Sobre o costumeiro pão de cada dia do Português Medieval, um estudo de caso

“A parte esmagadoramente maioritária deste cereal que os campos de Alcobaça produziam – com a necessária ressalva em relação à cevada – destinava-se à panificação. É certo que não pode excluir-se o consumo de uma pequena parte dos cereais de segunda [milho, centeio e cevada] em caldos, em papas ou em qualquer outra pasta mais ou menos consistente, preparações em que estes víveres já são bem aproveitados pelo organismo humano, mas aqui, nas terras de Alcobaça, com uma colheita tão mais avultada de trigo, esse consumo devia ser bastante minguado Todavia, a já mais que milenar tradição do consumo dos cereais panificados falava mais alto a todas as camadas da sociedade medieval, que, aliás, também a transmitiram aos seus descendentes e eles não deixaram morrer, até nos nossos dias, tradição que obrigava a que quase todo o cereal tivesse como destino, à saída do moinho, a entrada no forno. Não só em Alcobaça, como por toda a Europa. Sumariamente limpo na eira e recolhido no celeiro, o grão aí ficava, aguardando que viessem ensacá-lo para o transportar ao moinho. No domínio de Alcobaça, o cereal do convento, como o dos camponeses, era farinado nos moinhos senhoriais, direito que os monges, como os demais senhores do tempo, faziam questão de guardar. Na Abadia, aquando de cada moedura mediam-se, para o efeito, 30 alqueires de trigo. No moinho, esse cereal voltava a ser limpo, desta vez com mais minúcia e sofria quebras entre meio e 1 alqueire, “segundo ho trigo he lympo e çujo”, isto é, quebras que podiam oscilar entre 1,7% e 3,3%. O cereal era então moído, começando aí, efectivamente, o processo que o levaria à mesa de todos quantos se alimentavam no Mosteiro. A moagem era uma operação importante e dela dependia, em parte, o rendimento do cereal. Os engenhos moageiros – nos coutos de Alcobaça todos eles movidos a energia hidráulica – eram mecanismos com alguma complexidade e exigiam, no seu funcionamento, moleiro sabedor, para que o trabalho resultasse com qualidade. Porque muitas variáveis podiam interferir no processo. Para já era necessário que toda a engrenagem se encontrasse em bom estado de funcionamento e toda ela requeria muita atenção, sobretudo as rodas e as mós. Aquelas eram peças delicadas, muito grandes e exigindo na sua construção um avultado número de peças que teriam de se ajustar na perfeição; estas eram massas de pedra mais ou menos imponentes, que podiam medir entre 80cm e 1.40m de diâmetro por 25cm de altura, eram sempre monolíticos e muito difíceis de extrair, de confeccionar, de transportar. Exigiam ainda uma pedra de boa qualidade, sobretudo as que se destinavam à moagem do trigo, as chamadas mós alveiras, ou trigueiras, talhadas, preferentemente, em quartzite, o que podia implicar o seu transporte de muito longas distâncias. Não obstante desgastavam-se com rapidez e era mester serem reparadas, o que implicava a desmontagem da mó volante, a reparação de asperezas e ranhuras, trabalho feito com a ajuda de martelos especiais e lavor muito delicado. As próprias águas, sobretudo se podiam sofrer saltos bruscos ou laboravam em correntes de débitos de qualquer forma irregulares, podiam influir no resultado da moagem. E sobre a máquina exercia-se a habilidade do moleiro, a maneira como ele conduzia a mó volante sobre a dormente, a distância que colocava e mantinha entre ambas, tudo isto era decisivo para a maior ou menor finura da farinha resultante. O Mosteiro tinha vários moinhos e azenhas espalhados por todo o seu domínio e diversos outros fora dele mas, como é lógico, moía o seu grão nos que se localizavam nas imediações. Mas todos eles se encontravam equipados com mós alveiras – o que não excluía a coexistência, no mesmo engenho, de mós segundeiras – pelo que, em princípio, todos tinham a possibilidade ao menos teórica de produzir um trabalho de boa qualidade. Aqueles 30 alqueires de trigo que tinham dado entrada no moinho e agora saíam transformados em farinha, traziam um volume que podia oscilar entre os 34 e 36 alqueires – valor, este último, poucas vezes atingido – oscilações que, naturalmente, correspondiam à qualidade da moagem efetuada e também ao cereal. É preciso, no entanto, referir, que a medida utilizada não era sempre a mesma. O trigo fora medido pelo chamado alqueire do Sobrado, isto é, aquele que se utilizava nos celeiros centrais do mosteiro, de onde o grão saía e a farinha pelo alqueire “direito”, a que adiante voltarei a referir-me, um pouco menor que o primeiro e diferindo nele meia oitava. Isto é, medido que fosse o trigo por este último padrão, corresponderia a 31 alqueires e sete oitavas. Assim, o aumento de volume que a farinha representava relativamente ao grão era um pouco menor. Este aspeto, no entanto, é irrelevante para os cálculos de movimento a realizar, uma vez que eles se reportam, em todos os casos, à mesma medida. Era esta moedura completa que precisava agora sofrer um outro tipo de tratamento, antes de se poder com ela elaborar a massa, isto é, precisava ser peneirada. Era a peneiração uma das operações mais decisivas para o resultado final do processo e conforme se pretendesse um pão mais fino ou mais grosseiro, assim a operação teria de ser executada de forma diferente. Quando se queria um pão mais rústico a moedura peneirava-se apenas uma vez, por peneira de malha mais rala, de modo a retirar apenas os farelos; quando se queria um pão mais fino a operação continuava, agora com peneiras de rede cada vez mais apertada, de modo a que a farinha resultante fosse cada vez mais fina e pura. Por isso a variedade de peneiras que a documentação nos deixa vislumbrar, uma vez por outra, infelizmente muito poucas e sempre de forma muito breve: eram as peneiras alvas, de seda, de ante-mão, ralas ou de rara, até mesmo “meia peneira”. Talvez algumas delas, designadas de formas diferentes fossem iguais ou, pelo menos, muito semelhantes, mas talvez outras mais existissem, distintas destas e a que a documentação calou um apodo diferenciador. No Mosteiro fazia-se uso de muitas peneiras, que talvez se gastassem com alguma rapidez. Durante os três anos [1437-1439] em que a contabilidade monástica nos elucida acerca das compras efetuadas pelos monges foram adquiridas 31 peneiras, de que 18 de seda e 13 de rala. Os Monges comiam pão branco. Cada vez que no Mosteiro mediam-se, para o efeito, 10 alqueires de farinha que, após todo o processo de peneiração ficavam reduzidos a 5,5 e 6 alqueires. Isto, obtinha-se uma taxa de extração da farinha na ordem dos 55, 60%. Resultava assim aquilo a que chamavam o “poo branco”. Era a flor de farinha. […]”.

 – “À mesa nas terras de Alcobaça em Finais da Idade Média”, de Iria Gonçalves.