A nossa edição deste mês de Verão: seis artigos inéditos, “barbenheimmer“!, canções de beber, revisionismo cultural, curadores do bizarro, marxism refuses to die e filmes sobre edição.


Começamos com um texto de Miguel Furtado sobre as diferenças entre direitos e liberdades fundamentais e direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, na medida em que os segundos são dependentes de orçamentos e os primeiros tendencialmente não.
Tivemos também a honra de publicar excertos ligeiramente comentados de uma obra de 1948, As Mulheres do meu País, de Maria Lamas, que pretendia retratar a vida das mulheres portuguesas (maioritariamente pertencentes ao mundo rural) na época. São excertos que nada têm de insignificante e que retratam de maneira exemplar o panorama da vida rural portuguesa, em particular do universo feminino, no Portugal pobre, aliás, miserável, do início do passado século. Deixamos para registo, para memória, para desfruto dos leitores interessados, que cremos que serão muitos, sublinhando que muitos dos nossos avós e bisavós, de todos nós, não só conhecem mas viveram esta realidade portuguesa, que está muito mais perto do que à partida parece.



Destacámos os dois filmes mais falados, badalados e concorridos nos últimos tempos nas grandes salas da sétima arte: a biografia ficcionada Oppenheimer e a fantasia sobre a famosa boneca Barbie. Tivemos o prazer de receber duas excelentes recensões de Guilherme Berjano Valente, que recomendamos, assim como os filmes. Assim, a primeira, sobre as camadas filosóficas e metafísicas da mais recente película de Christopher Nolan, dedicada ao físico responsável pelo desenvolvimento da bomba atómica, e a segunda, sobre as descontruções dos papéis femininos e masculinos num mundo ficcional que explode e materializa os tropos da famosa boneca e do seu parceiro.
A unidade improvável representada por estes dois filmes ilustra uma dualidade interessante desdobrável de várias maneiras como: masculino/feminino, ciência/cultura, sombra/luz, contrição/exuberância, tristeza/alegria, etc., conforme é bem ilustrado por algumas das paródias visuais que circularam nas últimas semanas, algumas das quais aqui mostramos. Historicamente, cada um deles representa um evento marcante do século XX: o primeiro a criação da bomba atómica, uma absolutamente disruptiva arma de destruição maciça que até agora serviu mais como détente, e a criação de uma boneca para meninas radicalmente diferente das anteriores, representando não apenas a mulher-mãe mas a mulher independente e emancipada. O facto do lançamento dos dois filmes ter sido no mesmo dia deu o pontapé de saída a esta brincadeira com dualidades fundamentais, facilmente desdobráveis em várias dimensões, imensamente polissémicas e metafóricas em várias camadas. Para além disso, no mundo do cinema, os dois lançamentos receberam interesse do público em grande número, bateram recordes e solidificaram como a experiência da sétima arte em sala de cinema, em grande, em público, está ainda viva, e para ficar.


Por último, apresentámos uma crítica de Ana Sérgio sobre o último trabalho da série cinematográfica Indiana Jones, um filme de aventuras construído sobre uma estrutura quase irrepreensível que lida com todos os problemas da série e expectativas dos espectadores, e também de Jorge Filipe Carvalho, uma “mini biografia”, que não visa tanto exibir academicamente os factos ocorridos, mas fazer uma apologia à personagem de Joana de Arc e, possivelmente, gerar admiração nos leitores quanto à sua pessoa.

Quisemos partilhar com todos duas canções muito distintas, de tradições musicais diferente mas que, ainda assim, podiam ser tidas como manifestações do mesmo género: o género das drinking songs, ou canções de bêbedos ou de taberna. Aproveitando o facto de estarmos nos meses das festas das aldeias, onde o autor é muito apreciado, a primeira canção é a extraordinária “Mais um copinho“, de Quim Barreiros, que integra um álbum publicado este ano para celebrar os seus 50 anos de carreira. Um amigo nosso tem há anos a teoria de que Quim Barreiros é um grande poeta e músico, e começamos a estar inclinados a dar-lhe razão. Desde cedo apreciado pelas camadas populares, tem vindo em anos recentes a ganhar o apreço de numerosos membros das camadas mais instruídas da população, incluindo muitos jovens universitários e citadinos, um apreço que achamos completamente justificado, dada a sofisticação de muitas músicas de Quim Barreiros ao nível dos jogos de palavras, da versificação e da composição. Esta canção, em particular, é leve sem ser propriamente simples, ao mesmo tempo que epitomiza tanto a boa disposição do artista como o melhor do género das drinking songs. A segunda canção que apresentamos é “In taberna quando sumus”, (a partir de 38:35) parte das famosas Carmina Burana de Carl Orff, que aí musicou canções burlescas, satíricas e profanas de um manuscrito da Abadia de Benediktbeuern, em pelo menos três línguas. “In taberna quando sumus” pode ser tida como uma antepassada medieval da letra de Quim Barreiros, sendo claramente uma canção de taberna, desde o título ao conteúdo da letra. Além disso, a música de Orff tira partido do potencial da letra e enfatiza da perfeição a expressividade, humor e carácter burlesco da mesma. Por fim, chamamos à atenção que, na boa tradição das tabernas de onde a jovialidade, a alegria e a bebedeira expulsam tópicos enfadonhos, a letra medieval deste trecho faz (e muito bem) tábua rasa das controvérsias medievais entre os defensores do poder real e os partidários do poder temporal do Papa, ou seja, entre a Igreja e o Estado. Diz a canção: “Tam pro Papa quam pro rege / bibunt omnes sine lege” (“Tanto pelo Papa como pelo rei / bebamos todos sem lei”). Por fim, esta partilha é dedicada ao Prof. Hans Ulrich Gumbrecht, conceituado medievalista, romanista, amante da filosofia continental e, sem dúvida, um excelente e alegre conviva em qualquer jantar, além de apreciador de bom vinho!

Destacámos também, pela mão de Mafalda Simão Leal, um fenómeno mediático recente, relacionado com revisionismo do imaginário cultural, que consiste na caracterização de actores de diversidade racial aplicada a personagens de raiz europeia, seja histórica ou mitológica. Assim, temos, por exemplo, a figura de Ana Bolena e da ruiva princesa Ariel, ambas interpretadas por mulheres negras, em produções recentes, uma da Netflix e outra da Disney. Tal pode ser descrito como, além de uma distorção histórica eventualmente absurda, uma forma de “colonialismo cultural” dissimulado: uma instrumentalização dos negros para contar a história do homem branco. Perpetua-se assim uma hegemonia cultural e alimenta-se um sentimento de inferioridade no subconsciente colectivo da população negra, remetendo a cultura africana — com toda a sua riqueza, as suas personalidades históricas, reis e rainhas, criaturas mitológicas — para lugares secundários ou para o esquecimento. O fenómeno reveste-se exactamente da mesma pele e dos mesmos termos do enunciado por Franz Fanon em Pele Negra, Máscaras Brancas, em 1952: “However painful it may be for me to accept this conclusion, I am obliged to state it: For the black man there is only one destiny. And it is white.” Este é um ponto sobre política e cultura, e não sobre arte, pois com certeza que é possível elencar um actor chinês como Adolf Hitler, uma actriz norueguesa como Abraham Lincoln, ou uma cafeteira como Cléopatra: mas é diferente fazê-lo por motivos políticos e fazê-lo por motivos exclusivamente da própria arte. E provavelmente não é esta última hipótese que se tem passado.
Reflectindo um pouco mais sobre este tópico, somos levados a adiantar mais algumas reflexões. A propósito da famosa questão do “Black Face“, a aplicação de pinturas faciais para mimetizar outra raça ou identidade é comum ao longo de toda a história da representação, da Ásia até as Américas, e só recentemente foi construída essa polémica maioritariamente artificial e politicamente comprometida sobre um actor branco pintar a cara de negro ser algo muito ofensivo, o que é inteiramente discutível que o tenha alguma vez de facto em absoluto sido. Como tentámos assinalar nesta peça, o problema não é uma queniana interpretar a Rainha Isabel II ou uma cafeteira fazer de Cleópatra, mas sim os motivos políticos e económicos interesseiros, de critério exterior à arte, por detrás disso. Há que ter atenção também quando se aponta personagens de etnias diferentes interpretadas por “pessoas brancas“: na verdade aquilo que consideramos “branco“ pode envolver muitas sub-etnias imensamente diversas, como por exemplo: persas, mediterrânicos, judeus, etc.: é um erro generalizar tudo isto como a mesma coisa. Elizabeth Taylor, por exemplo, interpretou a egípcia rainha Cleópatra, mas Taylor não é propriamente “branca” no sentido de nórdica ariana pura, mas sim no sentido de mediterrânica sul-europeia, com proximidade fenotípica e geográfica ao Egipto. Esta multiplicidade e variedade de raízes étnicas é particularmente relevante no contexto americano de Hollywood, onde, como se sabe, temos pessoas advindas de raízes variadas de todo o mundo. Por último, poderia conceber-se este tipo de intervenções como uma “vingança” de grupos minoritários sub- representados, mas essa hipótese não é provável, pois os produtores e realizadores que estão a usar estas invenções hoje não são na sua maioria sequer pertencentes aos grupos étnicos que retratam. Portanto a hipótese mais viável é que esses mesmos grupos étnicos estarem ser usados, como de costume, como mercadoria, moeda de troca em guerras culturais em que as empresas querem parecer “inclusivas” porque acham que isso tem proveitos económicos e então inventam estas coisas estranhas de Ana Bolena como negra, algo ao nível de Shaka Zulu como branco.

Recomendámos quatro curadores de arte visual com presença na internet que nos inspiram com grande parte do seu material e cuja especialidade é, mais do que a arte ou o humor, o bizarro, o invulgar e o estranhamente familiar. São elas Humans of Late Capitalism, Awkward Family Photos, Depths of Wikipedia, Super Wrong Magazine. Podem encontrá-las na fabulosa rede social de fotografia Instagram, rede que muito recomendamos a qualquer pessoa e onde se respira um melhor ambiente do que em muitas outras.

Partilhámos também quatro referências sobre como as teorias do famoso e ainda muito popular filósofo Karl Marx têm severos problemas, apesar de convenientemente ignorados por instrumentalistas políticos ou activistas disfarçados de académicos. Alicerçadas nos dogmas fundamentais da teoria hegeliana progressista da história e de que as relações humanas são redutíveis a relações económicas, as falhas da sua aplicação à prática são amplas e reconhecidas pelos marxistas honestos — espécie de que, hoje, temos escassos vislumbres, dada a abundância de “activistas” entusiasmados com o carácter romântico e revolucionário do filósofo e incapazes de um esforço crítico sério. Falha particularmente em explicar como a evolução tecnológica não emerge simplesmente de necessidades económicas e ao mesmo tempo as revoluciona completamente; em como as revoluções sociais são despoletadas por uma variedade de razões e de grupos, e não apenas pelos mais desfavorecidos; que aquilo a que chama de “capitalismo” está estruturalmente desenhado para falir, o que não tem de todo acontecido, antes pelo contrário; que a “classe trabalhadora”, hoje e cada vez mais um conceito difuso e que parece, no uso do pensador, datado ao séc. XIX, necessita de uma “consciência” para despontar processos revolucionários, quando a explicação é mais simples; que a economia é o único determinante da forma de uma sociedade, teoria substituída pelas ideias mais robustas de Max Weber; o carácter pejorativo que atribuiu aos conceitos de “reificação” e “fetichização”, que não está presente em Freud, por exemplo; que existe um método especial de defesa do marxismo que não sobrevive ao exercício crítico convencional a que chamamos de “dialéctica”; e, por fim, conforme alguns críticos neo-marxistas defendem, que se ajustarmos as teorias com os correctivos necessários elas funcionarão — mas deixarão de ser especificamente “marxistas” e passarão a ser outra coisa. Podem ler sobre isto e mais no artigo da Revista Areo, aqui, e noutras referências como aqui e aqui e ainda aqui.
Cinema: Filmes sobre Edição

Neste último fim-de-semana que, para nós, foi de festa e de celebração do cinema, como sempre para todos, deixámos como sugestão quatro filmes sobre actividade editorial, não propriamente e exclusivamente sobre “jornalismo”, mas sobre o acto de publicar conteúdos (sem entrar dentro das “teorias da informação” da filosofia ou das ciências da comunicação) para um grande público. Primeiro, sobre a decisão de um orgão de comunicação dos Estados Unidos, nos anos setenta, publicar relatórios do ministério da defesa que atestavam a inutilidade da então guerra do Vietnam, e sobre os quais se alegava que prejudicavam o “interesse nacional”. Dessa batalha, ganha pela imprensa, que se prolongou à outra vitória do escândalo Watergate, sobra um certo sentimento de orgulho, impunidade e vaidade da cultura jornalística até hoje. Segundo, um encantador conjunto de peripécias sobre um divulgador de notícias no velho oeste, um autêntico caixeiro-viajante de informação. Terceiro, a mais recente fantasia de um idiossincrático e estilizado realizador sobre uma pequena publicação de nicho. Quatro, mais um orgão noticioso dos Estados Unidos que desmonta todo um escândalo de proporções gigantescas de pedofilia nas igrejas católicas nesse país, e que impulsionou mais tarde toda uma série de denúncias pelo mundo fora. É este o panorama de actividade editorial e jornalismo no verdadeiro sentido que queríamos aqui deixar, como uma lufada de ar fresco na paisagem contemporânea, verdadeiramente medíocre, corporativa e sem qualquer credibilidade para as pessoas em geral, no que diz respeito ao tratamento da informação e ao desenvolvimento e interpretação da mesma pelos grandes, médios e pequenos orgãos de comunicação em geral.
Submissões
Por último, saudações, cumprimentos, agradecimentos por continuarem a acompanhar o nosso trabalho, e desejos de bons banhos, bons ares frescos, bons passeios e muitas reuniões calorosas e interessantes, nesta quadra de férias em que vivamente quase todos nos encontramos. O convite é sempre o mesmo para todos os alunos, investigadores e docentes universitários, ou mesmo para toda e qualquer pessoa sem ligação à universidade: enviem-nos propostas de artigos em fase já concluída ou enquanto versão incompleta, mero esboço ou mesmo apenas ideia. Aceitamos todos os temas de relevo, mas podem consultar sugestões de tópicos aqui. Boas férias!

Imagem: retrato de Catarina II, a Grande (1729-1796), imperatriz russa, ávida coleccionadora de poder político, territorial e também de obras de arte e de actividades de patronato e mecenato artístico.