A sombra do pai: a performance e a psicologia na Presidência de Marcelo Rebelo de Sousa

Texto de Paulo Almeida, investigador independente na área da História Contemporânea de Portugal.

A atuação de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República distingue-se pela constante presença junto da população e pelo cuidado na gestão da própria imagem. Frequentemente visto em eventos formais e informais, deslocando-se a regiões distantes e acompanhando diferentes comunidades, cria a percepção de proximidade com os cidadãos, contraste evidente com a distância habitual de outros titulares do cargo. Contudo, esta presença intensa levanta questões: até que ponto se trata de uma empatia genuína e até que ponto é uma construção cuidadosamente calibrada da própria imagem?

A linguagem simples e acessível, os gestos de cordialidade personalizada e a visibilidade mediática podem, em muitos casos, ser mais performativos do que espontâneos, projetando uma sensação de proximidade que se confunde com autoridade moral. O equilíbrio que Marcelo demonstra entre informalidade e protocolo é igualmente questionável. Embora aparente flexibilidade, esta gestão da autoridade pode ser vista como um exercício calculado de manutenção de poder simbólico, em que cada gesto, cada visita, cada contacto com cidadãos funciona como uma afirmação discreta de influência. Situações concretas, visitas a pequenas localidades, encontros improvisados com cidadãos ou intervenções mediáticas, podem ser interpretadas não apenas como demonstrações de atenção, mas como elementos de uma estratégia de visibilidade contínua.
É neste contexto que se torna pertinente observar a influência de Baltazar Rebelo de Sousa, pai de Marcelo.
Há anos observo e intuo que Marcelo vive, de certo modo, sob a sombra e a idolatria da figura paterna. Não se trata apenas de herança simbólica, mas de um modelo de comportamento que combina visibilidade, protocolo e gestão calculada da imagem pública. Mesmo sem pretensões de psicólogo, a experiência e a observação sugerem que este padrão influencia profundamente a forma como Marcelo interpreta e exerce a Presidência.

Para compreender esta ligação, é necessário analisar a trajetória de Baltazar Rebelo de Sousa. Em 1968, Baltazar, então Governador-Geral de Moçambique, apresentou-se junto de uma população maioritariamente negra, rural e suburbanizada, num contexto informal e pouco estruturado ao mesmo tempo que atraía a atenção da elite Moçambicana da época, em eventos sociais, banquetes, etc., para que era conveniente e oportunamente, convidada.

Distanciando-se do estilo mais rígido e formal de seus antecessores, Baltazar destacou-se pela presença visível e direta, criando uma aproximação rara para a época. Embora tenha coincidido com momentos de crescimento económico e expectativa política, o impacto estrutural do seu mandato foi limitado.
O que permanece, porém, é a marca do estilo pessoal, a valorização da visibilidade e a construção de uma imagem performativa, elementos que décadas mais tarde se replicariam na postura de seu filho, Marcelo.

Formado em Medicina e especializado em Medicina Tropical e Sanitária, Baltazar iniciou a carreira nos Serviços Médico-Sociais e nas Caixas de Previdência, destacando-se na Mocidade Portuguesa e em cargos nacionais ligados à educação e cultura. Posteriormente, trabalhou como secretário do gabinete do Ministro do Ultramar, Marcelo Caetano, e foi eleito deputado à Assembleia Nacional, recebendo diversas condecorações. Com a chegada de Marcelo Caetano ao poder, Baltazar foi nomeado Governador-Geral de Moçambique, cargo que ocupou até 1970. De regresso a Lisboa, desempenhou funções ministeriais até 1974 e, após a Revolução do 25 de Abril, exilou-se no Brasil, dedicando-se à docência e à participação em associações culturais, sendo distinguido com a Grã-Cruz da Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul.

Se a história oficial e as descrições biográficas nos apresentam esta imagem quase imaculada, cabe-nos interrogar o reverso: até que ponto tais representações correspondem à realidade, ou não passam de construções idealizadas? É aqui que se impõe uma leitura mais crítica, capaz de reconhecer contradições, tensões e até fragilidades que a narrativa laudatória tende a silenciar, e é neste contexto que se torna pertinente observar a influência de Baltazar Rebelo de Sousa, pai de Marcelo. Marcelo Rebelo de Sousa nasceu nesse seio do poder, cresceu a conviver com ministros por via das funções políticas do pai, e parece ter ficado preso a uma ideia de pertença a uma elite quase dinástica.

Sob uma perspetiva clínica, a análise de Marcelo revela traços de narcisismo subtil e histrionismo calculado, manifestos na exposição constante e na teatralidade cuidadosamente medida. A idolatria do pai e a necessidade de se afirmar por contraste levam-no a cultivar uma imagem de proximidade e simpatia, enquanto mantém, em segundo plano, uma gestão estratégica do poder. A alternância entre busca de atenção e retraimento revela uma ambivalência afetiva, típica de personalidades que equilibram desejo de aprovação com medo de desgaste ou rejeição.

Quando essa postura se projeta para a sociedade, os efeitos tornam-se coletivos e culturais. A necessidade de visibilidade e aprovação cria expectativas de presença constante, simpatia e empatia performativa. Por um lado, promove sensação de participação; por outro, mascara fragilidades estruturais e decisões complexas, substituindo substância por espetáculo. A política passa a ser, muitas vezes, gestão de perceções e culto da imagem, valorizando gestos simbólicos em detrimento de consistência e profundidade.

Além disso, existem exemplos concretos que confirmam esta interpretação. As iniciativas do Presidente junto das antigas províncias ultramarinas, homenagens, reconhecimentos históricos e participação em eventos, não são apenas diplomáticas, mas refletem uma necessidade de protagonismo simbólico e de inclusão. A presença constante, o gesto calculado e a visibilidade mediática repetem o padrão herdado do pai, transformando história pessoal em ação política e tentativa de  consolidar a imagem de um Presidente próximo, justo e atento.

Em síntese, a análise de Marcelo Rebelo de Sousa, à luz da influência paterna, da psicologia e da dimensão coletiva, sugere que a Presidência, tal como se apresenta ao público, é simultaneamente performance, estratégia e herança familiar. A proximidade e empatia exibidas não anulam a necessidade de visibilidade nem a construção meticulosa da imagem; antes, reforçam-nas.

Esta leitura crítica permite compreender melhor não apenas o homem, mas também a forma como a sociedade se relaciona com figuras de poder que equilibram carisma, afetividade e autoridade simbólica, um equilíbrio delicado entre presença e projeção, entre aparência e substância.

No fundo, a postura de Marcelo Rebelo de Sousa não surge por contraste, mas antes como continuidade de uma tradição herdada. O estilo próximo, de contacto constante com as populações, já se encontrava no percurso de seu pai, Baltazar Rebelo de Sousa, ainda que moldado pelas circunstâncias do ultramar. A diferença é que, no filho, esse traço se radicaliza até ao populismo mediático, comprometendo a sobriedade, a solenidade e o protocolo que o cargo de Presidente da República deveria preservar. Ninguém é Presidente da República; quando muito, está-se Presidente da República. E por isso, o respeito pela instituição não pode ser arrastado pela lama.

Como um grande estadista do século XX afirmou um dia:
“Governar não é agradar, é servir.”