Duarte Nunes de Leão, no séc. XVI, escreveu um capítulo na sua “Descripçam do Reyno de Portugal” sobre as mulheres Portuguesas. Passo para aqui, porque julguei muito bonito de se ler.

“Fazendo Nuno Fernandes de Teive, Capitão de Safim (que foi um valoroso homem) uma entrada em terra de mouros, foi tomado em uma cidade e morto ele e os mais fronteiros e moradores da cidade que foi novo caso para Portugueses que naqueles tempos felizes d´El-Rei D. Manuel traziam os Mouros muito apertados. E vendo os Mouros que a cidade havia de ficar só, determinaram de ir a ela, e tentaram de a escalar, dando-lhe alguns assaltos. Pelo que as mulheres sabendo que os maridos eram mortos e o perigo em que elas estavam de suas vidas e honras, acudiram aos muros e torres com as cabeças armadas ou cobertas, e com as lanças arvoradas fingindo que eram homens: e com este estratagema os mouros parecendo-lhes que a cidade estava acompanhada de gente, se foram, e elas começaram a chorar seus maridos. No tempo que Suleimão Paxá general da armada do turco veio a por cerco à Fortaleza de Diu de que António da Silveira era Capitão, sendo os Portugueses somente seiscentos, e os janiçaros muitos mil, além de catorze mil homens escolhidos com que Alicão e Coje Sofar os vieram ajudar, com a continuação dos combates e força dos basiliscos e grossa e imunerável artilharia que traziam, foram-se os Portugueses diminuindo muito com os mortos e feridos e doentes de uma doença nunca vista, e os muros se arruinavam tanto, que repartida a gente a pelejar e em tirar a terra dos muros que se derribavam, para os refazer não havia gente para uma cousa e outra. Pelo que uma mulher Nobre per nome Isabel da Veiga, casada com um homem Fidalgo da Ilha da Madeira em idade ainda moça e mui gentil mulher, mas de grande autoridade e valor, vendo aquele comum perigo e o trabalho que aqueles homens passavam em acarretar a terra per que deixavam de pelejar, e que aquele ofício de acarretar era cousa para que tanto podiam homens como mulheres, e que fazendo-o elas os homens não deixariam de fazer o ofício das armas para defesa de todos, fez uma fala a todas as mulheres que na fortaleza estavam, pondo-lhes diante o perigo e a necessidade em que eram postas, e o trabalho que aqueles homens padeciam em cujos braços consistia sua honra e defesa: e lhes persuadiu que elas fizessem aquele ofício que mulheres podiam fazer: e ela primeiro veio com sua alcofa a trabalhar e cada uma das mais veio com a sua, e os homens todos tomaram as armas. O que foi grande ajuda para aquela fortaleza se defender. No outro grande cerco que os turcos com El-Rei de Cambaia puseram à mesma Fortaleza de Diu, sendo Capitão D. João Mascarenhas, em outra tal necessidade de as mulheres todas acarretarem madeira para o reparo do muro que os mouros desfaziam com sua artilharia, andando entre eles uma mulher honrada e casada per nome Isabel Madeira, veio um tiro de bombarda que perante seus olhos lhe despedaçou seu marido que ela em extremo amava, e de que tinha quatro filhos. A qual não somente não lançou lágrima alguma por ele perseverando no ofício em que andava, mas repreendia às outras mulheres que a vinham consolar, dizendo-lhes que trabalhassem e não deixassem o ofício que faziam, que seu marido morrera honrado por seu Deus e por seu Rei, e que tão honrados morressem seus filhos. O qual dito e feito se podia contar entre aqueles que se escrevem das Lacedemónias. Na Cidade de Lisboa uma dona viúva nobre que vivia à porta de Santa Catarina vendo levar preso um seu sobrinho per morte de um homem, e que o levavam maltratado saiu à rua com presteza a rogar ao Alcaide que o não levasse assim desonestamente, porque era homem Fidalgo. O Alcaide pondo-lhe as mãos a afastou de si. Pelo que ela indignada daquele desacato se arremessou a ele e lhe arrancou da cinta a espada que levava, e com ela lhe deu uma cutilada em um ombro e outra pela cabeça do que ajudava a levar o preso: por o que o sobrinho se desenvolveu e solto com uma alabarda que tomou a um dos ministros se salvou com ajuda da tia que o fez valorosamente contra os ministros da justiça e gente que lhes acudiu. Na Cidade de Lagos, do Reino do Algarve, chegando uma mulher de um homem principal a sua janela, alta noite viu que três homens andavam às cutiladas com um seu filho moço de vinte anos ao qual já tinham mal ferido. A mãe tomando uma lança saiu à rua para acudir a seu filho e de maneira se houve com os três, que quando um escravo e um moço seus acudiram à briga tinha ela já feridos dous deles de duas grandes lançadas perque lhes foi necessário deixar a briga. Um homem honrado em Lisboa sendo acometido de quatro ladrões que andavam a tomar capas, lhe tomaram a capa, e o chapéu, e indo ele a sua casa a armar-se para os ir buscar sua mulher lhe fechou a porta e não consentiu sair salvo se a levasse consigo: e coberta com uma capa e com uma espada e rodela o acompanhou. Eles acharam os quatro e se houveram de maneira que os ladrões fugiram deixando duas capas, um sombreiro e um casco e uma espada e algum sangue na rua. […] Uma donzela moça de pouca idade per nome Dona Guiomar que com seu pai o doutor Pero Nunes, cosmógrafo-mor d´El-Rei estava em Coimbra. Esta tendo-lhe prometido um filho de um cidadão seu vizinho que casaria com ela e não cumprindo a sua promessa o mandou citar perante o Bispo da mesma cidade que as perguntas lhe quis fazer na Igreja de S. João. E negando o mancebo a promessa que fizera, ela de improviso lançou mão a um canivete de um estojo que consigo trazia per seus lavores e lhe deu uma grande cutilada pelo rosto. Feito isto se volveu ao altar pedindo perdão a Deus e depois ao Bispo. O qual a mandou depositar até ver o que se havia de fazer no caso. E porque ela soube que todos parentes e amigos do ofendido e muita gente armada com eles estavam na Ponte do Mondego per onde suspeitavam que ela passasse per o Mosteiro de Santa Clara onde seu pai a queria meter freira, ela com grande ânimo se mandou levar às costas de um trabalhador escondida em uma grande canastra em que levava pera o dito Mosteiro de Santa Clara cera e cousas pera o ofício da Semana Santa, animando ao que a levava que não temesse que Deus a quem ia servir os guardaria. E assi foi entre aqueles tantos homens armados ao Mosteiro onde as freiras que já tinham recado a esperavam com grande alvoroço: e aí está hoje freira professa. No Concelho de Regalados na freguesia de S. Miguel havia uma donzela gentil mulher e de muitas boas partes outras per nome Margarida de Abreu, filha de um Cristóvão Rebelo de Abreu homem nobre com a qual desejando casar um homem que não era seu igual em geração, mas homens de boas partes e criado d´El-Rei se gabou que era casado com ela parecendo-lhe que com aquela intenção o poderia vir a ser. Vindo isto à notícia dela que do caso era inocente se teve por mui afrontada. Pelo que ao seguinte Domingo em que ela costumava ir à Igreja acompanhada de uma sua irmã a que deu conta do caso que passara e do que havia de passar, em per passando do lugar em que aquele homem se assentava com uma faca que na mão levava amolada, lhe deu algumas cutiladas. E sendo pelo sacrilégio do ferimento que cometeu na Igreja condenada que estivesse um Domingo na mesma Igreja enquanto a missa durava em corpo com uma vela acesa na mão, ela foi a isso vestida ricamente como quem triunfava do que fizera. No qual auto pareceu a todos que a viram mais formosa do que antes era (…)”.
Há muitos outros casos narrados.