Sobre a Defesa do Ambiente: o Alarmismo Ambiental e o Contexto Histórico dos Catastrofismos

Sobre as semelhanças entre o alarmismo ambiental contemporâneo e várias formas de catastrofismos apocalípticos de outros tempos.

Texto de João N.S. Almeida (https://flul.academia.edu/joaonsalmeida). Revisão de Tomás Vicente Ferreira. Imagens: iluminuras de um manuscrito do Comentário ao Apocalipse (776-786), de Beato de Liébana.

Este ensaio surge primariamente em resposta a um belíssimo texto escrito por Pedro Franco a propósito do tópico da defesa do ambiente e das alterações climáticas. A leitura de tal artigo não despertou tanto um desejo de resposta directa mas sim uma cogitação prolongada sobre o estereótipo que aquele aglomerado de ideias representa: um conteúdo, e até uma estrutura textual, pertencente ao alarmismo de teor ambientalista, envolvendo um ethos mais profundo, nem sempre perceptível, que mereceriam ser comentados. Tal espécie de alarmismo, que parte de uma concepção céptica quanto aos efeitos da acção humana sobre o meio-ambiente, é muito semelhante a outras espécies de cepticismo conservador que dizem respeito à acção humana voluntária perante o status quo —- tais como algumas formas de cepticismo, aversão ou até fobia, advogadas por sectores mais ultramontanos da sociedade perante, por exemplo, formas alternativas de expressão sexual, integrações raciais, direitos civis universais, etc. É estranho, assim, que os ambientalistas, que são claramente detentores de aversões muito semelhantes face a determinados tipos de actividades humanas, não mereçam ser etiquetados de modo análogo com alguma variação envolvendo o sufixo -fobia. Tal seria adequado, já que grande parte da história do ambientalismo tem em si implícita uma fobia do progresso, do consumo corpóreo, e da contaminação da natureza pela presença humana (toda de raiz religiosa e moral). Parece evidente que, no caso do estado presente da ideologia ambientalista, hoje já inteiramente enquadrada na era científica, esta atitude se pauta por um tom catastrofista e até mesmo apocalíptico idêntico ao de outras eras face a outras semelhantes e análogas dimensões e expressões da actividade humana. Ou seja, independentemente dos legítimos dados empíricos que tenha a favor do seu argumento, o ambientalismo catastrofista pode ser pensado como uma variante do milenarismo medieval, ou igualmente como um ramo do espírito da tragédia que se regozija em imaginar maneiras de como o mundo pode acabar, pretendendo, a partir dessa imaginação que está na sua génese, atingir uma redenção ao conjurar fórmulas purificadoras que nos salvem desse estado terminal. Mas se perguntarmos ao guerreiro ambiental se se vê como um descendente das correntes milenaristas, ele ficará porventura indignado: ao mesmo tempo que se atormenta e/ou degusta com a fundamentação científica de uma catástrofe eminente, vê (de um ponto de vista histórico, erradamente) o período medieval como a era europeia das trevas, minada pela instabilidade política constante, pelo flagelo da peste negra, entre outras desgraças, e pelo espírito pré-científico. O presente ensaio aproveita, assim, o texto de Pedro Franco para reagir ao estereótipo de advocacia ambiental que este representa, ao mesmo tempo que não pretende ser propriamente uma resposta directa aos seus argumentos que, como já dissemos, e sem qualquer pejoratividade nesta qualificação, partem na sua maioria de generalizações adequadas — que, no entanto, merecem ser questionadas enquanto generalizações que são.

Uma raposa com um galo morto

Evocar a idade média através das tenebrosas imagens que referi é-nos em geral perfeitamente natural, mas não é assim tão natural transportar a analogia para instintos e tendências ideológicas unicamente pertencentes ao tempo presente. Estaremos, no fundo, a comparar um empirismo baseado na observação do decaimento moral — que levaria a castigos divinos como a peste ou ao putativo desconcerto militarista do mundo feudal, tendo como consequência pré-apocalíptica a incerteza da vida e a certeza da morte — com uma coisa diferente: o empirismo da era científica contemporânea, que leva a que o alarmismo ambiental se sustente no registo das temperatura da atmosfera e da concentração de CO2. Pode esta ser uma diferença de grau e não de espécie, já que nada objecta à aplicação da lei da causa-efeito no primeiro caso, em sentido lato. Vejamos como: é natural deduzir que, sem a contenção imposta pelos sistemas morais, o âmago comportamento selvagem que a couraça moral do homem envolve possa sair fora do controle, trazendo para diante um extenso decaimento da vida pessoal e social, ou seja, o fim do mundo do homem como o conhecemos. Nesta leitura, este fim do mundo resulta de forma directa e absolutamente determinista daquilo que, em termos medievais, se poderia definir como o pecado, ou a sua acumulação. Por outro lado, em comparação, apelidar o mesmo processo presente hoje no catastrofismo ambiental como o “fim do planeta” parece de uma arrogância antropocêntrica muito pouco objectiva: o fim do planeta, assim descrito nesses termos, é na verdade o fim do planeta do homem, o fim do planeta para o homem. Parece-nos sensato reforçar a hipótese, já adiantada, de que estas formas de catastrofismo têm, assim, muito em comum.

O segundo anjo toca a trombeta

Mais do que o medo da morte, é fundamental entender o conceito de culpa e a sua relação com as descrições canónicas do fim dos tempos: tal conceito pode ser encontrado em muitas culturas de relevância, de uma forma ou de outra[i], assim como em micro-culturas, onde a simultaneidade do temor e da reverência face à natureza se encontra, muitas vezes, relacionada com conceber-se a criação como imperfeição. Em contraponto a tal imperfeição, temos a criação supremacista da figura da ética, uma construção feita contra o sensível, reagindo contra esse decaimento num exercício de prescrição moralista que decorre do seguinte modo: (1) dizermos aos outros o que fazer (2) dizermos que se portaram mal (3) dizermos que temos uma maneira certa (4) dizermos que essa maneira não é da nossa autoria, mas é maior do que nós (5) dizermos que a extinção espera todos os que não adoptem essa maneira (6). Ou seja, a extinção espera todos o que não se conformem com a maneira que encontrámos para tudo estar bem. E este exercício, que estimula fisiologicamente a adrenalina, a dopamina, etc., pode também ser visto como um processo barato e primário, um mero jogo de poder disfarçado de idoneidade filosófica. Uma descrição das consequências práticas da moral ambientalista contemporânea talvez se resuma, em termos muito redutores, a substituir os senhores maus do carvão pelos senhores bons dos painéis solares, como se os primeiros tivessem, a priori, mais tendências naturais para a corrupção do que os outros, e os segundos fossem, devido a uma substancial benignidade do recurso (o sol é mais “verde” que o petróleo?), mais tendentes à moral a que hoje chamamos de “sustentabilidade”. As cautelas aconselháveis perante estes juízos absolutos que podem ser eventualmente imperfeitos escapam ao género de considerações seculares que comandam esta linha moral.

A besta que surge do mar

Abordemos então o belíssimo artigo de Pedro Franco, que merece uma crítica tão séria e exaustiva quanto possível. apesar de nem eu nem o autor do dito artigo sermos especialistas na ciência do clima, mas apenas nas áreas de humanidades em que trabalhamos. Partimos ambos de um ponto de vista que não admite a absoluta neutralidade duma visão científica, e é-nos provavelmente impossível uma leitura que exclua a influência do sujeito na observação; mas isso não distorce de forma significativa o argumentário que utilizamos. Apresento então algumas impressões gerais sobre o início do artigo. Por exemplo, não são imediatamente reconhecíveis as três reacções mais comuns à questão da alteração climática de que fala inicialmente: a academia parece manifestar-se em massa a favor do alarmismo e da acção direta; o eleitorado de políticos populistas (ou seja, o eleitorado populista, ou, talvez, o povo) desconfia mais da ladainha vulgar que lhe é apresentada pelos cientistas (e também pelos padres – incluindo os papas – e os actores de cinema, improváveis parceiros) do que dos desequilíbrios no clima concretamente prejudiciais à população e às vezes imediatamente aferíveis na vida concreta das pessoas ligadas à ruralidade e dependent; e quanto à descrição de políticos ou actores sociais internacionalistas convictos da benignidade da acção humana, não fica claro onde é que os podemos encontrar, dado que quase todas as instituições trans-nacionais de relevância não estão nada optimistas quanto à mudança climática (Nações Unidas, Banco Mundial, União Europeia, etc.)[ii]. Depois, nota-se também da parte do autor um ponto especificamente político: a desconfiança endémica em relação à liberdade individual e uma confiança muito pouco céptica no poder centralizado dos estados ou das entidades supra-estatais — postura que talvez advenha de uma mentalidade mais católica e menos protestante. Por fim, existem uma série de asserções um pouco discutíveis. Por exemplo, o termo climate change denier é impreciso, dado que qualquer pessoa sabe que o clima muda, nem que seja na sua versão mais circunscrita — no dia a dia, ou entre estações — assim como ao longo de períodos mais extensos; depois, não é claro como a falta de acesso ao poder político é hoje uma maior ameaça para as democracias liberais (talvez devido à sugestão, porventura também alarmista, de existir um estado de coisas pré-ditatorial, o que não é exactamente a mesma coisa que falta de acesso ao poder político).

Anjo desce do céu envolto numa nuvem

Deixo aqui um aviso quanto à minha interpretação e comentário do artigo: as referências a entidades e processos relacionados com o cristianismo (beatificação, culpa, éden, etc.) não se destinam de modo nenhum a ser ataques baixos: aliás, sou culturalmente partidário dos mesmos ritos mentais da referida tradição (como quase toda a gente), e estaria a atacar-me a mim próprio se o fizesse — o que poderia até acontecer e ser legítimo. Tais apontamentos são somente ligações que pretendo honestas estabelecidas entre a ideologia ambientalista (ou as ideologias de salvação em geral — marxismo incluído) e a ideologia mais específica do catolicismo, onde está implícito o conceito de salvação pertencente ao cristianismo em geral, assim como o mundo futuro, a terra prometida, etc. E tais comentários não pressupõem, definitivamente, uma mal-intencionada tendência para o juízo de valor, como é moda dos jornalistas fazer.

O primeiro e mais significativo paradoxo, ou meta-paradoxo, do argumento apresentado por Pedro Franco, ocorre na passagem que refere, de forma coloquial e inocente, “o único planeta que temos para habitar”. Quem é o “nós” desta frase? Particularmente “nós”, aqui, não significa apenas um ajuntamento de pessoas, mas todas as pessoas — o que possivelmente requer uma base metafísica para poder ser colocado nestes termos, base essa que está ausente e não justificada. Quanto à referência ao “planeta”, como já vimos, o problema é semelhante: se essa preocupação com “o planeta” equivale ao “universo”, à existência em si, parece estranho a “existência em si” requerer cuidados especiais. Mas, por outro lado, se é apenas uma preocupação antropocêntrica com o “planeta habitável por nós”, é também paradoxal e estranho que ao longo do artigo se note uma desconfiança em relação ao progresso material feito em prol da vida das pessoas mas, ao mesmo tempo, se pretenda que o planeta seja mantido como entidade própria para consumo humano, identificada com a sua própria definição substancial. Dado que quaisquer alterações climáticas beneficiariam necessariamente umas espécies de seres vivos em detrimento de outras[iii], nem o autor nem as correntes dominantes do ambientalismo contemporâneo incluem essa consideração nas suas previsões do “fim do planeta”: reflectem somente a manutenção de um ecossistema específico que sirva os interesses do homem. Curiosamente, tal descrição de um ecossistema em perfeito equilíbrio tem paralelos muito fortes com o estado da criação descrito na Bíblia, anterior à Queda adâmica e relacionado com a noção de pecado original (ou, neste caso, a sua ausência). Esta visão não é unicamente pertencente à mundivisão judaico-cristã: ela ocorre em várias e numerosas cosgmogonias[iv], assemelhando-se a algo que poderíamos chamar de um fenómeno culturalmente quase universal. E, se nos sistemas religiosos, com a sua longa tradição, o seu saber de experiência feito e a assunção da base metafísica, essa contradição é aceite e resolvida, no ambientalismo de fé científica, crença recente e sem estrutura suficientemente não há condições para tal. Resta-lhes, assim, ignorar dados e metadados sobre a matéria a tratar — como é imperativo, aliás, que o método científico sempre faça, dado que o seu amplo sucesso depende da delimitação da área de estudo[v]. E o presente estado-da-arte da ciência está de facto muito longe de uma teoria de tudo, ao contrário do que proclama o conhecido filme biográfico acerca de Stephen Hawking — este porventura um exemplo do cientista incapaz de perceber quando se excedeu, cruzando a fronteira entre a Física e a Metafísica.

O terceiro anjo toca a trombeta

Quanto às descrições do progresso material até hoje alcançado, a tendência parece ser para apresentar um retrato excessivamente negro. Por exemplo, a pobreza é descrita fundamentalmente em termos quantitativos[vi] — enquanto numerário disponível no bolso das classes mais baixas — mas essa não é a única maneira de a contabilizar: tal erro é frequente nas chamadas ciências sociais, onde a medida exacta quanto às categorias com que trabalham é impossível de obter ou, mesmo que seja obtida, se encontra inserida num sistema não-absolutista, de valores relativos — como é o caso da economia, por exemplo. É sabido que certas sociedades ocidentais podem esperar valores nominais de pensões de reforma mais baixos no futuro[vii], comparativamente com a geração anterior: porém, não sabemos a que bens concretos é que esse numerário de valor inferior permitirá ter acesso. Efectivamente, muitos itens de consumo comum têm hoje, devido à avançada industrialização em quase todas as sociedades do mundo, uma produção muito mais numerosa, e muito mais acessível em termos de custo para o consumidor, do que há cinquenta anos atrás, não querendo dizer assim que um menor rendimento líquido corresponda a uma pior qualidade de vida ou a um menor poder de compra em termos materiais e práticos[viii]. Além disso, existem outros indicadores que podem qualificar a pobreza com maior abrangência e mais fundamentadamente, embora permaneçam pouco precisos, como o da fome, o das condições de habitação, sustentabilidade da vida material, e a solidez das instituições sociais — governo, justiça, etc. Hoje, ninguém negará que o mais baixo extracto económico da sociedade tem muito mais acesso a bens e serviços do que há cinquenta ou setenta anos — isto se admitirmos que a prosperidade no acesso aos mesmos, assim como o desenvolvimento tecnológico, reduzem aquilo a que chamamos de pobreza material, e que não estamos a falar de nenhum tipo de pobreza espiritual. Paradoxalmente, na chamada “sociedade do consumo”, o eventual excesso de produção – tido como um pecado por mentes mais pias, aquelas que nos instam a comer tudo o que temos no prato, etc. – resulta, na prática, em maior oferta de produtos e serviços, e em sobras de custo acessível ou nulo, entre as quais alguns de enorme valor que há cinquenta anos ou mais seriam considerados itens de acesso restrito. Exemplos disto são as corridas às promoções, tipicamente acolhidas por pessoas de mais baixos rendimentos – algo que as pessoas com maiores rendimentos acham muito estranho – assim como a existência, nas sociedades modernas ocidentais, de uma rede de aproveitamento de bens ainda utilizáveis ou semi-utilizáveis colocados em contentores de lixo por pessoas que já não os querem por uma ou outra razão.

Anjo falando às aves

Por outro lado, se olharmos também para as instituições sociais que permitem a manutenção dessas riquezas — tanto as materiais como as morais — não é claro que possamos descrevê-las, no mundo desenvolvido, como em pior estado do que há cinquenta anos[ix]. Além disso, é incerto o que seja exactamente o “acesso a uma série de bens de primeira necessidade”, mencionado pelo autor, ou quem inventou tal critério; ou seja, o que significa “primeira necessidade” e o que abrange, etc. — ou até se se trata de um critério fixo ou variável, dado que hoje o que é considerado como bem de primeira necessidade não é necessariamente o mesmo de há cinquenta anos — como é o caso da internet ou do automóvel. Mas, neste ponto, em que evocamos conceitos como a “pobreza”, a “fome”, os “pobres”, etc., verificamos também o erro piedoso em que incorre quando pensamos em tais conceitos e nos referimos a estes intervalos de tempo comparativos: a diferença entre a génese da forma presente destes conceitos, assim como deste discurso, e o tempo actual, não é somente de cinquenta anos mas sim de mais de um século. Parece-nos que o ideário que fundamenta algumas passagens do artigo (será um ideário marxista? conservador? saudosista? finissecular? iluminista? etc.) data da alvorada da era industrial, e são evidentes — tanto ao nível da prosa do autor como no discurso público em geral — as dificuldades em adaptar esse discurso ao tempo presente.

O quarto anjo toca a trombeta

De seguida, Pedro Franco aborda também uma hipotética ligação entre alterações climáticas e migrações; mas os indicadores dessa relação parecem puramente especulativos, já que sempre existiram migrações devido a fenómenos climáticos não-sistemáticos, ou simplesmente migrações ligadas a mudanças sociais e económicas totalmente independentes do clima[x]. Perante o enunciado destas tipologias, só poderíamos estabelecer estatísticas fiáveis quanto às migrações subtraindo aquelas que ocorreriam mesmo sem o fenómeno das alterações climáticas, e não é certo como é que isso possa ser feito com exactidão — e isso nem sequer é abordado de todo no artigo. Fica assim por esclarecer como é feita a ligação entre migração e clima, assim como não é claro quais são os indicadores presentes que indiquem secas e catástrofes ambientais mais frequentes[xi]. Quanto à quantificação da desigualdade através do indicador da fome, parece-nos feita com alguma falácia: o aumento desta num determinado ano não apaga ter estado a cair nos outros todos[xii]. Ou seja, mesmo que o indicador global da fome continuasse a subir durante mais dois ou três anos, isso não apagaria os avanços feitos nos últimos trinta: e nenhuma “catástrofe global” é definida de modo sensato num espaço de tempo tão estrito.

A este ponto na leitura, e sem qualquer tipo de má vontade, é fácil perceber-se que o artigo é, de facto, catastrofista: segue-se no texto uma referência ao clima e às migrações, que acresce à anterior, mas ambas são turvas; culpa-se a “concorrência comercial desleal”, sem definir o que isso seja[xiii] ou qual a sua influência; e não fica estabelecida a relação entre desigualdade e implosão da sociedade — é suposto ser óbvia, sem necessidade de se apontarem exemplos históricos de tais ocorrências? Depois, não ficam claros os objectivos das políticas e o que é “não deixar ninguém para trás”; para trás do quê, para a frente do quê? Assim, neste ponto do argumento, é incerto se o autor se posiciona favoravelmente face ao paradigma do progresso material, ou, ao invés disso, prefere algum tipo de alter-mundismo utópico, espiritual, new age, advindo porventura de um cristianismo espiritualmente difuso, e em geral pouco definido em termos filosoficamente robustos. Isto porque o progresso material implica, necessariamente, atentados ao ambiente, e não é possível de outra maneira: quem quer fazer uma fogueira tem de deitar abaixo uma árvore. O que muitos parágrafos do artigo evidenciam parece ser mais um sentido de urgência face à reparação do estado inicial da “natureza” (da Criação, no sentido bíblico, portanto?) do que uma tentativa construtiva de comparar os benefícios do progresso (do progresso material em sentido estrito) com o necessário sacrifício da “natureza”. Mas o catastrofismo que pauta todo o artigo parece também associado, não se sabendo precisamente como nem porquê, a uma visão benigna do poder político/cívico de características centralizadoras como o meio mais natural para resolver as questões climáticas.

Anjo convertendo o mar em sangue

Tal leitura continua a ser observável noutras afirmações, que parecem fundadas em axiomas de senso-comum mas muitas vezes acabam por confundir a benignidade de intenções com uma eventual eficiência de resultados. Por exemplo, a referência à agricultura de pequena dimensão deixa por explicar se esta é uma agricultura sustentável por si só; assim, não sabemos ao certo se a agricultura do futuro será de pequena, de média ou de grande dimensão, e qual as vantagens e desvantagens de cada um dos sistemas, restando-nos apenas o cheiro romântico da “pequena propriedade”. Valeria também a pena reflectir sobre a relação entre essa planificação idealista de recursos e outros factores, não apenas económicos, mas constitutivos da sociedade, como, por exemplo, o indivíduo, a propriedade privada, etc.; o exemplo da União Soviética e dos estados comunistas em geral atesta o perigo deste pensamento não apenas a nível material — com a planificação idealista de recursos tendo tido como consequência fomes cíclicas — como também a nível social e moral, representando sociedades amplamente documentadas como irrespiráveis, cujos fluxos migratórios, impedidos pelos próprios dirigentes, assim o atestam. Além disso, quando se apresenta, deste modo acrítico, um panorama estatístico da agricultura a nível global, deixa-se por discernir, e por explicar, as diferenças entre cada um dos países e os respectivos estágios de desenvolvimento — diferenças que são, a curto prazo, necessariamente irresolúveis. Mais à frente, também as considerações sobre políticas europeias para as migrações parecem, à partida, sustentadas, mas carecem de uma análise que tenha em conta também a política dos países de origem dos emigrantes, e não apenas a dos países da UE (como se sobre estes recaísse toda a responsabilidade). Além disso, em vez de presumir que políticas de subsídios a energias fósseis para países em desenvolvimento é prova do desprezo do poder político pela agenda climática do ambientalismo, o autor poderia esclarecer melhor os leitores, explicando — ou mesmo especulando — que objectivo serve (ou de que mal-entendido procede) a atribuição desses subsídios, escusando-se a supor à partida que tal serve os interesses do grande capital das indústrias energéticas. É possível e desejável fazer isso de um modo exaustivo, não caindo em leituras fáceis que levam à culpabilização dos “grandes interesses” (económicos, políticos, etc.), podendo levantar-se também a hipótese de que tal atribuição se destine à preservação da vida humana nesses países, ou à preservação dessas sociedades, da economia dessas sociedades, etc., numa lógica de evolução da sociedade agrícola para a industrial e para a pós-industrial, à semelhança do que aconteceu no Ocidente. Ou, ainda, e talvez ainda melhor, que a verdade esteja algures entre essas duas posições: uma, o interesse económico e o status quo, o outro, a interação livre e benéfica para todas as partes de várias entidades com vários recursos. Por fim, encontramos também o mesmo tom sentencioso quando o autor fala da necessidade de diminuição do tráfego aéreo, ao mesmo tempo que se escusa a apontar outras alternativas. Tal descrição parece mais uma vez alicerçada num catastrofismo implícito, e, assim, passa para os leitores como forçada, levando a que ninguém obedeça, de boa vontade, a tais prescrições. É assim absolutamente impossível pedir às pessoas em todo o mundo que deixem de contar com os avanços sociais fantásticos proporcionados pela aviação moderna em prol de um hipotético aumento de temperatura de consequências imprevisíveis (que podem ser boas e más, ou boas, ou más) daqui a uma dezena de anos. Ao invés disso, poderia ser proposto investimento em melhores rácios de aproveitamento de combustível, uma combinação de meios de transporte, investimentos em combustíveis alternativos para aviação, etc. O que parece estranho é o tom apocalíptico com que se parece sugerir o fim do transporte aéreo — lembrando, mais uma vez, inúmeras cosmovisões de fundamento religioso tradicional onde a ousadia do homem em dominar tecnologicamente a natureza merece uma pena grave.

Sétima trombeta, que é a ressurreição da carne

Assim, o registo do artigo é sempre pautado por essas dicotomias simples: interesse económico é mau, interesse ambiental é bom, interesse individual é mau, interesse colectivo é bom, industrialização é má, pré ou pós-industrialização é boa — esquecendo-se, assim, que o nível de prosperidade material em que nos encontramos e que nos permite também parte destas reflexões é possibilitado por uma civilização que, por si só, e nos termos de um ambientalismo radical, constitui um atentado ao ambiente. Além do tom moralista que lhe subjaz, encontramos no artigo também referências específicas de um alarmismo que não é suficientemente justificado, como na seguinte passagem, que refere uma série de alarmes específicos, cada um deles de muito dúbia justificação: “os incêndios descontrolados, os furacões, as crises de escassez de água, o aumento da fome no mundo, a mortalidade dos conflitos armados e a pressão migratória que (indevidamente) assusta tanta gente.” Analisando estes itens um a um, verificamos que o primeiro não está fundamentado em parte nenhuma, excepto nos média; a crise de escassez de água é dúbia https://ourworldindata.org/water-use-sanitation; o aumento da fome é simplesmente falso: http://www.fao.org/state-of-food-security-nutrition/en/; a ideia de que a mortalidade dos conflitos armados está a piorar parece ser uma piada de mau gosto, se nos lembrarmos das grandes guerras; e, por último, qualificar a preocupação quanto aos movimentos migratórios como “indevida” é absurdo, pois é evidente que o hemisfério norte não tem capacidade para, do dia para a noite, absorver a quantidade de pessoas que pretendem lá entrar — por razões que podem ser, ou não, legítimas. Além disso, não é certo quais sejam as estatísticas que indiquem o flagelo da desflorestação; nos dados do Banco Mundial, não é evidente nenhum flagelo[xiv]; de igual modo, não está fundamentada a profissão de fé na maior ocorrência de fenómenos extremos de clima[xv]. No meio de todas estas acusações avulsas — e que só a custo constituem uma unidade de problemas — continua a não ser claro o que significa proteger o planeta e o que é essa entidade.

O Cordeiro (que é figura de Cristo)

Mais à frente, um ponto-chave do argumento torna mais claras as ideias que subjazem ao artigo, quando o autor não explica porque é que determinada agenda ambiental não há de ser apenas de um grupo de países específico, ficando então subentendido que deverá ser preferencial ou obrigatoriamente de todos os países, quer queiram quer não. Fica por saber através de que mecanismo democrático entre nações se faz a determinação dessa agenda — dado que, aliás, nem todas as nações utilizam a democracia como sistema político, e têm toda a legitimidade para não o fazerem. A sugestão do autor, e dos partidários de uma agenda global de reacção às alterações climáticas, implica talvez a criação de uma entidade autoritária supra-nacional: e é de espantar o optimismo com que encaram tal hipótese, como se não fosse de todo preocupante — e ainda mais quando esta entidade necessariamente não estaria sujeita a escrutínio popular, dado que seria alicerçada numa espécie de sub-democracia em que as comunidades de cientistas estabelecem interpretações de dados empíricos sem grande interferência de vozes exteriores. Alguns problemas são obviamente levantados perante essa solução aparentemente miraculosa e beatificante: quando se pretende criar ou se cria uma política mundial — a nível de taxação também, por exemplo — somos deixados com a ausência de contraexemplos, o que torna difícil ir ajustando ou fazer mudanças drásticas numa “única política”. E este ponto permite-nos chegar às pressuposições fundamentais que animam o artigo: a preferência por um modelo político globalista — tendo de ser necessariamente assim, já que falamos do “planeta” — e, também, a advogacia de uma posição moral que o antecede, onde os direitos individuais e dos estados-nação, como o direito da propriedade e do livre comércio, são secundarizados. Isto é notório quando, por exemplo, o autor qualifica negativamente a ideia de “interesse económico”; esta é uma posição política mais ou menos definida, que, em termos contemporâneos, nega Adam Smith e afirma Marx, embora retenha de ambos uma visão materialista das trocas entre pessoas que se baseia no valor económico. Nada há a objectar, por princípio, contra esta posição (ou talvez haja), mas seria curioso integrar a ideia da criação e do divino nesta visão (como, por exemplo, as questões da mão invisível smithiana e tudo isso). O autor acrescenta ainda uma muito bizarra qualificação, a “mão devastadora do tecido empresarial”, ao que se segue uma pequena previsão catastrofista: supostamente “ainda” é o poder estatal que permite que o equilíbrio do ecossistema se mantenha — e a esse poder não é aplicada nenhuma qualificação negativa. Não se entende assim se as pessoas que governam os poderes económicos são outra raça de pessoas diferentes das que regem o poder estatal, e se num caso estão direccionados exclusivamente para os próprios interesses e noutro para a bondade colectiva. Se assim é, tal visão é evidentemente reducionista e, neste ponto, o artigo perde imensa credibilidade. No final da passagem, permanece essa sugestão marota: “ainda há” instâncias que conseguem regular o desvario dos mercados, o desvario dos espíritos animais, da liberdade. Isto sugere, porém, um cenário edénico inicial em que existiria uma regulação perfeita, um equilíbrio impoluto que teria vindo a decrescer desde então, e isto é, obviamente, falso. Além disso, a afirmação de que é difícil o contacto entre os legisladores e os governantes, ou a comissão e os ministérios, carece de fundamento — embora seja credível — assim como a afirmação de que os eleitores de Trump, o mainstream político, e os partidos centristas da UE não se preocupam com o ambiente. Nalguns destes casos poderá estar a confundir-se um desprezo pelo ambiente com uma posição muito mais simples: a descrença prudencial no cenário catastrófico apresentado pelo discurso ambientalista mainstream. Este é um erro grave que deixa, definitivamente, de um lado uma maioria silenciosa céptica quanto a revoluções e, do outro, aqueles que são provavelmente considerados por essa maioria como uma seita de iluminados que pretendem evangelizar o mundo através do uso de poder sobre a vida de todos, desculpando-se com o bem-estar de uma hipotética entidade, o “planeta”, sobre outra hipotética entidade, a “espécie humana”, cientificamente assim definida.

O Cordeiro de pé sobre o monte Sião.

Finalmente, o último ponto foca-se, correctamente, sobre as tendências voláteis que os média demonstram ao descreverem as alterações climáticas; porém, esquece-se das tendências voláteis de outros actores envolvidos na questão, como as do activismo ambientalista e do poder político, as da cobertura noticiosa, tanto documental como literária, assim como da reacção das instituições religiosas e a integração das respectivas cosmovisões nestas visões científicas da mudança climática, etc. Em geral, o autor advoga uma intervenção muito directa, mas não tanto a problematização adicional da questão, pelo menos neste ponto, nem a auto-crítica, como se os elementos recolhidos e enunciados ao longo do artigo dessem indicadores suficientes para acções decididas e resolutas. Assim, o argumentário de um certo ambientalismo, que o artigo reproduz, baseia-se em estatísticas imperfeitas, que formam conclusões emocionalmente activas, que levam a propostas de acção pouco debatidas, pouco unânimes e pouco naturais, e conclui-se sugerindo-se a assinatura de petições. Resumindo o texto desta forma, parece evidente que o pretendido alcance do seu braço político é muito superior à robustez do seu conteúdo crítico. Porém, a sugestão final de que se pugne por um debate é séria, parece ser séria — desde que, é claro, não se alicerce numa conclusão pré-estabelecida. Como já foi descrito ao longo deste ensaio, existem muitos outros factores em jogo além da figura abstracta do “planeta”, e será útil ter os outros em conta: sobrevivência e qualidade de vida das pessoas, preservação de modos de vida, culturas — e a cultura metropolitana ocidental merece tanto a preservação como as culturas tribais arcaicas, a menos que a mais-valia destas segundas se destine à alimentação do turismo lírico da primeira. E, por fim, razoabilidade e respeito pelo próximo na aposta em fórmulas de organização social bem-sucedidas que permitam a sobrevivência dos aspectos anteriormente mencionados (como o capitalismo e o liberalismo, em contraposição ao comunismo, ao fascismo, e ao totalitarismo em geral, fórmulas de documentado e estrondoso falhanço). Será sério um debate que tenha todos estes pilares em conta. Ao invés disso, um debate que ponha um conceito pseudo-natural de “planeta”, artificialmente antropomórfico, acima da vida e da qualidade de vida de milhões de pessoas parte de um ponto de vista simplesmente contraditório e suicida, e merecerá o mesmo interesse que despertam as ficções catastróficas de Roland Emmerich, em Hollywood, ou de Joaquim de Fiore nos tempos do milenarismo medieval[xvi]. Quando a paixão que alimenta as conclusões é tão ou mais intensa do que a impressão da veracidade dos dados científicos, a “espécie”, a “humanidade”, “o povo” desconfia. Pede-se, assim, ao ambientalismo contemporâneo que, se quiser levar o seu evangelho a territórios mais tropicais do globo, invista na humildade e na contemplação mais do que na prescrição autoritária de soluções que não dominam e que encobrem na verdade a prevalência desse instinto moralista de pequeno ditador que todos temos dentro de nós.


[i] Vd. Benedict, R. (1989). The chrysanthemum and the sword: Patterns of Japanese culture. Boston, Mass: Houghton Mifflin e os conceitos de “honra” na cultura japonesa, ou o de “salvar a face”, miànzi 面子, na chinesa.

[ii] Vd. https://www.un.org/en/global-issues/climate-change, https://www.worldbank.org/en/topic/climatechange and https://ec.europa.eu/clima/policies/eu-climate-action_en

[iii] Vd. https://besjournals.onlinelibrary.wiley.com/doi/full/10.1111/j.2041-210X.2010.00065.x e https://www.bbc.com/future/article/20190730-the-animals-that-will-survive-climate-change.

[iv] Vd. https://www.britannica.com/topic/creation-myth/Types-of-cosmogonic-myths.

[v] É evidente que os modelos que projectem efeitos climáticos à escala global só podem basear-se em redução, especulação e simplificação, dado que o sistema, a existir, é tão complexo que não cabe em nenhuma quantificação inteligível que possamos fazer. Vd. https://www.nature.com/articles/news.2007.198 e https://www.ipcc.ch/site/assets/uploads/2018/02/WG1AR5_Chapter09_FINAL.pdf

[vi] A passagem do artigo de Franco denota isso mesmo: a dupla falácia de que se pode olhar para um indicador monetário como 1,90$ e atribuir-lhe valor absoluto — isto é, sem se considerar relativo face a bens concretos — e de que se pode considerar o que são “bens de primeira necessidade” de modo igualmente absoluto, sem ter em conta que o conceito é obviamente material e historicamente mutável.

[vii] https://observador.pt/2019/01/10/terei-reforma-quando-chegar-a-velhice/ e https://fronteirasxxi.pt/desafiossegurancasocial/.

[viii] Vd. https://www.unido.org/sites/default/files/files/2020-02/HOW%20INDUSTRIAL%20DEVELOPMENT%20MATTERS%20TO%20THE%20WELL-BEING%20OF%20THE%20POPULATION%20FIN.pdf e https://ourworldindata.org/economic-growth#the-world-economy-over-the-last-two-millennia.

[ix] http://www.systemicpeace.org/polityproject.html e https://ourworldindata.org/democracy

[x] E.g. os Hunos no séc. V, ou os Mongóis, mais tarde: vd. https://www.britannica.com/topic/human-migration. Contemporaneamente, as alterações climáticas não são consideradas como factor principal em praticamente nenhuma migração forçada, mas sim como factor cumulativo com outros mais primários; vd. https://link.springer.com/article/10.1007/s10584-008-9416-y.

[xi] Vd. https://ourworldindata.org/natural-disasters

[xii] Vd. http://www.fao.org/state-of-food-security-nutrition/en/

[xiii] De modo anedótico, embora encobrindo uma teoria económica mais vasta e robusta, apetece citar o liberal Milton Friedman: “You know what unfair competition is. It’s anybody who charges less than you do.” in https://www.youtube.com/watch?v=8q71hrwUcu0.

[xiv] Vd. https://data.worldbank.org/indicator/AG.LND.FRST.ZS; a queda registada nos últimos 20 anos é irrisória. Noutros indicadores, encontramos uma oscilação entre desflorestação para uso urbano e para uso agrícola, tendo aumentado significativamente, nos últimos séculos de forma mais atribuível directamente ao aumento de população e menos a alterações climáticas por acção humana; Vd. https://ourworldindata.org/deforestation

[xv] Vd. novamente https://ourworldindata.org/natural-disasters.

[xvi] Recomenda-se, como leitura adicional, o livro Apocalypse Never: Why Environmental Alarmism Hurts Us All de Michael Shellenberger, um activista ambiental desiludido (recenseado em https://www.manhattan-institute.org/apocalypse-never-review-false-gods-for-lost-souls): https://www.wook.pt/livro/apocalipse-nunca-michael-shellenberger/24737734?a_aid=5fde3e61a4b12. A obra de Norman Cohn sobre o milenarismo medieval é também uma excelente referência: Pursuit Of The Millennium: Revolutionary Millenarians And Mystical Anarchists Of The Middle Ages (https://www.wook.pt/livro/pursuit-of-the-millennium-norman-cohn/1568218?a_aid=5fde3e61a4b12).