Sobre realismo e antirrealismo científico: o argumento do milagre

Uma breve revisão acerca de um dos argumentos mais influentes em favor do realismo científico, e também sobre três ataques ou desafios que lhe foram dirigidos. Texto de Carla Gonçalves Feliciano. Imagem: pormenor de A Escola de Atenas, Raphael, 1509, Stanza della Segnatura, Vaticano.

Debates about scientific realism are centrally connected to almost everything else in the Philosophy of Sciences, for they concern the very nature of scientific knowledge.

(Chakravartty, 2017)

Introdução

São vários os debates dentro da filosofia das ciências. Este ensaio estará centrado numa breve revisão acerca de um dos argumentos mais influentes proferidos em favor do realismo científico, e também em três ataques ou desafios que lhe foram dirigidos.

É importante, antes de avançarmos para a nossa exposição propriamente dita, conhecer o argumento do milagre — também conhecido como No-miracles, non-miracle, ultimate argument, ou pela sigla NMA. Por isso, na primeira parte será feita a apresentação do debate realismo-antirrealismo científico e do argumento do milagre. De seguida, serão apresentados três ataques (ou desafios) tradicionais ao argumento do milagre: o questionamento da inferência para a melhor explicação, a subdeterminação de teorias por evidência e a indução pessimista como um argumento do tipo Reductio ad absurdum. Na terceira parte será apresentada a resposta dos realistas científicos a estes desafios. Seguida de uma quarta parte em que se fala acerca da dimensão em que estes desafios põem em causa, se é o caso, a possibilidade de uma posição realista acerca da ciência. Na conclusão será apresentada, por fim, a minha posição como cientista e como (proto-) filósofa da ciência e como ela se enquadra neste debate tão rico e potencialmente “eterno”.

  1. Debate Realismo-antirrealismo científico e o argumento do milagre.
Hilary Putnam

O realismo pode ser descrito como a filosofia que defende a completa independência ontológica do mundo exterior relativamente à mente humana. De acordo com a posição realista acerca da ciência, as teorias científicas referem-se de forma literal ao mundo físico — às entidades observáveis ou inobserváveis que efetivamente existem. As nossas melhores teorias científicas dão-nos conhecimento acerca das entidades pertencentes ao mundo exterior à nossa mente e das leis que governam o seu comportamento (McCain, 2016). A verdade das nossas melhores teorias científicas é a melhor explicação para o seu sucesso e o realismo científico será a única filosofia que não fará do sucesso da ciência um milagre (Putnam, 1975). Sendo forçosamente o antirrealismo a posição que desafia a posição realista, ele diz, por seu turno, que não existe uma realidade objetiva tal como a conhecemos, que a realidade que conhecemos depende daquilo que, como humanos, conseguimos conhecer. Estes posicionamentos, realista ou antirrealista, podem ser assumidos de uma forma extrema (por exemplo, o realismo naïve, o idealismo e o ceticismo) ou moderada e podem ser gerais ou locais (assuntos particulares, por exemplo, outras mentes, eventos do passado ou do futuro, entidades materiais, entidades abstratas ou mesmo o pensamento ou o conhecimento). Quando o posicionamento diz respeito ao conhecimento científico estamos perante um debate muito específico dentro da área da filosofia das ciências. Em filosofia das ciências muitas das posições assumidas são enunciadas na forma proposicional e apresentadas como argumentos cujas premissas, sendo verdadeiras, encaminham o argumento para uma conclusão verdadeira. Dentro de debate realismo-antirrealismo acerca da ciência, em 1975, Hilary Putnan deu voz à posição realista acerca da ciência enunciando o argumento do milagre que assume a seguinte forma:

F1, F2, …, Fn são factos a ser explicados

A Hipótese (H) explica um conjunto de factos (Fi)

Nenhuma outra hipótese explica os factos (Fi) tão bem como a Hipótese H

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Assim se conclui que H é verdadeira

O argumento do milagre pode assim ser resumido da seguinte forma: existindo no mundo factos que queremos explicar, se tivermos uma hipótese H que explica um conjunto de factos, e nenhuma outra hipótese os explicar tão bem como a hipótese H, então concluímos que a hipótese H é verdadeira.

  1. Desafios ou ataques clássicos ao argumento do milagre

O debate realismo-antirrealismo acerca da ciência é muito ativo. Sendo o argumento do milagre um dos argumentos mais influentes em favor do realismo científico, ele torna-se o alvo mais frequente dos ataques antirrealistas. Para que se possa ilustrar essa dificuldade, vamos expor três ataques clássicos do antirrealismo científico:

  1. O ataque à inferência para a melhor explicação enunciado por Bas van Fraassen: neste ataque, Bas van Fraassen afirma que a utilização da inferência para a melhor explicação não é uma forma de raciocínio aceitável, e dessa forma o ataque é dirigido tanto à construção do argumento do milagre em si, bem como ao processo sugerido pelo argumento para a escolha da melhor hipótese H.

Passamos a explicar. A Inferência para a melhor explicação foi apresentada por Gilbert Harman em 1965 no seu artigo com o mesmo nome (Inference to the best explanation), em que é sugerida a escolha da melhor explicação por um processo de inferência que passa pela rejeição de todas as explicações alternativas, encontrando-lhes as fragilidades, até chegar à melhor explicação para os factos. Bas van Fraassen usa ainda o argumento da indiferença, em que sugere que a hipótese H será apenas a melhor hipótese de um mau lote de hipóteses e que o facto de ser a melhor explicação disponível não é o suficiente. Bas van Fraassen também afirma que o argumento do milagre falha por não providenciar boas razões para aceitar que as melhores teorias científicas são de facto verdadeiras. Bas van Fraassen continua o seu ataque ao realismo científico com o argumento da indiferença, onde diz que não sabemos nada de relevante acerca da melhor hipótese H que faça dela uma explicação verdadeira, apenas que ela pertence a um lote de más explicações que foram rejeitadas como falsas (podendo até haver outras hipóteses nas quais ainda ninguém pensou que expliquem igualmente bem os factos). Para Bas van Fraassen, é muito improvável, perante este cenário, que a hipótese H escolhida como a melhor explicação seja a verdadeira.

2. A subdeterminação de teorias por evidência é o segundo ataque aqui mencionado. Este ataque foi proferido por Laudan and Leplin em 1991, e pretende afirmar que para qualquer teoria científica existe uma teoria rival que explica igualmente bem os factos. Aqui a ideia é que se a evidência empírica não dá um maior suporte a uma teoria em particular relativamente a outra nunca haverá justificação credível para que essa teoria seja a verdadeira. A subdeterminação é um conceito em filosofia das ciências que nos diz que, a qualquer momento, a evidência irá ser insuficiente para suportar completamente uma teoria. Esta é uma posição fortemente cética acerca do conhecimento científico.

3. Por fim, a indução pessimista. Trata-se de um argumento Reductio ad absurdum que, pressupondo inicialmente que o sucesso empírico de uma teoria científica é um indicador confiável da sua verdade, faz um percurso proposicional que termina na conclusão: quando se olha para a história da ciência, descobrimos que ela consiste num vasto número de teorias empiricamente bem-sucedidas, que mais tarde foram rejeitadas por se ter concluído que eram falsas. Através de um raciocínio indutivo, este argumento leva à conclusão final de que é possível que as nossas teorias atuais sejam, também elas, falsas (se não ainda, poderão vir a ser), porque decorrentes das anteriores.

Respostas do realismo científico aos ataques antirrealistas

A inferência para a melhor explicação é um tipo de inferência indutiva que combina a prática inferencial e explicativa. Não existe nenhum motivo válido para considerar a inferência para a melhor explicação uma má opção de raciocínio. Mais a mais, se pode dizer, em socorro do que argumentamos, que a ciência tem um sólido corpo de saberes, construído ao longo do tempo, que se tem revelado confiável e que é incorporado nas práticas de construção das novas teorias científicas — o que aumenta a probabilidade de estas serem verdadeiras. Se os cientistas se deparassem com duas teorias tão próximas, e igualmente explicativas para os mesmos factos, eles não poderiam decidir qual escolher entre essas duas, nem qual o valor de verdade de cada uma delas. A atitude dos cientistas, nessa situação, seria continuar a procurar outra teoria que fosse adequada para explicar os factos.

A história da ciência mostra, efetivamente, fases de mudança de paradigma e com ela a mudança de conjuntos de teorias. Esses episódios estão, normalmente, associados à evolução tecnológica. Com a capacidade de fazer observações mais precisas do mundo é possível ter acesso a informação mais detalhada. No entanto, o que é mais habitual é que as teorias não sejam totalmente rejeitadas, mas sim que sofram processos de melhoramento ou refinamento ao longo do tempo. Kitcher, Psillos e Worrall respondem que as partes das teorias que são retidas são as partes responsáveis pelo seu sucesso empírico, as partes verdadeiras. Essas teorias tornam-se com o tempo teorias centrais para as ciências maduras. Dado isto, os realistas acerca da ciência consideram que a indução pessimista falha em providenciar um bom argumento para atacar o realismo científico (McCain, 2016).

Possibilidade de uma posição realista acerca da ciência

A posição do realismo científico perante os ataques antirrealistas passa pela consideração dos mesmos, valiosos para fomentar a reflexão, pelo que são, de modo geral, levados a sério. No entanto os realistas sobre a ciência consideram que os ataques antirrealistas ainda não conseguiram representar uma ameaça imbatível a uma conceção realista da ciência.

Conclusão

Nicolaus Copernicus

Alguém cuja vida esteja dedicada à ciência tem uma postura de aceitação da mudança bastante proativa. Os cientistas, de uma forma geral, não têm medo de ter de reorganizar as ideias se algo bastante radical acontecer dentro da ciência. Na verdade, os cientistas têm, em geral, cérebros plásticos e isso é uma vantagem quando é necessário aceitar a mudança. Apesar de, historicamente, a ciência ter sido confrontada com mudanças de perspetivas mais ou menos radicais, isso não retira a confiança nas nossas ciências maduras. Quanto às ciências mais complexas ou especiais (como as ciências biomédicas, por exemplo), elas estão a beneficiar de um período altamente tecnológico, onde o limite entre observáveis e inobserváveis se tornou fluído, onde se consegue transmitir o conhecimento acerca de níveis elevados de complexidade para níveis mais baixos de complexidade, através de engenharia biológica reversa, onde as mentes mais brilhantes de todas as áreas têm a possibilidade de estar em contacto, em redes de colaboração e de troca de conhecimentos, e a ciência tem ao dispor recursos como não há relato em outras épocas. Perante estas evidências, parece muito improvável que as teorias produzidas contemporaneamente (acerca dos observáveis e inobserváveis do mundo) sejam falsas de uma forma que comprometa a nossa confiança. Eventualmente poderemos questionar as consequências de tão rápido progresso, mas a verdade e o poder instrumental que têm revelado é bastante evidente.

A posição realista acerca da ciência exige o comprometimento total com os três níveis: metafisico, semântico e epistémico do realismo. Qualquer desvio desse comprometimento absoluto, dando espaço à dúvida, nos torna antirrealistas. Nestas condições, dificilmente alguém poderá afirmar-se como realista acerca da ciência, no entanto a maioria de nós será um antirrealista que, de forma justificada pela evidência, acredita no sucesso da ciência. Algo que, por sua vez, não impede a continuação do debate realismo-antirrealismo em filosofia da ciência. Tudo isto me leva a dizer que este é um debate que irá durar ainda muito tempo, se não “para sempre”.

Referências:

Chakravartty, Anjan, “Scientific Realism”, The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Summer 2017 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <https://plato.stanford.edu/archives/sum2017/entries/scientific-realism/>

Harman, GH; “The inference to the best explanation”, The philosophical review, vol. 74, No,1 (jan,1965), pp 88-95, Duke University Press.

McCain, K; “Anti-realism about science”, “The nature of scientific Knowledge”, Chap. 14, (2016), pp 219-232, Springer International Publishing.

Psillos, S. (1999). Scientific realism: How science tracks truth. London: Routledge.

Putnam, H. (1975). Philosophical papers, vol. 1: Mathematics, matter and method. Cambridge, UK: Cambridge University Press.

Silva, MR; “Realismo e anti-realism na ciência: Aspectos introdutórios de uma discussão sobre a natureza das teorias”, Revista Ciência e educação, 1998, 5(1), pp 7-13.

Scientific Realism (Stanford Encyclopedia of Philosophy) 19/12/2022 (último acesso)