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O Papel dos Espaços Desportivos Enquanto Repositórios de Memórias

Introdução:

Os espaços desportivos são capazes de transcender a sua materialidade e imobilidade para serem constituídos enquanto repositórios da memória coletiva, na medida em que podem ser tidos em conta como mais do que simples instalações destinadas à prática ou à exibição de desportiva. Assim sendo podemos referir-nos aos estádios, pavilhões e outros recintos, enquanto “lugares de memória”[1], como propôs Pierre Nora, uma vez que nestes convergem dimensões materiais, simbólicas e funcionais, que, por sua vez, sustentam a construção identitária de comunidades inteiras, neste caso, de massas adeptas.

No contexto desportivo, o património imaterial manifesta-se nestes espaços através das narrativas neles partilhadas, sejam estas os rituais coletivos, ou os conhecimentos transmitidos entre gerações, que, por sua vez, promovem práticas culturais[2]. Deste modo, os espaços desportivos podem ser vistos como um “factor de aproximação, intercâmbio e entendimento entre os seres humanos”[3], na medida em que fomentam estes três princípios. É possível referir que os espaços desportivos promovem: a aproximação, uma vez que funcionam enquanto pontos de encontro, onde pessoas de diferentes origens sociais se reúnem com um propósito em comum; o intercâmbio, porque existe a troca de experiências, conhecimentos e emoções entre adeptos; e entendimento, na medida em que pode ser construída a mediação de conflitos através de valores comuns[4].

O presente trabalho propõe-se a analisar o papel dos espaços desportivos enquanto locais privilegiados para a construção, preservação e transmissão da memória coletiva. Assim sendo, pretendo refletir sobre o modo como estes espaços funcionam enquanto verdadeiros elos entre passado e presente, entre o material e o imaterial, entre a prática desportiva e a construção cultural de identidades, temas estes que suscitam importantes questões sobre a preservação deste património. De modo a tornar esta reflexão mais concisa, abordarei o caso do Estádio do Restelo, devido à dimensão da sua história.

Breve Enquadramento Teórico:

Segundo a Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial, desenvolvida pela UNESCO, o património imaterial está interligado com: (…) “práticas, representações, expressões, conhecimentos e aptidões — bem como os instrumentos, objectos, artefactos e espaços culturais que lhes estão associados — que as comunidades, os grupos e, sendo o caso, os indivíduos reconheçam como fazendo parte integrante do seu património cultural”[5].

É necessário, portanto, referir a importância que o património material exibe para que seja possível conservar o património imaterial, uma vez que os objetos/espaços podem transportar em si inúmeras memórias[6]. Assim sendo, opto por me focar nos espaços culturais, neste caso, nos espaços desportivos, tendo-os em conta enquanto “lugares de memória” [7], seguindo a perspetiva de Pierre Nora. Estes apresentam-se enquanto elementos importantíssimos para a compreensão do Estádio do Restelo, uma vez que se estabelecem enquanto espaços que possuem um significado especial para uma comunidade, trabalhando enquanto pontos de referência para a memória coletiva[8].

Os Espaços Desportivos Enquanto Repositórios da Memória Coletiva:

Aquando da sua inauguração, sobre uma antiga pedreira, no dia 23 de setembro de 1956, o Estádio do Restelo estabeleceu-se enquanto um verdadeiro monumento, que contou com o reconhecimento de milhares de associados de todas as classes, e dos mais vários cantos do mundo, afirmando que sem eles a vivência deste momento não seria possível[9], na medida em que muitos destes reforçaram monetariamente o Clube de Futebol “Os Belenenses” através de um contributo financeiro voluntário, que superou os 34 mil contos, na altura[10].

Neste espaço, presente na paisagem ocidental de Lisboa, em Belém, celebraram-se muitas conquistas desportivas, fator esse que levou o Belenenses a obter importantes condecorações, por exemplo, “Comendador da Ordem Militar de Cristo e Oficial da Ordem de Benemerência”, tornando este clube numa Instituição de Utilidade Pública[11]. Esta obra, conduzida pelos arquitetos Carlos Manuel Oliveira Ramos e Jorge Manuel Teixeira Viana, influenciou a mudança da cidade quando foi inaugurada, uma vez que delimitava o fim da cidade. Esta funciona enquanto um marco geográfico que teve uma enorme importância para o crescimento da zona de Belém, sendo ainda hoje um bem inestimável ao serviço de Lisboa[12]. Nas palavras de Acácio Costa: (…) “Um sonho belo que se transforma em realidade… Francamente, às vezes parece-me que sonho ainda!…”[13]

É possível, seguindo a frase acima citada, transmitir a ideia de que os espaços desportivos são, de facto, verdadeiros repositórios de memória, do ponto de vista imaterial, através da associação do espaço à nostalgia e ao afeto. No entanto, ao visitar o Estádio do Restelo, também me deparei com um depósito de memórias mais físico, tangível. Refiro-me aos bustos de Vicente[14] e Matateu[15] (fig.1) e ao relevo de José Manuel Soares «Pepe»[16] (fig. 2), presentes no muro à entrada do estádio. Estes, ao representarem figuras importantes da história do clube de Belém, transportam-nos à imaterialidade, contando e eternizando as memórias em torno de estes importantes “fenómenos”, proporcionaram a esta instituição, fabricando o seu legado histórico.

Assim sendo, é certo afirmar que o Estádio do Restelo funciona enquanto um “lugar de memória”, na medida em que, como referido inicialmente, converge em si as dimensões materiais, simbólicas e funcionais, que, por sua vez, sustentam a construção identitária de comunidades inteiras, neste caso, das suas massas adeptas. O espaço desportivo do Clube de Futebol “Os Belenenses” caracteriza-se enquanto um “lugar de memória” uma vez que é utilizado tanto pelas suas dimensões materiais, através das referências físicas ao seu passado, quanto pelas suas dimensões simbólicas, através das suas estórias, do afeto e da nostalgia associados ao espaço; e também pela sua dimensão funcional, na medida em que este é visitado e frequentado para prática desportiva e para a observação da mesma.

Práticas de Transmissão e Salvaguarda:

Segundo Ramshaw, o reconhecimento de uma “casa”, no contexto desportivo, oferece à comunidade que a engloba não apenas um ponto de orgulho cívico, mas também um destino às gerações futuras, que aí a preservam através do seu gosto pelo desporto[17]. Este envolvimento é também aquilo que vai salvaguardar o património em torno do espaço desportivo, na medida em que este se estabelece através dos contactos entre familiares e/ou amigos, de geração em geração[18]. Nesta medida, é possível afirmar que a partilha das histórias acerca dos tempos áureos do Belenenses, através da utilização de referências orais e da construção de monumentos em torno dos “ídolos” do clube, como é o caso dos já referidos Vicente e Matateu, é tida enquanto uma das principais práticas de transmissão e salvaguarda deste património. Estas partilhas podem ser realizadas tanto através do relato oral, com os avôs a transmitirem aos netos feitos do passado, como recordações suas de partidas às quais assistiram, quanto através da visita ao espaço desportivo. Ainda assim, outro fator que, com certeza vai ajudar a manter estas “lendas” vivas é a venda de merchandising (figs. 6 e 7) que contenha alusões ao passado da instituição, uma vez que, a nostalgia, o afeto e a empatia se estabelecem enquanto elementos preponderantes para a preservação patrimonial[19].

Reflexão e Conclusão:

Segundo Bromberger, os espaços desportivos (estádios) são elementos de exaltação ao sentimento de pertença em comunidade[20]. É através dele que se transmite o amor ao clube, e é nele que são construídas memórias, como, por exemplo, a primeira partida assistida com a companhia de um familiar, a celebração de uma vitória histórica, ou simplesmente o sentimento de conforto e de afeto que se tem ao frequentar o mesmo lugar durante anos. É possível referir, portanto, que os espaços desportivos transcendem a sua funcionalidade primária e que se compõem enquanto elementos fundamentais à manutenção de uma identidade clubística e de uma comunidade local, neste caso a identidade Belenense, pertencente à comunidade de Belém.

Em suma, é possível afirmar que, de certo modo, é graças aos monumentos desportivos, neste caso, referindo-me ao Estádio do Restelo, o qual se estabelece como um derradeiro “Estádio-Museu”[21], que estas estórias serão preservadas, memorizadas e transmitidas às futuras gerações, preservando o património desta instituição. Assim sendo, os espaços desportivos são, enquanto “lugares de memória”, um caso de estudo fascinante para a compreensão das comunidades que os rodeiam, na medida em que nos podem transmitir a memória coletiva das mesmas, através de uma contínua negociação entre gerações passadas e futuras, entre as respetivas permanência e transformação.

Concluindo, é possível afirmar que os espaços desportivos não se estabelecem enquanto meros locais de prática desportiva. No caso do Estádio do Restelo, é justo tê-lo em conta enquanto um verdadeiro repositório da identidade coletiva de Belém, na medida em que surge enquanto um espaço de diálogo intergeracional, onde as memórias são depositadas, preservadas e reinventadas. O caso do Clube de Futebol “Os Belenenses” ilustra perfeitamente de que modo os “lugares de memória” acabam por contribuir para que se construa um sentimento de pertença, o qual é estruturante para a preservação patrimonial da identidade e das memórias coletivas de Belém enquanto um todo.

Figuras:


Figura 1 – Bustos de Vicente e Matateu.

Uma imagem com Escultura em pedra, Cara humana, estátua, Artefacto

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Figura 2 – Relevo de “Pepe”.

Uma imagem com chão, ar livre, texto, pedra arredondada

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Figura 3 – Placa de homenagem a Vicente.


Figura 4 – Placa de homenagem a Vicente.


Figura 5 – Placa de homenagem a “Pepe”

Uma imagem com vestuário, T-shirt atlética, T-shirt, parte de cima

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Figura 6 – Merchandising alusivo a fotografias históricas.

Bibliografia:

BROMBERGER, Christian (1995). Le Match de football: Ethnologie d’une passion partisane à Marseille, Naples et Turin. Paris: Édition de la MSH.

Fontal, O. (2020). Cómo Educar En El Patrimonio – Guia práctica para el desarrollo de actividades de educación patrimonial. Comunidad de Madrid.

Iber museos (2015). VI Encuentro Nacional de Patrimonio: lugares de la memória. Mincultura. Disponível em: https://www.ibermuseos.org/pt/recursos/noticias/vi-encontro-nacional-do-patrimonio-lugares-de-memoria/#:~:text=Um%20lugar%20de%20mem%C3%B3ria%20pode%20ser%20definido,sua%20verdade%20simb%C3%B3lica%20e%20sua%20realidade%20hist%C3%B3rica. Consultado a 17-04-2025.

NORA, Pierre (2008). Los Lugares De La Memoria. Ediciones TRILCE. Disponível em: https://archive.org/details/nora-pierre.-los-lugares-de-la-memoria-ocr-2008/page/1/mode/1up. Consultado no dia 16-04-2025.

RAMSHAW, Gregory; GAMMON, Sean (2005). More than just Nostalgia? Exploring the Heritage/Sport Tourism Nexus. Journal of Tourism, 10(4), pp. 229-241.

RAMSHAW, Gregory. (2021) Sport Heritage. Clemson University. DOI: 10.4324/9780367766924-RESS38-1.

ROSA, Acácio. FACTOS, NOMES E NÚMEROS da História do CLUBE DE FUTEBOL «OS BELENENSES». Tipografia SFFF (C.R.L). 1.ª Parte. Livro cedido pela atual direção do Clube de Futebol «Os Belenenses».

SILVA, Rui; Macedo, Edgar; Tibério, João (2021). Estádio do Restelo – A História do Estádio. Camisa Azul – Revista Autónoma de Cultura Belenenses.

UNESCO (2003). Convenção Para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial.

  1. (NORA, 2008).
  2. Neste contexto, as “práticas culturais” a que me refiro são: comportamentos, tradições ou costumes que se desenvolvem em torno dos espaços desportivos. Estas podem estar relacionadas a claques (cânticos, coreografias, celebrações…); tradições pré e pós-jogo (trocas de galhardetes, encontros tradicionais em cafés/restaurantes…); linguagem própria (uso de expressões que só fazem sentido para os membros de uma determinada comunidade…); práticas comemorativas (maneiras específicas de celebrar vitórias, homenagear figuras históricas…); entre outros aspetos.
  3. (UNESCO, 2003, p.2).
  4. A mediação de conflitos através de valores comuns pode ser registada, por exemplo, através do entendimento em torno da importância do “terceiro tempo”. Esta tradição, que consiste num convívio pós-jogo entre equipas rivais, é muito utilizada em modalidades como o rugby enquanto um mecanismo integrador e de resolução de tensões que possam ter surgido durante a partida.
  5. (UNESCO, 2003, p. 3).
  6. É importante estabelecer um paralelismo entre a religião e o desporto. Quando falamos de festividades religiosas, é natural que associemos conceitos e memórias aos edifícios religiosos, por exemplo. No caso do desporto, é também natural que sejam associados momentos, memórias e histórias aos espaços desportivos. Existe, deste modo, uma conexão entre o material e o imaterial, através da nostalgia e do afeto.
  7. (NORA, 2008).
  8. (IBER MUSEOS, 2015).
  9. (ROSA, 1984).
  10. (SILVA, 2021).
  11. (ROSA, 1984).
  12. (SILVA, 2021, p 3).
  13. (Ibidem, 2021, p.20).
  14. Através da placa que o homenageia (fig.3), é possível observar que Vicente é visto enquanto uma referência para todos os adeptos do Belenenses, sendo considerado o “eterno capitão”. Disputou 317 jogos ao serviço do clube do Restelo, vencendo a Taça de Portugal de 1960. Foi também um dos primeiros jogadores de origem africana a jogar ao serviço da Seleção Nacional Portuguesa, juntamente com o seu irmão Matateu. É graças a si que existe a expressão tradicional “Corta, Vicente!”, na gíria desportiva.
  15. Através da placa que o homenageia (fig. 4), podemos observar que Matateu é considerado o maior ídolo da História do Belenenses. Foi o “artilheiro” do campeonato nacional nas épocas de 1952/53 e 1954/55. Jogou 291 jogos ao serviço do clube do Restelo e conquistou a Taça de Portugal de 1960, no decorrer dos mesmos. Foi também um dos primeiros jogadores de origem africana a jogar ao serviço da Seleção Nacional Portuguesa, juntamente com o seu irmão Vicente.
  16. Através da placa que o homenageia (fig.5), podemos observar que “Pepe” estabeleceu-se enquanto um “ídolo” não apenas pelos adeptos do Belenenses, mas também pelos aficionados da seleção portuguesa. Foi um atleta admirado por todos os amantes de desporto da sua altura, tendo sido uma figura exemplar, de dedicação e esforço, que perdeu a sua vida abruptamente, com 23 anos, vítima de envenenamento. Este monumento foi construído em sua homenagem por subscrição pública nacional, e oferecido pelos clubes portugueses ao Belenenses, num verdadeiro ato de diplomacia e amizade.
  17. (RAMSHAW, 2005).
  18. (RAMSHAW, 2021).
  19. (FONTAL, 2020).
  20. (BROMBERGER, 1995).
  21. (SILVA, 2021, p. 74).