pela autoridade». A história, aquele contínuo de fatos imbricados de forma geométrica e sem juntas à vista, é tão só o que diferentes instâncias de poder foram validando como real. Uma validação que se serve de um determinado método para construir aquela visualidade. Modos de agir a que aquele autor chama de «complexes of visuality». Ou seja, as operações pelas quais as autoridades históricas, e em especial as herdeiras dos sistemas coloniais, criam o que se vê. O autor refere três: «classificação», «separação» e «estetização». Operações cujo objetivo é, na verdade, tornar invisível o outro, entendido este como sujeito autónomo e titular de um soberano «direito a olhar»: direito natural e pré-legislativo. Lugar de onde o outro autónomo tenha a liberdade de afirmar o que entende ser o certo (Mirzoeff, 2011).

A proposta deste autor é então uma «contra-visualidade» e do que se trata é na verdade de «uma disputa sobre o que é visível». Disputa que está no centro da ação de Henry Fonda neste filme: o jurado #8 que ao convocar as circunstâncias concretas da ação do jovem, desenhando o seu «rosto», cria o espaço que permite aceitar a dúvida sobre a sua culpa. Toda a ação de Davis neste filme é o resgate do arguido da visibilidade que o torna invisível. Da visibilidade que o vê como mero perfil: alguém classificado, separado e estetizado como delinquente primário, sem direito à plausabilidade da dúvida que lhe pode salvar a vida.

Portanto o trabalho do arquiteto antevê-se difícil, físico e suado, pois o sentido de justiça que resgatará o jovem à cadeira elétrica terá a sua nascente já não na aplicação maquinal da justiça, mas brotará nas contradições dos jurados expressas pelos seus corpos.

O cinema e o direito são rituais, formas de sacralização aos quais os corpos se entregam na promessa de uma transformação. É assim por isso que antes da viagem que o ritual anuncia, é necessário acordar os corpos, torná-los presentes, conscientes da sua existência, pois será por eles que passará o novo sentido trazido pelo ritual. É assim por isto que nos corredores dos tribunais ou nos «plateaus» de uma rodagem de qualquer filme, sempre se escutam frases como, «mas isto nunca mais começa», ou «já estou cansado de esperar»; frases que expressam a entrada no corpo no tempo do ritual, necessariamente diferente do tempo quotidiano. De facto, não há rituais sem espera: a justiça rápida é aplicação burocrática da lei e o cinema apressado é conteúdo audiovisual.

O início deste filme está bem marcado por essa ansiosa velocidade das personagens que, querendo voltar às suas vidas, recusam a transformação que aquela reunião propõe. Querem despachar o assunto o mais rápido possível. Vão ter, porém, de esperar. E começam desde logo à espera do jurado mais velho que está na casa de banho, cuja demora ajuda a diluir a pressa inicial. Mas é apenas quando os jurados perdem a esperança da resolução rápida do caso que podem finalmente começar a discussão que importa. Os corpos estão agora preparados e o filme marca esse ponto de não retorno com o já referido plano sequência em que o jurado #8 vai à casa de banho lavar as mãos.

O cinema consegue de uma forma muito precisa articular ideias muito abstratas em gestos muito concretos, numa relação entre, como refere Rivette, lei e segredo. Vejamos, pois, como o saciar da sede de justiça dos jurados progride à boleia do aumento da presença de água em campo. Um caminho que começa na lavagem das mãos de Henry Fonda, que se instala nos corpos dos jurados, com o aumento do suor nos rostos e nas camisas, e que atinge o seu clímax quando pela primeira vez há um empate na votação a favor e contra a condenação do rapaz. É nesse momento que na rua desaba uma chuva torrencial que não mais parará até ao final do filme: as comportas da justiça foram abertas. E será sempre através do som da água a cair na rua que escutaremos daqui para a frente as restantes palavras dos homens que têm na mão a vida deste jovem.

Mas também aqui o caminho da justiça tem os seus meandros através do jurado #10 e do jurado #3. O jurado interpretado por Ed Begley discursa inflamadíssimo, recordando o populismo surdo às suas contradições, e imitando-lhe a criação de claras e intransponíveis classificações, separações e estéticas. «You known how these people lie, it’s part of them», «They don´t know what the truth is», «They don´t need any reason to kill someone, no sir». O jurado classifica e separa para assim definir dois campos: o nosso e o deles, numa argumentação que se procura autoalimentar pela intencional provocação de uma reação dos outros jurados.

Não é esse, porém, o caminho que o filme segue, pois tal como a água avança pelo leito de menor resistência, o filme imitando a natureza, usa um longo «travelling» de recuo não só para nos afastar da inflamação como, e principalmente, para mostrar a reação dos restantes jurados. Reação que no início não surge como muito clara, mas que rapidamente se percebe como os jurados lhe viram as costas. E que por ser feita ao arrepio da clareza dogmática do cinema clássico, como aliás o próprio Lumet reconhece numa entrevista[2], a escolha da duração do plano e da reação dos jurados tem um valor indiscutivelmente pedagógico. O afastamento da câmara é o «fade out» físico do discurso que assim se vai apagando até ser um murmúrio imperceptível e desarticulado, sem sentido até para o orador. Um movimento de câmara de sentido inverso ao que fazem hoje os telemóveis e as lentes da televisão perante discursos inflamados, por exemplo.

Resta o último jurado, o #3, interpretado por Lee J. Coob. Homem que se orgulha de sempre ter tratado o pai por «Sir», que ofende o homem mais velho e transporta na carteira a fotografia do filho com quem não fala, por quem foi agredido há mais de 2 anos. Uma memória física que carrega todos os dias e que está logo no início do filme quando se senta numa cadeira apoiando o queixo no punho fechado. Um murro que volta a sentir nesta sala de júri, que o vulnerabiliza e que por isso o pode transformar. É aliás sinal disso mesmo a água das suas lágrimas que se abrem ao perdão do filho verbalizado na expressão de «not guilty» para o arguido.

Foi feita justiça e pode por isso parar de chover. E se no plano final o chão da sala dos jurados indicia a inundação que por ali passou, cá fora, a arquitetura externa da justiça consegue ir orientando a água vinda do céu pelos seus canaletes simétricos.

Estes não são doze homens zangados, são doze homens aflitos que longe do porto de abrigo dos seus preconceitos, das suas certezas e dos seus medos tiveram de juntos aprender a nadar por instinto guiados apenas pelo seu íntimo sentido de justiça e pela sede que ela provoca.

Silêncio como método

Pela mão de dois textos, num movimento semelhante a um «travelling» que se adentra pelas imagens na busca do que está para além delas, a proposta deste trabalho foi visitar alguns momentos do filme 12 Angry Men para que através daqueles fosse possível visualizar o que o filme torna invisível. Porém, outro movimento seria possível: em vez dessa aproximação, um «travelling» de recuo revelaria alternativamente já não o além das imagens, mas o que está aquém delas, ou seja, o que existe para que elas se manifestem: as condições materiais, sociais, e culturais que são convocadas na manufatura dos planos e que, neste caso em concreto, compõem o filme de Sydney Lumet. O que está então antes da imagem? Antes da imagem há sempre um dispositivo de hospitalidade. Um olho, uma lente, um cérebro. O cinema seria neste sentido uma praxis de hospitalidade, um mecanismo técnico, humano, social e cultural capaz de produzir o vazio que as imagens podem ocupar.

E talvez seja essa afinal a maior utilidade dos rituais, a prescrição de um método que permita que as imagens — a imagem do outro/a, a imagem do mundo — se revele, não como resultado previsto por um método esforçado, trabalhoso e obstinado (Oliveira, 2008), mas todavia apesar dele, naquela espécie de «milagre» de que fala Rivette.

Eugen Herrigel descreve com detalhe esse milagre ao relatar o seu processo de aprendizagem da arte do tiro com arco (Herrigel, 1997). Numa passagem pela Universidade de Tóquio, a propósito de umas aulas para que fora convidado, o filósofo descreve como aprendeu a antiga arte japonesa do arco. Nesse longo processo foi guiado por um mestre Zen que o submeteu ao rigoroso método de aprendizagem. Uma metodologia científica cujo objetivo é não só um exímio domínio técnico do arco e da flecha como o desenvolvimento das capacidades físicas e mentais para executar a coreografia do disparo. Porém, e apesar de Herrigel seguir minuciosamente as prescrições metodológicas para executar o tiro, falha continuamente a aprovação do seu mestre. De fato a aprendizagem que o filósofo terá de fazer é a de que o método que o levou até ali deve tornar-se inútil em si mesmo. O objetivo metodológico de fazer um tiro tem de desaparecer. O fito é agora não disparar, o tiro certeiro não resulta do método. Herrigel tem de recuar, criar um espaço de vazio de onde o tiro possa surgir. Este só sairá preciso quando, apesar do rigoroso modo de fazer, conseguir apanhar de surpresa o filósofo arqueiro. Quando a corda do arco, de repente, pelo milagre de Rivette, se soltar do seu polegar direito (Herrigel, 1997).

Deste modo, o método funciona como a hipótese levantada para os dispositivos onde as imagens surgem e em especial para o cinema. Todo o esforço é então não o de criar imagens mas o de acolher as imagens. O cinema pode ser neste sentido pensado como modo de acolhimento, um ritual para a escuta do outro e do mundo.

Bibliografia

A.H.Weiler. (15 de abril de 1957). ’12 Angry Men’; Jury Room Drama Has Debut at Capitol. New york Times.

Borgdorff, H. (2011). The production of knowledge in artistic research. Em H. K. Micheal Biggs, The Routledge Companion to Research in the Arts (pp. 44-63). New York.

Haraway, D. (1988). Situated Knowledges:the science question is feminism and the privilege of partial perspectice. Feminist Studies, 14, 575-599.

Herrigel, E. (1997). Zen e a Arte do Tiro com Arco. Lisboa: Assírio e Alvim.

Legendre, P. (dezembro de 1998). La loi, le tabou et la Raison. Télérama, 12–14. (C. Portevin, Entrevistador)

Lumet, S. (1996). Making Movies. New York: Random House.

Mirzoeff, N. (2011). The right to look. Critical inquiry, 37, 473-496.

Oliveira, L. M. (2008). Jacques Rivette O segredo por trás do segredo. Lisboa: Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema.

  1. Acedendo com conta do Vimeo. o filme pode ser visto em https://vimeo.com/642406205

  2. https://www.youtube.com/watch?v=MquOjTPL59I ao minuto 12:43.