Bioshock
E se um jogo não for apenas um jogo, mas sim uma experiência estética, ética e filosófica? Podemos responder a esta pergunta apresentando um caso que o ilustra perfeitamente, o Bioshock, conceptualizado por Ken Levine.
A nossa história começa quando emergimos como o único sobrevivente de um desastre de avião no meio do mar e procuramos refugio numa estranha estrutura que se revelará como a entrada de uma cidade subaquática. Esta foi uma tentativa de utopia pensada a partir das obras, da filosofia objectivista e do capitalismo laissez-faire de Ayn Rand, entretanto decaída pelas consequências das suas suposições de que a liberdade egoísta poderia levar ao melhor da civilização. Nesta sociedade desgraçada, onde o mercado livre e as experimentações genéticas completamente desreguladas um dia imperaram, vemos um extraordinário mundo subaquático no exterior e uma arruinada mas fabulosa arquitetura elaborada sobre um estilo arte deco que nos evoca antigos filmes de máfias e da lei seca. Ao longo da nossa jornada vamos conhecendo a história desta cidade, dos seus conflitos e das facções que surgiram em busca de Adam, o material genético que permitia ganhar poderes sobre-humanos e que ensandeceu boa parte da população sobrevivente que agora nos tenta matar. Durante o jogo somos encaminhados por uma voz de quem tentou salvar a cidade e agora nos orienta para a nossa salvação deste sitio, a qual só é possível eliminando o tirano que um dia proclamava a liberdade.
Pelo caminho somos obrigados a definirmo-nos éticamente (virtualmente?) pela existência de crianças inocentes (geneticamente transformadas) que podemos usar para obter Adam e obtermos poderes sobre-humanos para sobreviver a esta aventura. Mas para tal temos de matar estas crianças! Podemos não o fazer, mas as possibilidades de sobrevivência sem os poderes assim obtidos, diminuem consideravelmente. Cabe a cada pessoa saber se as matará ou não. No fim, numa mecânica narrativa brilhante, iremos questionar tudo o que pensávamos saber e todas as nossas acções. Não é por acaso que este jogo originou uma vasta literatura nos estudos de jogos e na filosofia que neles se debruçam.
Depois deste jogo a ética tornou-se uma questão incontornável para pensar os jogos.
Zelda: Breath of The Wild
Zelda: Breath of the Wild (Zelda: Respirar Selvagem), produzido por Eiji Aonuma para a Nintendo é considerado por muita gente o melhor jogo de sempre e o culminar do legado do inigualável génio de Shigeru Miyamoto (criador do Super Mario e dos Zelda originais),. Eventualmente é o expoente máximo de ideias de jogo que até então teriam apenas sido ensaiadas e que a partir deste momento devem ser pensadas relativamente a esta monumental obra.
Johan Huzinga, na sua obra Homo Ludens, faz a sua caracterização mais metafórica do jogo como um circulo mágico onde se suspende o mundo e a sua seriedade implacável. Neste jogo cria-se esse um mundo belíssimo e vivo, de uma graciosidade quase natural, a partir desse circulo mágico onde a liberdade é selvagem, onde se corre por planícies e montanhas, onde se nada nos lagos e sobem a arvores, onde se caça e cozinha, onde se fala com personagens e procuram-se segredos. É um mundo que também é um recreio. Este mundo permite uma dialéctica única, do jogo para com quem joga visto criar-se uma nova história pessoal por cada pessoa que o joga, é uma experiência única e rica. Mas esta liberdade está sobre um ataque selvático. A história do jogo começa cem anos antes do jogo quando Link, o nosso personagem e um dos heróis desta história, cai em combate a proteger a princesa Zelda, a heroína que durante este século impediu, sozinha, que o malévolo Calamity Ganon invadisse completamente o reino de Hyrule.
Acordando sem memórias estamos encarregados de relembrarmos o passado e juntar as forças necessárias para nos juntarmos à batalha e repelirmos o vilão. Também na história existe a liberdade que perpassa o jogo, podendo ser lembrada de uma forma não linear, ou nem ser lembrada. Mas quem o fizer é presenteado com uma magnifica narrativa e estética, por vezes subtilmente embebida em laivos da cultura japonesa. O jogo que sendo fruto da nossa liberdade tem um sabor de uma vivência, de algo que ocorre na nossa vida e não de um testemunho da experiência de outrem.
Certamente, temos aqui o circulo mágico de que Huzinga falava.
Pokemon Go
Provavelmente um jogo de vídeo precisa de um mundo e de personagens, mas quem diz que esse mundo não pode ser o nosso e nós mesmos as personagens? Depois do fenómeno do Pokemon Go, provavelmente ninguém.
Em 2016, a Nintendo em parceria com a Niantic lançaram um dos mais revolucionários jogos de realidade aumentada e geolocalização, em que as e os jogadores, munidos do seu telemóvel têm de percorrer o mundo real à procura de Pokemons. Tal jogo lançou centenas de milhões de pessoas para a rua, para longe do conforto da sua casa e da televisão e para o contacto com dois mundos, o real (que nunca deixa de lá estar), e o novo mundo virtual e ficcional que é sobreposto ao mundo real. Para além da popularidade, que levou a consequências sociais e culturais bastante curiosas, resultando de uma imensidão de contactos entre pessoas que nunca se teriam realizado e de fenómenos como multidões a “invadir” áreas pouco populares com um variado e curioso leque de consequências à escolha, alguns positivos mas certamente nem todos.
O jogo que na altura quebrou quase todos os recordes de popularidade teve a virtude de levar o quem joga até ao mundo real e ensaiar aquela que me parece primeira grande tentativa de fusão entre o real e o virtual em larga escala. Quem desconhece-se o jogo veria mares de gente, jogadores e jogadoras de todas as idades, a procura de coisas que “não existiam” e possivelmente poderiam dizer estarem alienadas da realidade, mas estariam? Será o mundo que percepcionavam, uma mistura do real e do virtual, irreal? Será tal mundo misto menos valoroso do que o normal? Ou será tal “alienação” uma consequência de forças sociais que não são evidentes?
Estas perguntas são hoje prementes na sociedade em geral e ainda sem resposta definitiva em muitos casos, mas podemos estar certos de que o lúdico nos irá baralhar, ainda mais, as nossas respostas.
Ludografia
Pokemon Go (Mobile), 2016, Niantic, Nintendo e The Pokemon Company