
A sua posição era ambígua: ao contrário dos homens, que sofriam trabalhos forçados brutais, Elizabeth foi poupada a essas tarefas, mas viveu sob o peso da violência sexual iminente. Libertada graças a negociações entre Marrocos e a Grã-Bretanha, casou-se depois com Crisp, com quem teve dois filhos, embora o casamento fosse marcado por dificuldades financeiras e pela falência do marido.
Seguiu-o para a Índia, deixando os filhos alternadamente aos cuidados de familiares. A sua vida foi marcada por afastamentos familiares, solidão e sintomas que hoje se poderiam identificar como trauma psicológico. O seu livro, onde descreve o seu cativeiro, “The female captive: a narrative of facts, which happened in Barbary, in the year 1756, written by herself”, publicado anonimamente em 1769, deu-lhe algum rendimento e notoriedade. Foi também uma obra pioneira, oferecendo uma perspectiva feminina sobre a escravidão e as ameaças sexuais sofridas por mulheres europeias cativas no Norte de África.
Depois da morte de Crisp, Elizabeth continuou a viajar, inclusive pelo interior da Índia, acompanhada por George Smith, um seu parente e oficial britânico. Morreu em Calcutá em 1785.
Há mouros na costa!
A captura e a escravidão de europeus cristãos no Norte de África, sobretudo entre os séculos XVI e XIX, constitui um fenómeno que marcou tão profundamente comunidades inteiras do espaço mediterrânico e atlântico que a maior parte das vilas fundadas naqueles tempos se situam longe da costa.
Portugal, pela sua localização geográfica e pela sua intensa actividade marítima, esteve entre os reinos mais atingidos por esta realidade.
As cidades de Salé, em Marrocos, e Argel constituíram os principais centros corsários dos séculos XVII e XVIII, constituindo os cativos cristãos e os europeus renegados islamizados uma parte considerável da sua população e o corso o seu principal meio de subsistência.

As maiores zonas de concentração de cativos portugueses foram Fez, Salé, Tetuão, Marrakech, Larache, Alquácer-Quibir, Argel, Tunis e Constantinopla. De todos estes lugares parece que o pior era o da cidade tunisina, daí o lema antes no inferno que em Tunes.
A existência de cativos significava reais possibilidades de incrementar a agricultura e as grandes construções públicas. Numa primeira fase, os cativos eram propriedade pessoal dos seus donos. Com Mulay Ismail, todos os escravos passaram a ser propriedade do sultão que, por direito, ou os comprava a 250 libras cada ou simplesmente procedia ao seu confisco. Com eles conseguia-se mão de obra em quantidade e a baixos custos, sendo apenas necessário dar-lhes um módico de roupa e de comida.
Para resolver o problema da libertação dos cativos cristãos, desde cedo são constituídas ordens religiosas para este fim. A Ordem da Santíssima Trindade e a Ordem de Nossa Senhora das Mercês são duas que, nos estados ibéricos, desde o século XIII, se vão dedicar a esta obra de assistência. As preocupações eram dobradas com o resgate de mulheres – que, concebendo, contribuíam para o aumento do número de infiéis – e com as crianças – que corriam o perigo de perder a fé e de converter-se ao islamismo.
As maiores zonas de concentração de cativos portugueses foram Fez, Salé, Tetuão, Marrakech, Larache, Alquácer-Quibir, Argel, Tunis e Constantinopla. De todos estes lugares parece que o pior era o da cidade tunisina, daí o lema antes no inferno que em Tunes.
A existência de cativos significava reais possibilidades de incrementar a agricultura e as grandes construções públicas. Numa primeira fase, os cativos eram propriedade pessoal dos seus donos. Com Mulay Ismail, todos os escravos passaram a ser propriedade do sultão que, por direito, ou os comprava a 250 libras cada ou simplesmente procedia ao seu confisco. Com eles conseguia-se mão de obra em quantidade e a baixos custos, sendo apenas necessário dar-lhes um módico de roupa e de comida.
Para resolver o problema da libertação dos cativos cristãos, desde cedo são constituídas ordens religiosas para este fim. A Ordem da Santíssima Trindade e a Ordem de Nossa Senhora das Mercês são duas que, nos estados ibéricos, desde o século XIII, se vão dedicar a esta obra de assistência. As preocupações eram dobradas com o resgate de mulheres – que, concebendo, contribuíam para o aumento do número de infiéis – e com as crianças – que corriam o perigo de perder a fé e de converter-se ao islamismo.
O caso da fragata portuguesa “Cisne”, capturada em 1802 por corsários argelinos, com a consequente morte de dezenas de marinheiros e a escravização de mais de trezentos homens e 36 rapazes, estes todos sodomizados, não foi um episódio isolado: antes, inscreve-se numa longa tradição de violência corsária, de humilhação nacional e de perdas humanas devastadoras.

Durante a abordagem, os Portugueses tiveram mais de 50 mortos. Os 350 sobreviventes, 52 deles feridos, foram aprisionados e reduzidos à condição de escravos.
O desastre da “Cisne”, considerado pelo Príncipe Regente D. João como uma “desastrosa e incompreensível perda”, não era inédito. Três anos antes, o bergantim de guerra “Lebre” sofrera o mesmo destino. Portugal não conhecia uma humilhação tão grande às mãos dos magrebinos desde 1621, ano da rendição da nau da Índia “Conceição”.
Agora, no início do século XIX – tal como em 1621, ou em 1578, com Alcácer Quibir – o país era obrigado a lidar com duas cruas realidades: a imediata perda de súbditos altamente qualificados para um inimigo de religião diferente e a perspectiva de, a médio e a longo prazo, ter que abrir os cordões à bolsa para os reaver.
Havia também uma outra realidade da qual pouco se queria falar: a de se perderem definitivamente as pessoas para o Islão. De facto, das 36 crianças que seguiam a bordo da “Cisne” – todas violadas pelos seus amos – vinte renegariam a fé cristã, permanecendo na Argélia como islamizados.
Desde a consolidação da presença otomana em Argel, no início do século XVI, o corso berberisco transformou-se numa atividade estruturante da economia política do Magrebe.
A pirataria, que existia no Mediterrâneo desde sempre, transformou-se em actividade corsária e ganhou então novo ímpeto, agora apoiada numa rede institucionalizada que incluía portos fortificados, mercados de escravos e sistemas de resgate.
Para os reinos cristãos da Península Ibérica, isto significava viver sob a permanente ameaça de razias costeiras e ataques no mar.

Aos perigos do mar, havia que acrescentar a pirataria berberesca como risco acrescido a todos aqueles que pescavam ou viajavam pelo mar. As viagens marítimas e a pesca eram responsáveis por mais de metade das cativações, com as Berlengas e o cabo São Vicente a serem as zonas preferidas de emboscada pelos navios magrebinos.
Se os navios e as cargas eram imediatamente vendidos, os cristãos cativados no mar eram transportados para o Magrebe, onde aguardavam a venda ou troca por outros prisioneiros.
Domingos, natural de Estombar, contou à Inquisição, em 1558, que fora cativado quando andava num bergantim ao largo de de Faro, que fora levado para Larache e depois Tetuão, tendo sido resgatado dois anos depois. Liberto, voltara a pescar no Algarve, fora novamente cativado, sendo vendido ao mesmo dono que tivera aquando do primeiro cativeiro.
João da Costa, de Angra, foi cativado por franceses, quando se dirigia para o Brasil, sendo levado para La Rochelle e posteriormente abandonado na Biscaia. Perseverante, apanhou boleia num navio até ao Porto, de onde embarcou novamente para o Brasil. Voltou a não concluir viagem porque foi de novo cativado, desta vez por magrebinos.
Pescadores, comerciantes, soldados ou simples viajantes podiam, de um momento para o outro, ver-se reduzidos à condição de cativos. Houve quem saísse de Sines numa segunda-feira para ir pescar a poucas centenas de metros da costa e acordasse na sexta-feira com grilhetas nos pés em Argel.
A vulnerabilidade era particularmente notória em regiões como o Algarve ou os arquipélagos atlânticos, onde aldeias inteiras, como nas ilhas do Porto Santo, Santa Maria ou Canárias – chegaram a ser despovoadas após incursões magrebinas que levaram escravizados todos os seus habitantes.

Aos 13 anos, quando era aprendiz de alfaiate, fugiu aos espancamentos do dono e entrou clandestino numa embarcação corsária que acabou por ser tomada por cristãos franceses, junto a Marselha.
Estes, tomando-o por mouro, fizeram dele cativo das galés, andando forçado ao remo pelo Mediterrâneo fora.
Um ano depois da sua cativação, a galé em que servia aportou a Lisboa, sendo aí vendido a um taberneiro por 20 mil reais – o que testemunha o fenómeno inverso: a venda de muçulmanos cativos a cristãos.
Aconteceu então ser reconhecido pelo religioso, que o baptizara, podendo então regressar ao Porto Santo.
Aqui vemos a primeira página do seu processo na Inquisição e que começa: “Luís, que esteve cativo (…)”
O estatuto do cativo cristão em Argel, Tetuão, Salé ou Tunes variava segundo a sua origem, profissão e possibilidade de resgate. Nobres e oficiais eram, por regra, alvo de melhores condições, pois esperava-se deles um resgate vultoso.
Mas para a esmagadora maioria, o destino eram os “banhos” – masmorras sobrepovoadas, escuras, onde se sobrevivia manietado em ferros e em condições degradantes. O seu quotidiano escravo incluía trabalhos forçados em obras públicas, minas, galés ou campos agrícolas, numa clara lógica de exploração económica.
O cativo tornava-se, assim, recurso produtivo, mercadoria transacionável e, simultaneamente, moeda de troca nas relações diplomáticas entre poderes cristãos e muçulmanos.
A violência física e psicológica era omnipresente. Espancamentos, castigos corporais, humilhações, privações alimentares e até mutilações como o arranque de barbas ou o talhamento de membros faziam parte do processo de dominação. O omnipresente abuso sexual de mulheres e rapazes – prática frequentemente silenciada nas fontes – acrescentava outra camada de brutalidade.
E havia ainda o espectro da conversão: para muitos, renegar a fé e abraçar o Islão surgia como a única forma de escapar aos tormentos. A adoção de nomes muçulmanos, a circuncisão e a mudança de trajes marcavam simbolicamente esta passagem. Contudo, a conversão não era apenas um acto individual de sobrevivência: tinha consequências para as comunidades de origem, que viam filhos, irmãos ou esposas “perdidos para sempre”, quer pela assimilação cultural, quer pela impossibilidade de retorno.

Manuel de Buarcos contou como o barbeiro como uma navalha o circuncidou “cortando-lhe a pele do prepúcio toda ao redor”. João foi ainda mais preciso, dizendo que “a cortadura se faz na pele do membro genital que cobre a cabeça do mesmo e à dita pele se corta uma porção com que depois a dita cabeça se não pode bem cobrir”.
António de Montemor conta que o tomaram dois homens e o ataram de mãos e pés, lhe taparam a boca com um pano e o cortaram. A outro António, para evitar sofrer, o embebedaram e lhe deram ópio mas que mesmo assim “chorou por seu pai e mãe”.
A Domingos, de Estômbar, infectou a ferida ficando numa cama quinze dias até se curar.
O caso de Alcácer Quibir, em 1578, ilustra a escala colossal desta realidade. A derrota portuguesa levou à escravização de milhares de combatentes, e de milhares de mulheres e crianças que seguiam o exército, provocando uma desvalorização tão abrupta do trabalho escravo que a posse de cativos cristãos se tornou quase banal no Magrebe. O impacto foi tal que marcou durante décadas a memória coletiva portuguesa, não apenas pela tragédia militar, mas pelo drama humano que se seguiu.

Foram tantos os escravos e tão forte a desvalorização do trabalho braçal que um médico judeu escreveu que, depois da batalha “os trabalhadores mouros não têm como ganhar dinheiro porque Fez Velha está tão cheia de que não há pessoa que não tenha 2 ou 3 cristãos cativos”.
Dos despojos da batalha, os magrebinos trocaram por resgate não só pessoas, mas também os mais variados e ricos objectos de culto levados para Marrocos. As armas dos vencidos, incluindo as de D. Sebastião, foram vendidas a peso, a ferreiros. Muitas das mais finas lâminas de Toledo acabaram assim, derretidas em ferros para cativos.
O rol dos cativos em Alcácer Quibir dá-nos informações surpreendentes. Uma delas é a presença de mulheres e crianças na hoste cristã. Por exemplo, foram cativos André Borralho, um mulato de Moura, e Leão Camelo, da Horta, ambos de 13 anos; Manuel Raimundo de São Mamede e Gaspar Fernandes, de Óbidos, com 15; António da Fonseca, de Oleiros, Manuel Vaz, de Arcos de Valdevez, de 16 anos.
Sebastião de Pais – que tinha 9 anos quando se deslocou a Madrid a residir na casa de D. Cristóvão de Moura, integrando uma hoste que embarcou do Porto de Santa Maria para Tânger e dali para a batalha – foi cativado com 11 anos. Renegou e desempenhou importantes funções em Marrocos, regressando a Portugal apenas com 46 anos de idade, capturado e presente à Inquisição.
As ordens religiosas redentoras, como a da Santíssima Trindade e a de Nossa Senhora das Mercês, surgiram precisamente para lidar com este problema, angariando fundos e negociando resgates. Mas os custos eram elevados e, muitas vezes, selectivos: privilegiava-se a libertação de clérigos, nobres, crianças e jovens, deixando homens e mulheres comuns ao abandono. A Coroa, por seu lado, enfrentava o dilema entre pagar vultuosas quantias a “infiéis” ou perder definitivamente súbditos e recursos humanos qualificados.
O fenómeno da escravatura de brancos e católicos no Norte de África desmente a ideia, demasiado simplificada, de que a escravidão moderna foi apenas um fluxo unilateral de africanos para as Américas. A realidade era bem mais complexa e interligada: enquanto Portugal e Espanha participavam activamente no tráfico negreiro atlântico, comunidades inteiras nas suas próprias costas eram vítimas de uma escravização exercida a partir do Magrebe. Era um jogo de espelhos cruel, onde cristãos e muçulmanos, mediterrânicos e atlânticos, participavam de uma mesma lógica de captura, exploração e resgate. Compreender este fenómeno é essencial não só para reconstituir a dureza da experiência marítima e fronteiriça portuguesa, como também para inscrever Portugal num sistema mais vasto, onde o corso, a escravatura e a negociação de resgates moldaram identidades, economias e culturas de ambos os lados do Mediterrâneo.
A história destes cativos – marinheiros e pescadores arrancados ao convés, crianças levadas pela mão até perderem a língua da infância, mulheres reduzidas a concubinas – não pode ser vista apenas como nota de rodapé da grande História.
É uma ferida aberta que nos lembra que a escravatura não teve cor única nem direção única. Nos subterrâneos de Argel, nas galés de Tunis ou nos pátios de Marraquexe, milhares de portugueses viveram o drama de ver a liberdade transformada em mercadoria, o corpo em instrumento de trabalho ou de prazer alheio, e a fé em moeda de troca para a sobrevivência.
Estima-se que, entre os séculos XVI e XIX, um milhão de vidas europeias e norte-americanas foram escravizadas, lágrimas silenciosas no vasto oceano da Idade Moderna. Eram homens e mulheres comuns, que dormiam em Lagos ou em Aljezur e que acordaram com um pontapé numa porta; ou que partiram para pescar, comerciar ou guerrear, e que acabaram prisioneiros de um destino mais vasto do que eles próprios.
Ao recordarmos os que, como os tripulantes da “Cisne” ou os vencidos de Alcácer Quibir, conheceram o peso das correntes e a violência sexual, psicológica e física, devolvemos-lhes a voz que lhes foi arrancada.
A sua memória recorda-nos que a escravidão – em qualquer lugar e sob qualquer forma – é uma das mais fundas traições à dignidade humana.
