Sobre como a Bula Manifestis Probatum não criou Reino algum, porque ele já existia

Na primeira História de Portugal conhecida, de Fernando Oliveira (séc. XVI), há um ensaio muito interessante sobre a Bula Manifestis Probatum, que procura demonstrar o facto da Bula não criar Reino algum, porque ele já existia. Ora vejam: 

“Concordam ambos [Alexandre III e Eugénio III], porque ambos dizem que este Reino era de D. Afonso Henriques. E isto se confirma por um breve do sobredito Inocêncio Terceiro dirigido a D. Afonso, o segundo, no qual diz que os Reis de Castela não têm jurisdição alguma em Portugal. Concordam também, porque ambos dizem que D. Afonso ordenou dar aos Papas um certo censo. Mas são diferentes na tenção com que ordenou de lho dar, porque a Crónica diz que fez D. Afonso este seu reino peiteiro ao Papa, por graças que lhe o Papa concedeu, e o breve diz, que ordenou dar-lhe aquele censo em sinal que este reino era do direito de S. Pedro. E chama-lhe censo e não peita, as quais cousas são mui diferentes uma da outra, porque dar ao Papa peita por graças espirituais tem figura de simonia e dar-lhe censo em sinal de reverência, como diz o breve, é sinal de obediência e devoção. Não diz que faz o reino peiteiro, mas diz que lhe dá aquilo em sinal que é do direito de S. Pedro. As quais palavras se hão-de notar por esta via que agora direi. Diz que é do direito de D. Pedro, porque naqueles tempos havia na Igreja Cristã muitos cismas, e uns diziam que eram da obediência de Constantinopla, outros de Alexandria e outros de Roma, onde S. Pedro foi prelado. E, por isso, o Breve entende que ser da obediência de Roma é ser do direito de S. Pedro e é ser da Igreja Católica. A tenção de D. Afonso foi professar a obediência dos sucessores de S. Pedro. Alguns quiseram dizer que D. Afonso fizera este reino feudo da câmara apostólica, mas não sabem o que dizem, porque a propriedade do feudo é do senhor do feudo e a propriedade de Portugal nunca foi da câmara apostólica. E têm os feudos tal condição, que não se pagando, perdem pelos senhores feudatários, mas este de Portugal nunca se pagou e nem por isso se perdeu. Não o perderam, digo, os Reis de Portugal, porque são eles os senhores proprietários e não deram seu senhorio aos Papas, nem lhe concediam senão censo, como diz o breve, o qual nunca se pagou, nem veio a efeito. Mas veio a efeito o que ele significava, que era ser este reino da obediência da cátedra de S. Pedro, como de feito é, e sempre foi sem jamais quebrar. E, por isso, lhe concede a ele e a seus reis este Papa Alexandre, e depois dele Inocêncio Terceiro confirma estas graças sobreditas, e não pela peita, como quis entender a Crónica. Finalmente, não deu D. Afonso Henriques aos Papas o senhorio temporal deste Reino, nem se lhe obrigou a pagar tributo como a senhores temporais, mas assinava-lhe censo como a eclesiásticos com título de esmola espontânea e obra piedosa sem obrigação, como são as esmolas puras. Alguns chamam a este reescrito erecção e criação de novo reino e rei, mas o Papa não lhe chama senão página de constituição, a qual não pode ser de novo rei, nem reino, porque além de o Papa não declarar de que é esta constituição, ele mesmo, no princípio deste mesmo reescrito, chama a D. Afonso rei e a Portugal reino, antes de lhe dar autoridade para serem Rei, nem Reino. E daí consta que este reescrito não é de nova erecção, nem de um, nem de outro. Não de reino, porque na primeira parte deste livro fica provado que Portugal tem título de Reino muito antigo, nem de Rei, porque aqui nesta história vimos que o povo, no campo de Ourique, perto de quarenta anos antes disto, fez D. Afonso Henriques Rei de Portugal. E se dizem que o povo de Portugal não podia fazer Rei D. Afonso Henriques, também lhe direi que o povo desbaratado e desapossado de suas terras não podia fazer D. Pelágio Rei de Espanha. E se para D. Afonso Henriques era necessária autoridade apostólica, também era necessária a mesma autoridade para os Reis de Castela e de Navarra e Aragão, que se fizeram Reis e Reinos sem aquela autoridade. Os Mouros deram estes títulos a Córdova e a Toledo e Sevilha e Granada, e os Cristãos só com aquela autoridade dos Mouros chamam aquelas terras reinos. Assim que bem podia o povo de Portugal usar destes títulos, como outros usavam e já usava deles antes deste reescrito. E não foi esta nova erecção, nem criação, nem o Papa usa destes vocábulos neste breve, mas chama-lhe constituição, como disse, porque lhe não podia dar essoutros nomes de erecção e criação nova. Constituição lhe chama, porque quanto ao principal lhe deu ser e constituiu por autoridade divina, como antigamente os profetas e sacerdotes faziam quando ungiam os réis, e agora fazem quando ungem os Imperadores. Os quais, depois de ser eleitos secularmente, são ungidos em significação que sacramentalmente recebem de Deus o poder que têm sobre o povo, por meio dos Sumos Pontífices que os constituem E esta é a constituição que o Papa fez em D. Afonso Henriques, posto que o não ungisse, porque as cerimónias sacramentais não são da essência dos sacramentos. O essencial é que o poder dos Reis venha de Cristo por meio dos Sumos Pontífices, seus Vigários, segundo mui doutamente escreveu em nossos dias o doutor navarro Martim de Azpilcueta. E, assim, veio a D. Afonso Henriques, por meio de Alexandre tércio, autor deste breve. E mais, este nome constituição, aqui se pode tomar lei e pragmática, assim como os nossos Bispos chamam constituições as suas leis sinodais, porque aqui o Papa chama constituição à lei que ele põe aos contrários em favor deste reino e seus reis; os quais tomam sob sua proteção. Outro ponto é necessário que pratiquemos sobre este breve, por que os émulos se não gloriem de sua malícia contra o Papa e contra D. Afonso Henriques. Dizem os émulos que o Papa tomou este reino aos reis de Castela e que o deu a D. Afonso Henriques, mas não dizem verdade, porque este reino não era dos Reis de Castela, mas estava em mão dos Mouros, e de poder de Mouros o tirou D. Afonso Henriques e seu pai. Isto consta do que fica escrito nesta história e deste breve consta que lhe não deu senão o que ele tomasse aos Mouros e não aos Cristãos, mas antes fez salva dos lugares que pertencem aos reis cristãos nossos vizinhos, e diz assim: “Por autoridade apostólica concedemos a tua excelência e confirmamos todos os lugares que com ajuda da graça celestial tomares das mãos dos Sarracenos, em que os príncipes cristãos comarcãos não podem adquirir direito”. O Papa que isto diz não pretende tomar o Reino de Portugal aos Reis de Castela e dá-lo a D. Afonso Henriques. Nem o tomou a eles, nem o deu a ele, porque já era seu dele e nunca foi deles, isto consta de tudo o que fica escrito atrás e deste reescrito presente, e não há outro reescrito que outra cousa diga, nem histórias que isto contradigam com alguma autoridade, porque as que isto contradizem não a têm sua, nem alegam de outrem, que tenham. É muito de notar que diz em que os príncipes comarcãos não podem adquirir direito, como os de Castela não podem adquirir nos lugares de Portugal, segundo fica provado”.