Um ensaio que propõe o seguinte paralelo: será que a soberania está para o Estado como a dignidade o está para a pessoa humana? Imagem: Painel de Almada Negreiros (1956), à entrada da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Imagem da página principal: https://en.wikipedia.org/wiki/International_law#/media/File:Grotius_-_De_jure_belli_ac_pacis,_1680_-_206.tif. Ensaio de Joana Rebocho. Revisão de João Freitas Mendes.
Uma Equiparação Entre a Dignidade da Pessoa Humana e a Soberania do Estado – o Uso da Força Recorrente e a Necessidade de Reforma do Direito Internacional
Será que a soberania está para o Estado como a dignidade o está para a pessoa humana? Kant foi pioneiro na conceção do homem enquanto fim em si mesmo, e não um simples meio, não lhe sendo possível atribuir um preço graças ao seu valor imaterial “carimbado” pela sua condição humana, que precede e justifica a sua dignidade. A dignidade da pessoa humana pode, e deve, ser entendida de acordo com o princípio material que lhe está subjacente. Tendo por base a obra de Pico della Mirandola e a ideia da dignitas-hominis, chegamos ao princípio antrópico que acolhe precisamente a noção “do indivíduo conformador de si próprio e da sua vida segundo o seu próprio projeto espiritual”[i] que impõe um travão à ação política no reconhecimento do homem enquanto meio e que vê a pessoa humana, na sua dignidade, enquanto razão de ser e limite do domínio político.[ii] Mas se é verdade que o homem é digno na sua condição, também é um facto que dada a sua natureza social este, enquanto membro de uma comunidade, necessita de integrar a esfera pública onde irá encontrar semelhanças e criar cumplicidades com os seus pares, até uma quiçá empatia, mas também irá entrar em conflitos de interesses. Para que não vença o egoísmo, porque tanto num caso como no outro há sempre vestígios de um espírito aproveitador numa das partes, assim é a natureza humana, como nos dizia Hobbes, cabe ao Direito, na sua função em prol da Justiça, dar um “polimento” a estas situações, atenuá-las. Porque na sua igualdade, o homem é desigual dos outros, o que resulta da ou em que resulta a sua dignidade também, tal como cada Estado, devendo estar num patamar aos olhos do Direito, igual ao do outro é diferente deste, com toda uma história, toda uma economia, toda uma cultura e povo que o caracterizam, mas se assim não fosse talvez não se justificasse a sua soberania, pois só da diversidade resulta a riqueza.
Decidi começar com esta pequena reflexão pois na medida em que existe uma personalidade jurídica singular, atribuída ao homem, enquanto sujeito de direito, também é a personalidade jurídica internacional que confere aos Estados a capacidade de se envolverem em situações jurídicas, nomeadamente através da regulação das relações externas, contribuindo ainda para a formação das tais organizações internacionais como é o caso da ONU.
A analogia feita inicialmente entre a soberania dos Estados e a dignidade da pessoa humana teve como escopo tentar explicitar o modo como tanto a soberania dos Estados, como a dignidade da pessoa humana, se revelam condição fundamental para se admitir um princípio de igualdade entre sujeitos de direito.[iii]
Esta dupla-caracterização de Estado interessa-nos particularmente naquele que visa ser o objeto de reflexão deste trabalho, a reorganização do mundo e a crise do Direito Internacional, na medida em que as organizações internacionais surgiram exatamente com o propósito de solucionar os conflitos através do Direito, no âmbito da manutenção da paz e Kelsen vem-nos dizer que só através da igualdade soberana dos Estados, como pilares, se podem erigir estas organizações.
A questão da igualdade já foi anteriormente abordada e clarificada, portanto irei agora tentar explanar em que medida a soberania dos Estados se revela também fulcral neste sentido.
A soberania dos Estados pode ser mal entendida, no sentido em que a única acessão que lhe esteja prevista seja exatamente a de uma “autoridade suprema”, o que seria, para além de errado, bastante perigoso pois assim cairíamos numa tendência absolutista em que determinado Estado poderia impor a sua autoridade a outro. É precisamente isto que se visa evitar, pois através desta soberania dos Estados, cada Estado não é só soberano na medida em que lhe é garantida uma independência jurídica em relação a um outro, mas também no sentido em que todos os Estados devem ser submetidos, apenas e só, à autoridade do direito internacional, este que deveria então ser promovido pelas tais organizações internacionais.[iv]
Esta ideia é corroborada através também do contributo de Kant que justifica a defesa dos direitos de um povo independente como segurança da autonomia de todos os Estados pela não interferência de um Estado, pela força, na vida institucional do outro. Este, ao querer afastar uma intervenção “pela força”, vem abominar qualquer tipo de submissão entre povos, como forma de terminar um conflito, promovendo portanto a ultrapassagem dos mesmos através do Direito, um mecanismo instrumentalizado com vista à Justiça e que, por isso mesmo se deve alicerçar em critérios de juridicidade, “pela força da razão”, e não de poder político, “pela razão da força”.[v]
“Socorrendo-nos” agora de todas estas construções chegamos aquele que visou ser talvez o projeto, no âmbito da defesa do Direito Internacional, mais promissor, a ONU. Assente portanto no princípio da igualdade soberana de todos os seus membros, com vista à manutenção da paz e segurança internacionais, à promoção da cooperação internacional para a resolução de problemas do foro, económico, cultural, social e humanitário, sendo um centro destinado então à harmonização, ao desenvolvimento de relações amistosas tendo por base a persecução de um fim comum revela-se para nós chocante, e até mesmo triste, quando esta organização criada com tanta ambição não consegue, numa ironia, promover aquele que deve ser o seu escopo prioritário, o respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. E neste caso nem mesmo os positivistas se conseguem alicerçar de documentos, de tratados, o que seja, na medida em que mesmo a Carta das Nações Unidas é constantemente desautorizada, desrespeitada, quando observamos um contínuo uso da força para legitimar posições que não podem, pleonasticamente, ser legitimadas por essa mesma imposição.[vi]
É este sucessivo uso da força, sustentado por uma certa fragilidade, associada a uma impotência, da lei internacional que permite não só o tal desrespeito pela igualdade soberana dos Estados, mas consequentemente por todos os iguais que os compõem, pela dignidade de todos homens, em que cujos direitos fundamentais se elevam e as garantias se fundam.
A imposição pela força da vontade de um Estado sobre o outro, aproveitando-se de uma fraqueza a certo ponto institucional e política do mesmo, só é consentida na medida que pela maior robustez do primeiro numa visão internacional, os restantes Estados acabam por ignorar estes acontecimentos com a desculpa de uma sustentação num interesse maior, procurando até não se envolver para não alimentar o conflito. E esta indiferença, com um certo travo de receio, acaba por fomentar uma ideia (errada) que há neste uso da força uma qualquer utilidade que acabará por proporcionar uma maior felicidade ou até uma maior segurança a um mais vasto número de pessoas, numa perspetiva utilitarista. Mas se quisermos entrar nesta aceção também não podemos esquecer a definição de felicidade que nos é dada por Stuart Mill[vii], pois que se esta significa o contrário de infelicidade, de dor e ausência do prazer e nós estamos a privar aqueles sobre os quais é exercida a força da mesma, submetendo-os mesmo à dor, ao não reconhecimento da sua dignidade, das suas garantias, então tal nunca será possível no domínio do Direito. Se esta visão utilitarista se revela desde logo incompatível com o texto da lei (Carta das Nações Unidas) muito mais inadmissível será no âmbito do Direito, pois que carece de juridicidade e fere tudo aquilo que a Justiça almeja alcançar. Relembremo-nos, neste sentido, da definição que nos é dada por Ulpiano[viii], uma das mais famosas da enciclopédia jurídica de sempre em que a justiça nos é apresentada como sendo “a constante e perpétua vontade de dar a cada um o seu direito” e não, obviamente, de o privar do mesmo ou até de lho retirar à força.
Ser digno significa ser merecedor, então a dignidade da pessoa humana assenta no mérito, que não precisa de ser ganho porque está implícito na condição humana, em lhe serem reconhecidos e respeitados os seus direitos, liberdades e garantias. Já ser soberano implica uma certa supremacia, mas esta é uma supremacia “disfarçada” ou “aparente”, pelo menos assim o deveria ser, na medida em que não pode funcionar como forma de auto-enaltecimento e imposição perante outro Estado mas apenas como entrave a que qualquer tipo de dominância da parte de outro seja exercida sobre um Estado.
No entanto, apesar de já nos ser um ponto assente que a soberania do Estado também seja relativa na medida em que há uma submissão conjunta de todos os Estados a um ordenamento internacional, quanto à dignidade da pessoa humana já não nos é tão fácil pintar esta imagem de uma possível relativização da mesma face seja ao que for. Só esta hipótese aparenta uma total negação daquilo que deve ser esta dignidade, pois se a mesma concebe este mérito, fundado apenas naquilo que a biologia determina, que é a condição humana, para um reconhecimento de direitos, liberdades e garantias então subentende-se que o mesmo seja oponível erga omnes, que seja exigível e legítimo o seu reconhecimento perante todos. Mas o “todos” não é, nem pode ser, o sinónimo do “tudo”, no sentido em que a dignidade de uma pessoa tem que estar em conformidade com a soma das dignidades de outros. Isto significa que a soma das dignidades do conjunto seja superior à soma da dignidade de um par? Não, nada disso, aí assentaríamos numa visão utilitarista daquilo que é o ser humano, conceção abominada anteriormente sendo que a pessoa deve ser vista como um fim em si mesmo e nunca como um meio. Se assim fosse cairíamos numa antítese onde o próprio conceito de dignidade da pessoa humana seria deitado por terra. Esta ideia não é tão nítida, e pode tornar-se até confusa, mas se pararmos um pouco e pensarmos naquilo que está subjacente aos direitos, liberdades e garantias encontramos o dever e a responsabilidade. Portanto a condição humana e a sua dignidade não só acarretam a expectativa de recognição por todos de direitos, liberdades e garantias como, consequentemente, pressupõem o dever de respeito pelos demais dos seus iguais e a responsabilidade de defender não só a sua dignidade como a de toda uma espécie, a de toda uma condição humana.
Desta forma, se funda também a ideia de única aposição a um Estado, na sua soberania, de um ordenamento comum, pois esse ordenamento, que deve ser fundado numa lógica de Direito, e não de poder, deve visar antes de mais, e é essa a sua responsabilidade, defender cada Estado, para assegurar uma união e não impor vontades, que refletem sempre uma superioridade de um, ou de um grupo restrito de Estados, perante outros. O Direito em geral, mas o Direito Internacional em específico, pois dada a visibilidade e universalidade que a globalidade pressupõem, devia assentar em regras e não em leis, pois as regras, emanadas com auctoritas, são reconhecidas, têm legitimidade, e mais facilmente são observáveis, já as leis, que derivam de um imperium, mais frequentemente são acatadas pelo medo do castigo do que pela razão da norma, e é associado a este poderio de imposição, de fazer com que os outros acatem em vez de reconhecerem, que está implícita uma lógica de dominância. Esta que antes de ser travada na sua raiz, não deixará que qualquer Carta das Nações Unidas ou outro documento escrito lhe exija aquilo que não pode dar, pois se no cerne deste Direito Internacional não há uma auctoritas, mas apenas encontramos imperium, dominância, o uso da força, por mais encoberto que se encontre estará sempre latente, nem que seja sob a forma de uma ferida interna, invisível a olho nu.
O professor Vera Cruz fala numa necessidade de repersonalização das sociedades humanas[ix], pois eu acho que o fundamental é uma “repessoalização” das mesmas. Pois antes destas terem uma personalidade, uma identidade definida que justifique uma soberania enquanto Estado, estas precisam de ser fundadas e erigidas naquilo que é a pessoa humana e na defesa da sua dignidade. E aqui está o foco da questão, pois enquanto os Estados não estiverem preparados para tal, como unidade, por mais que achemos que é essa a missão do Direito Internacional, então também não vão estar preparados para respeitar um ordenamento comum. Antes de olharmos para fora é necessários fazer uma introspeção, assim a primeira reforma a ser feita não é ao Direito Internacional, à forma como foi teorizado, não é este que está em crise, mas sim às instituições em que estes Estados se organizam e em que, passo a redundância, se espelha a sua desorganização interna face à conceção de Direito.
A primazia da pessoa perante o grupo, reflete a dignidade da sua condição e só quando cumprida e verificada pode dar soberania a uma nação, pois a um Estado que não respeite a pessoa não se lhe pode sequer ser atribuída essa denominação.[x]
Creio que aqui a utilização da expressão “sociedades humanas” deve ser entendida como formas de organização da espécie humana, diferente de humanidade que representa o conjunto de todos os seres humanos sem que lhe esteja implícita qualquer forma de estruturação ou ordem.
Para melhor percebermos esta conceção de “sociedades humanas” recorramos aos primórdios da organização política, mais concretamente às cidades-estado gregas. Recorrendo ao ponto de partida dado pela Antiguidade Clássica, podemos concluir que o surgimento da cidade-estado implica a entrada do indivíduo numa outra ordem que não a privada, mas sim do domínio público. O que implica cedências, uma reciprocidade naquele que é o respeito do direito e a consciência do dever, mas que é fundamental dada a condição social do homem e necessária à vida em comunidade.[xi]
Mas é importante também aqui entendermos que a integração em duas ordens distintas, por parte do homem, não significa que uma não tenha prevalência sobre a outra, numa hierarquia relativa àquele que deve ser o teor das suas relações. Pois na medida em que é a existência da pessoa humana que precede uma vida comum e a sua interação em comunidade[xii], então o projeto da vida política deve ser especificamente defender a sua dignidade e na generalidade das suas outras funções assegurar sempre o respeito pela mesma, nunca, por razão alguma, atropelá-la, o que acontece sempre que se verifica o uso da força no “âmbito” do Direito Internacional qualquer que seja o fim em questão.
Contudo se é errado o uso da força, que não tem qualquer critério de juridicidade, dada a sua conotação associada à maldade, por outro lado também não é através de uma bondade cega[xiii] entre Estados que um ordenamento jurídico se faz impor e que a justiça é alcançada, pois apesar de não acreditar que um qualidade fulcral do Direito seja ser prático, creio profundamente que este tem que ser praticável para que se torne eficaz ao seu fim.
Desta forma, as organizações internacionais não podem imprudentemente encobrir ações militares ou o lançamento de bombas sobre Estados com o argumento de assim erradicarem o terrorismo, pois vidas inocentes serão certamente lavradas, mas ao mesmo tempo não podem apenas promover um acolhimento de refugiados em Estados, que apesar da sua segurança e organização, não têm condições para os receber em massa pondo em causa as mesmas. No mesmo sentido não podemos retirar o financiamento e a ajuda a Estados que precisam, com fundamento na corrupção das instituições, pois o primeiro a sofrer será um povo que na grande maioria das vezes não tem voz nem representatividade, como também não podemos irrefletidamente enviar “cabazes” recheados sem nos certificarmos que estes chegam a sanar as verdadeiras dificuldades de quem as sente.
Se por um lado o Direito Internacional não pode ser monopolizado e legitimar ações totalmente injustas e que violam nitidamente o seu propósito também não pode querer atenuar, através de “caridades pantanosas”, o visível, pois na prática isso só irá acentuar mais as desigualdades.
A equiparação da soberania do Estado à dignidade da pessoa humana poderia ser acusada de falibilidade se considerássemos que enquanto a dignidade da pessoa pressupõe apenas a existência de um ser humano para ser reconhecida, a soberania do Estado implica um poder absoluto assumido e observado pelos cidadãos a nível interno e um poder autónomo reconhecido no plano internacional. Todavia, esta suposição é uma redonda falácia, que assenta não na questão da soberania mas do reconhecimento da mesma a formas de organização política que nada têm que ver com um Estado e, portanto, não deveriam ser consideradas “soberanas”.
Tomando por exemplo o caso do movimento xiita libanês Hezbollah, altamente criticado por António Guterres por funcionar como milícia armada e partido político no Líbano, chegando o Secretário-Geral da ONU a pedir que o mesmo suspendesse as atividades militares que exerce. Quando estamos perante uma organização destas, política, paramilitar fundamentalista islâmica xiita que é um enorme comando na política libanesa e que influencia portanto diretamente aquilo em que assenta este Estado, poderá ser-lhe reconhecida alguma soberania? Na medida em atua sob a força, intervindo e potenciando ataques? Bem, a resposta cruamente será: tem que ser!
Se tal não acontecesse então provavelmente seríamos acusados de discriminação, de um sentimento de superioridade só pela grande massa do mundo ocidental ser regida por Estados laicos. Mas no entanto também podemos questionar este tipo de soberania que se quer impor internamente, não querendo que outros se interponham, que quer ser respeitada na sua diferença mas que não tolera e ataca tudo o que é diferente, que não respeita aquilo que é defendido num ordenamento internacional. Esta no entanto, é também uma visão muito perigosa porque pode, lá está, incentivar uma resposta por aqueles que se revoltam com este tipo de posturas, também ela através do uso da força e sem qualquer critério de juridicidade. Pois agora, fazendo a contraposição com a pessoa humana, mesmo o maior criminoso, o maior psicopata e sociopata, o homem mais maldoso, tem que ser visto pelo Direito na sua dignidade enquanto ser humano. Independentemente das atrocidades que este cometa contra o Direito, o Direito nunca pode ser totalmente afastado de si, a sua dignidade humana jamais pode ser esquecida. Embora tal não invalide, claro, uma atuação na sua esfera própria para restrição dos seus direitos, liberdades e garantias na medida em que não cumpre com o seu dever primordial que é respeitar os direitos humanos, seja esta através da aplicação da pena de prisão, extradição ou até internamento no caso de ser comprovado distúrbio psicológico.
No caso dos Estados não há essas hipóteses, não se pode reter, aos olhos da Justiça, um Estado, não se pode extraditá-lo ou obrigar que aqueles que são o seu povo o abandonem por falta de condições[xiv] (ou não se deveria poder) e muito menos interna-los, submete-los aos cuidados de outros, que neste caso seria a imposição de um ordenamento de outro Estado ao Estado em questão e o tratamento a terapia de choque, pelo recurso à força.
É importante também percebermos que independentemente da aceção política dada ao conceito de Estado, o princípio da igualdade soberana é um conceito jurídico. E por ser uma criação do Direito deve submeter-se a tudo aquilo que este defende e só ser reconhecida a Soberania e a Igualdade a quem faz por defender a dignidade da pessoa humana.[xv]
Sendo que o Direito, enquanto agente no ordenamento interno, tem como principal destinatário de normas e princípios as pessoas, singulares ou coletivas, verifica-se a existência de uma relação muito mais próxima daquilo que é o ser humano na sua forma individual. Já o Direito Internacional tem que ser dirigido a Estados, mas nunca pode perder o seu âmbito que é a salvaguarda da pessoa humana.
Uma submissão a um ordenamento internacional por parte de um Estado não pode tornar os seus cidadãos submissos. A liberdade que é uma garantia da espécie decorrente da sua dignidade desaparece totalmente sempre que sobre esta se recorre ao uso da força.[xvi]
Neste sentido não houve falta de tentativas no que toca a projetos para o produto em vista, como foi o caso do espelhado na Carta das Nações Unidas. Como também acontece com muitas constituições nominais que não se fazem observar. Talvez aqui o Direito se devesse inspirar um pouco nas ciências exatas, concretamente na Matemática em que primeiro observa-se e só depois se teoriza, por isso neste ramo não há acusações de utopias ou hipocrisia. Já a Física e a Biologia, por sua vez, mesmo que recorram a hipóteses como ponto de partida para os seus estudos, as suas teorias só são acolhidas se tiverem uma base de sustentação sólida e forem comprovadas. Não basta apelar à paz[xvii] se para se travarem guerras se iniciem novos conflitos, tal como não basta defender um princípio de igualdade soberana se esse não se fizer refletir numa representatividade igual dos Estados nas formas de organização internacional.[xviii]
Tomando agora por comparação o crime sexual cometido entre pessoas singulares, as crianças são abusadas, no grosso dos casos, por pessoas muito próximas de si e até da sua família. O que é triste e ao mesmo tempo uma incoerência porque deveriam ser estes os primeiros a protegê-las e a visar conservar a sua inocência própria da infância. Também é um facto que encontramos esta contradição quando as organizações internacionais que deveriam ser as primeiras a defender o princípio da igualdade soberana e a promover a paz, mobilizam intervenções que não coincidem com os propósitos humanitaristas.[xix]
A reforma que deve ser feita no âmbito do Direito Internacional, não deve incidir na teorização que foi feita pois tal como o reconhecimento de uma personalidade jurídica singular deve assentar na dignidade da pessoa humana, também para se consagrar uma personalidade jurídica internacional a um Estado tem que ser assumida a sua igual soberania.
A violação recorrente dos direitos fundamentais do homem não acontece pela falta da sua consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem nem por falta do seu acolhimento pelas várias constituições mas sim porque muitas destas sendo nominais ou semânticas os desrespeitam visivelmente dentro até do próprio ordenamento interno, outras assumindo-se como formais e fazendo-se observar dentro do seu Estado, não fazem transpor estes princípios para aquele que visa ser um ordenamento comum. De salientar, que geralmente até defendem práticas totalmente ilegítimas fundando-se na defesa dos seus princípios nacionais. Ora o nacionalismo nunca pode ser aposto ao interesse público e ao bem comum internacional, afastando o princípio da igualdade soberana, tal como a vontade de um ser ou de um grupo não pode atentar contra a dignidade da pessoa humana, pois estremece toda a humanidade.
Apesar da dignidade da pessoa humana se fundar na admissão da existência desse ser para o Direito, também é condição que exista uma comunidade de homens que a reconheça. Assim também a soberania do Estado consubstancia a organização política mas prevê que o conjunto de restantes Estados materialmente a assumam e respeitem. Na mesma lógica decorre a conformidade das funções levadas a cabo pelas organizações internacionais com a vontade de uma maioria de Estados que as integram.[xx]
“O Direito não vai a votos”, como disse repetidamente o professor Vera Cruz, pois aqui além do “Direito” ir a votos temos atuações destas organizações em consentimento com a potencialidade dos Estados que exercem a força.
A deficiência do homem e incompletude da sua condição por não se bastar num enquadramento natural biologicamente determinado faz com que tenha a necessidade de recorrer à organização da sua comunidade. Uma organização que não se fica pela ação política mas que para ser legítima e acolhida necessita de se fundar no Direito.
Podemos dizer que para vingarem estas formas de organização política, com fundamento jurídico, têm que assentar na fidedignidade das suas instituições.[xxi]
É nas instituições, nas organizações internacionais, de Direito Internacional e na forma como se constituem, apresentam e atuam que se centra a crise do Direito Internacional.
Havendo um recurso à força de imposição constante, este reflete uma corrupção e uma monopolização destas instituições fortemente centralizada, absorvida e digerida conscientemente. Em que todos veem, mas onde ninguém atua. Em que poucos exacerbam a sua posição, mas onde todos têm culpa porque compactuam.
Aquela que deveria ser a virtude cívica deste tipo de projetos, promover tolerância na forma como nos confrontamos e relacionamos com os nossos “adversários”, aqueles que discordam de nós, foi totalmente dissimulada e desprezada por uma maior representatividade de alguns Estados que acabam por se impor perante outros.
Por conseguinte está lançada a carta com o trunfo que nos mostra exatamente onde incide a necessidade de reforma do Direito Internacional e que não nos permite “fazer batota”.
Recuperando a ideia inicial desta exposição, uma equiparação entre a dignidade da pessoa humana e a soberania do Estado, rematarei com recurso a um excerto da obra de Primo Levi, Se Isto é um Homem, p.57:
“Quando se trabalha, sofre-se e não se tem tempo para pensar: as nossas casas são menos do que uma lembrança. Mas aqui o tempo está por nossa conta: de cama para cama, apesar da proibição, trocamos visitas, e falamos, falamos. A barraca de madeira, apinhada de humanidade doente, está cheia de palavras, de recordações e de outra dor. “Heimweh” chama-se em alemão esta dor; é uma palavra bonita, significa “dor pela casa”.
Sabemos de onde vimos: as recordações do mundo externo povoam os nossos sonos e as nossas vigílias, apercebemo-nos com espanto de que nada esquecemos, todas as memórias evocadas surgem diante de nós dolorosamente nítidas.
Mas, para onde vamos, não sabemos. Conseguiremos talvez sobreviver às doenças e escapar às seleções, talvez também resistir ao trabalho e à fome que nos consomem: e depois? Aqui, momentaneamente afastados das blasfémias e das violências, podemos voltar a nós próprios e meditar, e é então que se torna claro que não teremos regresso. Viajámos até aqui nos vagões selados; vimos partir em direção ao nada as nossas mulheres e as nossas crianças; reduzidos a escravos marchamos mil vezes para trás e para diante, numa fadiga muda, já apagados nas almas antes da morte anónima. Não temos regresso. Ninguém deve sair daqui, pois poderia levar para o mundo, juntamente com a marca gravada na carne, a terrível notícia do que, em Auschwitz, o homem teve coragem de fazer ao homem.”
Este testemunho passado por Primo Levi retrata a atroz realidade experienciada pelo mesmo durante um ano vivido no campo de concentração de Auschwitz.
A autenticidade e iniludibilidade desta narrativa, leva-nos a refletir sobre aquilo que é a condição humana e os seus limites, sobre aquele que foi um dos períodos mais marcantes e sombrios ao nível do Direito em que o positivismo, sem juridicidade, legitimava aos olhos de muitos atos que tanto atentaram contra a humanidade, que tanto violaram a dignidade da pessoa humana, pela consideração de uma supremacia racial perante outra.
Também ao nível do Direito Internacional, na atualidade, vislumbramos estes reflexos dentro das organizações.
Estados que se impõem perante outros, acreditando serem mais desenvolvidos, sustentados por políticas económicas mais eficazes e até admitindo, quase com uma fé ofuscada, que o seu ordenamento interno é superior ao do outro e por isso lhe deve ser imposto.
O “trabalho” árduo de que fala Primo Levi no início que não lhe permite pensar pode ser transposto para esta realidade sob a forma das Guerras que se travam nos países sobre os quais é exercida a força e que por isso não têm disponibilidade nem oportunidade para se reorganizarem mantendo a sua essência acabando por ceder usualmente àquele que domina.
As “barracas de madeira” apinhadas de gente prontamente podem retratar as barracas dos campos de refugiados construídos por organizações internacionais onde vítimas de uma crise humanitária recordam uma casa, um Estado que outrora existia, porque o Estado só existe enquanto o seu povo, os cidadão a que é destinado, permanecer.
Aqueles que vão para onde não sabem, que caminham sem direção embalados pelo vento que se faz sentir da força exercida, que marcham mil vezes, para trás e para diante, podem facilmente representar os pobres e os oprimidos submetidos a um domínio político que não pode ser reconhecido enquanto Estado ou as crianças-soldado que na sua ingenuidade, sem que lhes seja permitido sequer o “porquê?” próprio da infantilidade obedecem a vozes comando cobardes que não se deixam conhecer e travam lutas contra outros que piores são pois que enquanto Estados não deviam expor assim a sua condição.
Discordo, no entanto, quando o autor nos diz que não há regresso possível, que ninguém deveria sair daquela condição pois poderia confrontar as restantes sociedades humanas com a mesma. Esta saída e esta exposição foram imprescindíveis no século XX para que as sociedades humanas tomassem consciência do que se estava a passar e a humanidade pudesse subsistir.
Hoje é essencial que a crise que o Direito Internacional sofre seja revelada, que as organizações que fundam neste a sua existência sejam questionadas e reformuladas, pois de outra forma será impossível a subsistência tanto destes projetos políticos como dos Estados em si.
A fragilidade da defesa da condição humana face à sugestão do mal é a mesma que um Estado apresenta quando não o visa vencer e cede à corrupção.
Do mesmo modo que a condição humana tem que ser estimulada para que possa existir[xxii] e permanecer também o Estado tem que ser constantemente relembrado dos seus fins, alimentado de valores para que materialmente perpetue ao longo do tempo.
Como a condição humana é premissa necessária ao reconhecimento da sua dignidade, também só através da existência de um Estado se pode assumir a sua soberania.
Nos mesmos moldes em que só pela defesa da dignidade da pessoa humana se arranjam forças para combater movimentos totalitários populistas dentro de uma nação, só pelo reconhecimento material da soberania dos Estados será possível proceder a uma reforma eficaz do Direito Internacional que pressuponha a abolição, de uma vez por todas, do uso recorrente da força.
A igualdade seja da pessoa humana seja entre Estados opera portanto não numa uniformização que negue as características individuais de cada qual dando primazia à de um sobre o outro mas reconhecendo de igual modo cada um na forma como se apresenta. Não se trata aqui, por conseguinte de uma “igualdade fáctica” mas de uma “igualdade jurídica”.[xxiii]
Como defendeu o sofista Antifon: “Deus criou todos os homens livres a nenhum fez escravo.”.
A existência de Deus pode ser discutível mas qualquer que seja a crença religiosa ou a inexistência da mesma, perante o homem e uma pluralidade de comunidades, inquestionável é a igualdade na sua dignidade tal como na soberania do Estado que a pretende observar.
[i] Pico della mirandola, Discurso Sobre a Dignidade do Homem
[ii] J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 225, Gomes Canotilho diz: “Perante as experiências históricas da aniquilação do ser humano (inquisição, escravatura, nazismo, stalinismo, polpotismo, genocídios étnicos) a dignidade da pessoa humana como base da República significa, sem transcendências ou metafísicas, o reconhecimento do homo noumenon, ou seja, do indivíduo como limite e fundamento do domínio político da República. Neste sentido, a República é uma organização política que serve o homem, não é o homem que serve os aparelhos político-organizatórios.”
[iii] H. Kelsen, A Paz pelo Direito, pág. 32, Kelsen defende: “A expressão “igualdade soberana” provavelmente quer dizer soberania e igualdade, duas características em geral reconhecidas dos Estados como sujeitos de direito internacional. Falar de igualdade soberana justifica-se na medida em que ambos os atributos são normalmente concebidos como associados um ao outro. A igualdade dos Estados é quase sempre explicada como uma consequência da sua soberania ou se esta implicasse a primeira.”; é de salientar que a ideia de igualdade soberana entre estados já havia surgido com o tratado de Vestefália, em 1648.
[iv] H. Kelsen, A Paz pelo Direito, p.33: “Com a expressão figurada “ser sujeito” não se quer dizer nada mais, nada menos que a relação de sujeitos de direito com uma ordem jurídica que lhes impõe deveres e confere direitos. A soberania dos Estados, como sujeitos de direito internacional, é a autoridade jurídica dos Estados sob a autoridade do direito internacional. Se soberania significa autoridade “suprema” a soberania dos Estados como sujeitos de direito internacional não pode significar autoridade suprema absoluta, mas tão somente uma autoridade suprema relativa; a autoridade jurídica do Estado é “suprema” na medida em que ele não está sujeito à autoridade jurídica de nenhum outro Estado. O Estado é “soberano” porque está sujeito apenas ao direito internacional, não ao direito interno de Estado nenhum. A soberania do Estado segundo o direito internacional é a independência jurídica do Estado em relação aos outros Estados.”
[v] E. Kant, Para a paz perpétua, p.60, Kant diz: “Nenhum Estado deve interferir, através da força, na constituição e no governo de outro. Pois o que lhe daria direito a isto? Talvez o facto de escandalizar os súbditos de outro Estado? (…) Assim, o facto de um terceiro Estado prestar ajuda a uma das partes não poderia ser considerado como uma intromissão na constituição de outro Estado (porque existe somente anarquia). No entanto, enquanto esta luta interna não se dê por terminada, a interferência de potências estrangeiras seria uma violação dos direitos de um povo independente que combate uma enfermidade interna; seria, inclusive, um escândalo e colocaria em perigo a autonomia de todos os Estados.”
[vi] M. Luísa Duarte e R. Tavares Lanceiro, O Direito Internacional e o uso da força no Século XXI, p.7: “À beira de fazer vinte anos, o século XXI oferece-nos o palco assustador de um Mundo perigoso e imprevisível. A lei internacional sobre a proibição do uso da força, vertida na Carta das Nações Unidas, sofre, como nunca aconteceu desde a sua entrada em vigor em 1945, no epílogo da tragédia sangrenta da II Grande Guerra, desautorizações constantes e continuadas que erodem a sua função normativa, penhor de estabilidade das relações internacionais.”
[vii] J. Stuart Mill, Utilitarismo, p. 47, Stuart Mill diz: “Entende-se por felicidade, o prazer e a ausência de dor; por infelicidade, a dor e a ausência do prazer. (…) O prazer e a ausência de dor são as únicas coisas desejáveis como fins; e todas as coisas desejáveis são-no pelo prazer inerente a elas mesmas ou como meios para a promoção do prazer e a prevenção da dor.”
[viii] Ulpiano, D. 1. 1. 10.: “a justiça é a constante e perpétua vontade de dar a cada um o seu direito”
[ix] E. Vera Cruz, Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito, p. 20, Vera Cruz diz: “Este Direito à procura de Justiça tem de ser cumprido pelas sociedades humanas no século XXI, no sentido da sua repersonalização.”
[x] Segundo Gomes Canotilho, o conceito de Estado em direito constitucional e em direito internacional não é coincidente. Neste sentido, debruçando-nos sobre o segundo, podemos encontrar três elementos constitutivos do Estado em que o poder político é direcionado e justificado pela existência de cidadãos, encontrando portanto o seu fundamento na pessoa humana. Assim J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 90: “A soberania , em termos gerais e no sentido moderno, traduz-se num poder supremo no plano interno e num poder independente no plano internacional. Se articularmos a dimensão constitucional interna com a dimensão internacional do Estado podemos recortar os elementos constitutivos deste: (1) poder político de comando; (2) que tem como destinatários os cidadãos nacionais (povo = sujeitos do soberano e destinatários da soberania); (3) reunidos num determinado território.”; segundo a obra de Karl Doehring, Allgemeine Staatslehre, Müller Verlag, Heidelberg, p.18
[xi] Werner Jaeger, Paideia, III, p. 111, sobre o surgimento da cidade-estado e as duas ordens em que o cidadão agora integraria: “além da sua vida privada, uma espécie de segunda vida, o seu bios politikos. Agora todo o cidadão pertence a duas ordens de existência; e há uma grande diferença na sua vida entre aquilo que lhe é próprio (idion) e o que é comum (koinon)”
[xii] Hanna Arendt, A Condição Humana, p.40, Arendt diz: “Contudo, embora certamente só a fundação da cidade-estado tenha possibilitado aos homens passar toda a sua vida na esfera pública, em ação e em discurso, a convicção de que estas duas capacidades humanas são afins, além de serem as mais elevadas de todas, parece haver precedido a polis e ter estado presente no pensamento pré-socrático.”
[xiii] Neste sentido, Maquiavel, O Príncipe, cap. 15, que numa tentativa de associar a ação política ao critério da glória ensina os homens “a não serem bons”. Também acredito que aqui que a soberania dos Estados, tal como o respeito pela dignidade humana, devem transcender a bondade, pois esta sendo uma virtude deve ser praticada involuntariamente e sem promoção, enquanto que o reconhecimento da soberania dos Estados tal como a dignidade da pessoa humana devem ser constantemente relembrados para que a sua prática seja consciente e, sobretudo, perpétua.
[xiv] mal comparado, podíamos pensar aqui nos casos de violência doméstica em que muitas vezes são as vítimas que para evitaram a violação dos seus direitos são obrigadas a prescindir do seu lar e a ficarem “aprisionadas” numa casa-abrigo com vista à sua proteção.
[xv] E. Vera Cruz, Curso Livre de Ética e Filosofia do Direito, p.211, II. A Pessoa no Homem, Vera Cruz diz: “De todas as formas de vida na Terra o homem tem uma dignidade única que lhe confere um estatuto jurídico exclusivo, pois o Direito é uma criação do homem para o homem, no imenso espetro de implicações que a afirmação comporta. Só o homem pode proteger com direitos os outros seres da criação.”; Aqui podemos através da interpretação assumir que o Estado e a sua soberania e igualdade só podem ser protegidos enquanto criação, criação esta humana e para o homem.
[xvi] Novamente fazendo referência aquilo que foram os primórdios de uma organização política e jurídica eficazes e à observância da progressiva decadência do Direito, nomeadamente da atividade jurisprudencial quando a auctoritas foi substituída pelo poder político, imperium; ver Hannah Arendt, A Condição Humana, p. 94: “Os termos dominus e paterfamilias eram, portanto, sinónimos como os termos servus e familiaris: Dominum patrem familiae appellaverunt; servus… familiares (Séneca, Epístolas 47. 12). A antiga liberdade do cidadão humano desapareceu quando os imperadores romanos adoptaram o título de dominus “
[xvii] A propósito da abordagem liberal à paz se ter tornado “cada vez mais parte integrante e condicionante das diferentes formas de intervenção internacional aos níveis económico, social e político do pós-Guerra Fria” (M. L. Duarte e R. Tavares Lanceiro, O Direito Internacional e o uso da força no século XXI, p. 345); a propósito ver também o discurso de tomada de posse como Secretário-Geral das Nações Unidas de António Guterres: “The United Nations was born from war. Today, we must be here for peace”.
[xviii] M. L. Duarte e R. Tavares Lanceiro, O Direito Internacional e o uso da força no século XXI, p. 345, “No Conselho de Segurança os países em desenvolvimento não estão adequadamente representados, verificando-se um desequilíbrio entre a Europa, América do Norte e Ásia, e as restantes regiões do planeta, nas quais aliás se situam muitos dos problemas para os quais se pede hoje às Nações Unidas que encontrem soluções.”
[xix] Segundo a interpretação de M. L. Duarte e R. Tavares Lanceiro da GA Resolution A/RES/60/1 of 24 October 2005, O Direito Internacional e o uso da força do Século XXI: “Esta doutrina estipula que cabendo ao Estado proteger as populações no seu território, se este falhar nesse seu dever cabe à comunidade internacional a responsabilidade de proteger as populações afetadas, inclusivamente através do uso coletivo da força decidida pelo Conselho de Segurança. A potencialidade da doutrina não vem sem dilemas e desconfianças relativamente a desvios que a sua aplicação possa sofrer no sentido de poder ser mobilizada para justificar intervenções que não coincidam com os propósitos humanitaristas que a informam.”
[xx] Hans Kelsen, A Paz pelo Direito, p. 40, Kelsen diz: “No que diz respeito às funções governamentais da futura comunidade internacional, cuja tarefa será manter o “sistema de segurança geral” dificilmente podemos esperar uma competência mais satisfatória que aquela que o Pacto da Liga das Nações conferiu ao Conselho e à Assembleia. Ambos foram estorvados pelo princípio da igualdade soberana cautelosamente mantido pelo Pacto, o princípio de que nenhum Estado pode ser obrigado sem a sua vontade nem contra ela. Por consequência, ambas as agências só podiam tomar decisões que obrigassem os membros unanimidade de votos e, como sempre, com o consentimento dos membros cujos interesses fossem afetados pela decisão.”
[xxi] J. Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p.8, Baptista Machado refere: “Ontogeneticamente inacabado, abandonado pelos instintos (nele muito rudimentares e inespecíficos), “aberto para o mundo” mas, por isso mesmo, inseguro e desorientado, exposto à tentação e ao caos – eis como os antropólogos visionam o ser hominal na perspectiva da antropobiologia. Daí a necessidade radical que o homem tem das instituições. Estas servirão de base a um consenso sobre o certo e o errado, sobre o justo e o injusto, sobre o que vale e o que não vale, garantindo assim a segurança nas relações entre os homens, ao mesmo tempo que permitem a cada homem encontrar-se e definir-se num contexto ou universo significativo.”
[xxii] Lucien Malson, a propósito da importância da civilização, necessidade de socialização, de convivência com o outro, reconhecimento deste e aprendizagem com o mesmo, no seu livro As Crianças Selvagens, diz-nos: “Será preciso admitir que os homens não são homens fora do ambiente social, visto que aquilo que consideramos ser próprio deles, como o riso ou o sorriso, jamais ilumina o rosto das crianças isoladas.” Está cientificamente comprovado que o homem, enquanto criança (altura em que a estimulação é mais proveitosa e determinante), responde reflexivamente ao exemplo e não graças à forma da reprimenda. Do mesmo modo o uso da força entre Estados não tem qualquer conotação positiva ou benéfica pois irá incentivar no outro uma resposta semelhante, se não igual, o que impossibilita a instauração da paz.
[xxiii] J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, p. 428. Gomes Canotilho diz: “A fórmula “o igual deve ser tratado igualmente e o desigual desigualmente” não contém o critério material de um juízo de valor sobre a relação de igualdade (ou desigualdade).”