A 30 de Abril de 1999, Werner Herzog subiu ao palco do Walker Cinema em Minneapolis e proferiu o que ficou para a posteridade conhecido como a Declaração de Minnesota, a primeira vez que Herzog explicou a sua teoria de ‘verdade extática’.
Texto de Lauro Reis. Publicado originalmente em https://osfazedoresdeletras.com/2020/11/17/sobre-family-romance-llc-de-werner-herzog-lauro-reis/.
A 30 de Abril de 1999, Werner Herzog subiu ao palco do Walker Cinema em Minneapolis e proferiu o que ficou para a posteridade conhecido como a Declaração de Minnesota, a primeira vez que Herzog explicou a sua teoria de “verdade extática”. As doze entradas desse manifesto procuram dar a ver sobretudo a distinção a ser feita entre factos e verdades, a qualidade elusiva da verdade, a normatividade e superficialidade de factos e a indiferença e crueldade da natureza e do universo em relação aos afazeres humanos. Associando Cinéma Verité a uma «verdade de contabilistas», Herzog contrasta essa factualidade sem profundidade com a iluminação que a verdade mais profunda, e que pode ser encontrada no cinema de documentário, poderá oferecer. O ponto 5 da sua declaração define a verdade iluminada da seguinte maneira:
Existem camadas mais profundas de verdade no cinema, e existe algo como a verdade poética e extática. É misteriosa e indescritível, e só pode ser alcançada por meio de fabricação, imaginação e estilização.
O ponto de Herzog é o do papel do artifício no modo como o artista decide fabricar a sua arte, e como movimentos cinematográficos (Cinéma Verité, por exemplo) conseguem passar completamente ao lado do essencial, numa procura superficial definida como verdade crua ou espontânea. Outro ponto pode ser o de que essa busca pela verdade crua poderá acabar por revelar uma dimensão factual que não desperta curiosidade ou interesse, sendo desprovida de arte. A questão desdobra-se em reconhecer a actividade de fazer cinema enquanto algo distinto da realidade em que ela se inspira. Não é papel do cinema funcionar como um puro e directo canal de observação entre o homem e o mundo. A fabricação, a imaginação e estilização são instrumentos fulcrais para o fabrico artístico, e para isso é importante conhecer a distinção entre o que é artístico e o que é real.
É sobre este pano de fundo que se revela a importância em discutir o mais recente pseudo-documentário de Herzog: Family Romance, LLC. Numa época de fake-news, pós-verdade, relativismo e individualismo exacerbados, não é de estranhar que Herzog tenha decidido viajar até ao Japão, de modo a contar a história de uma agência que se especializa em oferecer um tipo de serviço peculiar. A empresa Family Romance fornece actores de modo a que clientes possam alugá-los no dia a dia para desempenharem papéis nas suas vidas, tais como pais, maridos, amigos, entre outros. A intenção seria a de, numa sociedade altamente solitária e individualizada, preencher as lacunas nas vidas das pessoas, ajudando-as a superar problemas ou traumas, a vender uma ficção nas redes sociais, ou até recriar acontecimentos felizes da vida dos clientes, vezes e vezes sem conta. O filme segue de mais perto o dono da empresa, Yuichi Ishii, desempenhado pelo próprio, sendo ele também o dono de uma empresa de aluguer de pessoas na vida real. A intersecção entre a empresa real e a empresa fictícia no filme não é inocente. Não é uma coincidência que Herzog tenha decidido contratar actores sem experiência de cinema: por exemplo, a actriz que desempenha a filha de uma mãe que contracta os serviços de Yuichi para desempenhar o papel de seu pai desaparecido nunca havia participado em qualquer filme. A aura de amadorismo é intencional e serve para fazer o espectador sentir-se desconfortável com a actividade que está a ocorrer à sua frente: o facto de estarem a ver um pseudo-documentário que procura retratar uma empresa fictícia, no qual o seu serviço é fornecer conexões fictícias, e nas quais os actores do filme são os actores que, ou fazem parte da própria agência real, ou são amadores sem experiência prévia. Nesta altura, duas questões podem ser levantadas, que concernem à autenticidade e intencionalidade da obra de Herzog: qual o valor da experiência cinematográfica ao observar este pseudo-documentário pseudo-realista? E será que o próprio visionamento deste pseudo-documentário também não possui em si algum paralelismo com um qualquer hipotético cliente que contrata na realidade tais serviços de aluguer da Family Romance.
No encontro inicial entre Yuichi e a sua filha-cliente, que abre o filme, é possível observar o desconforto no olhar da filha tanto quando a câmara procura um close-up como com as suas tentativas atabalhoadas de evitar o olhar directo. Novamente, a realização não procura ocultar esses momentos de amadorismo: cortar ou editar tais “deslizes” seria passar ao lado da verdade que o filme procura mostrar. As excessivas pausas e falta de ritmo e cadência nas falas, o desequilíbrio de certos movimentos e o timing errado de certos comportamentos são totalmente propositados por parte de Herzog, e não tanto dos actores. Apontar o amadorismo desta película é aqui, de facto, apenas entender superficialmente o que Herzog faz quando decide apontar a câmara para indivíduos que não estão habituados a ignorá-la: surge uma certa aparência, uma postura artificial, uma dicção não orgânica, uma comunicação não natural. E isso acaba por fazer convergir o real e o ficcional ao mesmo tempo que questiona os limites e a intersecção dos mesmos. Faz parte do experimentalismo deste pseudo-documentário trazer para primeiro plano as consequências possíveis de quando se confunde realidade com ficção e vice-versa: que passemos a julgar a realidade sob uma espécie de critério artístico e a obra artística por modelos e padrões da realidade. Esta confusão epistemológica é imagem de marca da sociedade contemporânea, e especificamente da sociedade japonesa.
Os clientes que contratam os serviços de aluguer desta empresa não estão preocupados com critérios de autenticidade, de experiências não-fabricadas ou puras, estando apenas preocupados com o resultado final; contudo, enquanto espectadores do filme, não deixamos de não conseguir evitar o facto de tal experiência não ser genuína, mas uma réplica de um acontecimento que se crê ser genuíno. Debater a autenticidade ou genuinidade de uma experiência artística é um tópico prevalente em qualquer discussão sobre estética de arte, e Herzog transporta esse questionamento para o primeiro plano deste filme, mas tornando-o uma discussão menos sobre a arte e ficção e mais sobre a realidade fabricada. Contudo, o que dizer quando legitimamos a experiência ficcional na realidade, tratando-a como vida? A lente de Herzog possibilita a discussão de uma realidade contemporânea cada vez mais omnipresente: a sociedade que possibilita o surgimento e sucesso de empresas como estas é uma sociedade preocupada simultaneamente com transparência, originalidade e identidade que, simultaneamente está disposta a fabricar ficções que se confundam e que continuam a alimentar ficticiamente um real inexistente. A sua relação com o artificio, com o teatral, com o intencional e declaradamente ficcional é o de distanciamento e desconfiança se e só se não for instrumentalizado para revelar a originalidade e identidade do indivíduo que faz uso dela. O que se perde, nessa aparente submissão do teatral, do fictício e do artificial à vontade do indivíduo em se expor, é a atomização da sociedade, porque ele está disposto a subsumir, distorcer e explorar o meio onde se encontra para satisfazer as suas vontades individualistas e exibicionistas. Byung-Chul Han descreve tal desejo como o “culto da autenticidade”:
O culto da autenticidade erode o espaço público. Este desintegra-se em espaços privados. Cada um leva o seu espaço privado consigo para todo o lado. No espaço público é-se chamado a desempenhar um papel, abstendo-se do privado. Estamos num lugar de representações cénicas, num teatro. A peça, o espectáculo, é essencial para ele. (…) O mundo hoje não é um teatro em que se desempenham papéis e se trocam gestos rituais, mas um mercado onde as pessoas se desnudam e exibem. A representação teatral submete-se à exibição pornográfica do privado.
Hoje em dia, tudo se tornou comercializável e sujeito às leis do mercado. É assim que empresas como Family Romance atingem o sucesso e sobrevivem: vendendo a dimensão privada da existência, trazendo para o meio público essa dimensão íntima e privada. A narrativa principal de Family Romance, LLC é por diversas vezes interrompida por breves episódios de outros clientes que descrevem embaraçadamente os seus problemas ou situações, bem como o tipo de serviço que desejam contratar. Essas vignettes como que servem para comprovar a tese de que o espaço público sofreu uma erosão tal que apenas serve como palco para dimensão privada das existências das pessoas, que normalmente carece de qualquer tipo de teatralidade, mas onde abunda uma transparência e honestidade na maioria das vezes dolorosa. O ponto é que esse espaço público é essencial para desenvolver uma comunicação com sucesso. Ao invés disso, o que temos são monólogos intercalados com outros monólogos, incapazes de um profundo entendimento ou conexão entre os participantes. Ichii está permanentemente consciente e refere-o várias vezes, de que um dos seus vários desafios é o de tentar distanciar-se e não se perder nas vidas dos outros. A conclusão é que acaba por viver à superfície, incapaz de atingir algum nível de profundidade conectiva. E coabitar num meio onde faz parte da política de Ichii não se envolver profundamente, e no qual é a intenção do filme dar a ver que a sua atitude em relação ao trabalho de aluguer não é assim tão exclusiva a Ichii e pode ser extrapolada para uma população cada vez mais crescente e alienada do Outro, erode inevitavelmente não só o meio público, mas a ideia de comunidade.
O acto de desempenhar um papel no meio social é fulcral para a sobrevivência de um sentido de comunidade. Uma fronteira é erguida entre o domínio privado de um indivíduo e o público. Contudo, a representação cénica e teatral, uma vez ao serviço da comunidade, acabou instrumentalizada pelo indivíduo, promovendo a sua exibição permanente e total do seu domínio privado, provocando a erosão do social e do comunitário. É assim que uma sociedade se atomiza, se individualiza, se isola, surgindo empresas que procuram preencher o vazio que surge nos indivíduos que exibem a sua privacidade. É nessa exibição explícita e persistente que o teatral, o ficcional, o falso, são instrumentalizados para continuar a perpetuar uma realidade privada inatingível ou inexistente. Isto significa trazer para cima da mesa conceitos que não seriam imediatamente relacionados com tal discussão: o que é o real, como distingui-lo, que experiências são mais autênticas ou valiosas, as espontâneas e quotidianas ou as fabricadas (artísticas)? Possuem valores e méritos diferentes? Se sim, o que dizer da sua confluência e confusão contemporâneas? Não será esse um dos propósitos da ficção, o de questionar o autêntico, o real, e de fazer revelar verdades que não são normalmente acessíveis a “contabilistas”?
O propósito de Herzog não é o de concordar ou condenar tais serviços ou as pessoas que o alugam, mas revelar uma necessidade básica humana que aflige o Homem do século XXI: que, no meio de tanto progresso tecnológico e demográfico, tenha crescido paralela e proporcionalmente a alienação e isolação. Face a uma sociedade japonesa com altas taxas de abandono sénior e suicídio juvenil, não é de estranhar o surgimento de serviços como os de famílias de aluguer para colmatar esse vazio. A autenticidade, o desejo de experiência autêntica, genuína, espontânea, são os últimos dos critérios que desempenham importância quando alguém se depara frente a frente com a solidão, alienação ou abandono. A ironia já mais que demonstrada e debatida do paradoxo da comunicação contemporânea, onde quantos mais canais comunicacionais existem, mais complicado se torna os seus utilizadores se conectarem significativa e profundamente uns com os outros, é interpretada por Byung-Chul Han como um sinal de que, ao contrário de sociedades mais antigas, prévias ao advento da tecnologia e informatização da sociedade, em que possuíamos no seu cerne uma comunidade sem comunicação, o que predomina hoje é uma comunicação sem comunidade. As consequências dessa alteração ainda permanecem por perceber verdadeiramente, mas uma verdade extática que poderá por enquanto ser retirada poderá ser a da angústia de Ichii no final da película, quando depois de lhe ter sido proposto por uma cliente que fosse morar realmente com ela e a sua filha, acaba por sofrer uma crise existencial, questionando se a sua família real não será ela também uma ilusão contratada por alguém para lhe fazer companhia. A impossibilidade de discernir entre o que é real ou e o que não é instala-se sub-repticiamente em Ichii, incapaz de escolher entre uma ficção fabricada e incorporada por si e uma realidade por si criada e construída. O ponto a retirar é o de que, no quotidiano, os critérios pelos quais distinguimos e avaliamos uma ficção não são os mesmos com que distinguimos e avaliamos uma ficção no domínio artístico. A confusão existencial que daí resulta acaba por minar a psique de personagens como Ichii, que se sentem fragmentadas em múltiplas vidas. A atomização do indivíduo promove a confusão entre uma vida real e ficcional: Ichii é o exemplo disso. A superficialidade ilusoriamente profunda que ele desempenha é-lhe suficiente numa sociedade que não exige um nível profundo de conexão social. E é assim que a confusão existencial se dissemina em Ichii, e como que justifica a busca por parte dos clientes dos seus serviços: o vazio existencial dos clientes é assim preenchido pela ilusão fornecida pelos serviços de aluguer de Ichii, numa simbiótica relação de mercadoria, erodindo as fronteiras que separavam o domínio público e materialista de um domínio sagrado, simbólico e secreto como o domínio privado.
Embora não uma obra maior da oeuvre de Herzog, Family Adventures, LLC apresenta uma reflexão actual sobre a relação ambígua entre ficção e realidade na sociedade contemporânea. A transposição dos mecanismos de artifício e ilusão dentro do domínio ficcional para o chamado domínio do real acarretam em si implicações que vão para além das meras questões estéticas, e que levantam várias interrogações sobre o modo como lidamos com a verdade e que tipo de realidade e verdade conseguimos discernir quando aceitamos quotidianamente a ilusão e o artifício e buscamos na arte um canal de naturalidade, honestidade e realidade. Os critérios pelos quais avaliamos uma obra de arte e uma vida bem vivida encontram-se numa profunda revolução, e tal não passou despercebido a Herzog.