
De simbologia é feito o lugar do Boé. A simbologia da casualidade ou da profecia alega ter sido aqui o início e o epílogo da guerra colonial da Guiné! Foi no chão do Boé que ocorreu uma das primeiras emboscadas que marcaram o início da luta de libertação do PAIGC e, será também neste chão, que o partido de Amílcar Cabral irá proclamar a independência do país, a 24 de Setembro de 1973, embora Portugal só a venha a reconhecer em Setembro de 1974.
O aquartelamento de Madina do Boé, a pouco mais de trinta quilómetros da fronteira da Guiné Conacri, fora ali instalado no final de 1967. Consideravelmente afastado das unidades mais próximas, este despovoado vivia na mais desagasalhada e inquietante das solidões e isolamento durante todo o ano, acentuado na época das chuvas. Para se sobreviver neste lugar era necessário «um apoio de retaguarda considerável que garantisse o mínimo de condições, só conseguido graças aos aviadores da força aérea portuguesa» que, regularmente, trazíam os mantimentos e o correio. Muitas vezes os aviões eram atacados nas aproximações ao aquartelamento, ou durante os descarregamentos, mas voaram sempre, sem nunca desistir, através dos céus cuja cor azul-furtivo emoldurava as suas asas de penas metálicas.
À boca de cena estava uma grande placa feita de rombas tábuas, onde letras pintadas a tinta branca, anunciavam: «Madina do Boé, o Algarve da Guiné», logo depois, uma pequena banca com a legenda ao alto: «Entre, temos alaúdes de primeira.» Sobre a banca, imensos brindes de oferta aos visitantes, arrumadinhos a preceito – restos de estilhaços de morteiro ou de canhão. Adereços apropriados. Adereços inapropriados. Alaúdes querendo despertar a aurora com os seus braços de meia-pera abertos para o sol do nascimento, ou da morte.
No palco de Madina, a mise-en-scène do nascimento, ou da morte, não tinha intervalos, estendia-se através dos longos meses capitulantes. Os militares portugueses combatiam dolorosamente os guerrilheiros do PAIGC. As unidades de infantaria
«garantiam a sua sobrevivência à custa dos seus mortos em emboscadas, flagelações e rebentamento de minas», além de servirem de paredão ao avanço da acção da guerrilha aos centros urbanos. Um paredão humano, feito de troncos e pernas, crânios e dedos.
Por esta altura, o cenário na Guiné era o seguinte: o exército português dominava as vilas e as cidades, enquanto que o PAIGC, os grandes espaços, como o de Boé, entre a fronteira da Guiné Conacri e a margem sul do rio Corubal.
No palco de alguém que é ninguém, as tropas do posto de Beli e do aquartelamento de Madina, representavam as poucas unidades que corriam o risco efectivo de um dia cederem a um ataque concertado dos guerrilheiros de Amílcar Cabral. Era como se estivessem sempre a ensaiar o último acto, segurando uma corda de grifos atada à volta da cintura.
O cenário: colinas e montes, onde se colocavam os vigilantes guerrilheiros e o aquartelamento isolado. Luz forte diurnal e penumbra sobre as tatuagens.
A acção: «ataques mais do que uma vez por dia, em regra e, algumas vezes, durante muitas horas.».
O lado de cá do incessante.
O lado de lá do reduzido sossego.
Corrupios. Rastejamentos. Quedas a meio de corridas para os abrigos ainda com restos de rancho nos cantos da boca. Palavrões. Rajadas. Mais os sons do carregamento das armas e dos risos aparvalhados. A alucinação a espraiar-se sobre a pele dos corpos, muito devagar. Silêncio sideral nas frinchas dos tiros. Combate.
Dizem que um ataque sofrido na noite de 13 de Março de 1968 fez estes mártires ficarem debaixo de fogo contínuo, durante dez horas consecutivas. Os soldados portugueses acreditavam que o número treze actuava em desarmonia com as leis do Universo. Os guerrilheiros consideravam-se Ulisses escapando à boca do Ciclope. Mais tarde soube-se ter sido este ataque comandado por Nino Vieira. Sendo Nino o encenador, a sua audácia de poderoso e excepcional prócer, achava-se capaz de destronar qualquer concílio de apóstolos, mesmo que, de grés redobrado, fossem feitas as personagens.
Era do cimo dos montes que o PAIGC atacava, quase sempre com armas pesadas de artilharia e ligeiras de infantaria. Diariamente, havia que sair fora do centro do palco – o embrião do arame farpado, e cobrir todos os cumes dos montes, para recolher material e evitar que, as armas, especialmente os canhões sem recuo, pudessem fazer tiro directo. Os canhões afiguravam-se como armas de enorme poder de precisão, capazes de destruir museus divinos, réplicas de deuses presentes e omnipresentes, furacões e álbuns de recordações.
Todos os dias, uma companhia percorria as colinas, com enormes chagas de queimaduras na boca, sob uma ansiedade constante, perante a eventualidade de um ataque inimigo. Todos os dias, uma companhia percorria as colinas, com pesadelos de noites mal dormidas, pregados nas costas, tessiturando cantilenas militares, no mesmo compasso dos pés que subiam e desciam a acidez da representação.
«Apesar do fogo utilizado pelos guerrilheiros ser de elevada eficácia, raramente as ofensivas causavam vítimas à população militar portuguesa, sobretudo porque o aquartelamento estava protegido à prova desse tipo de armamento e os soldados resguardavam-se em abrigos subterrâneos fortificados.» Isto é, apesar das fogueiras ateadas nos quatro cantos do palco, o equinócio do núcleo nidificado fundia-se no emaranhado das estalactites habilmente colocadas e, como se fosse mármore, fechava- se no côncavo da sobrevivência.
Toda a vida dos soldados se concentrava em redor dos abrigos. «Um pequeno quadrado servia de quarto de dormir durante longos meses, apenas com dois orifícios virados à mata para observação, quando a sentinela não pudesse manter-se no seu lugar de vigilância.» Os dois olhos fatigados das lâminas dos flashes permanentes, aplicavam um esforço maior do que o bolor a fermentar em pasto seco, velando para que nenhum actor entrasse em cena fora de tempo.
Contavam-se vinte ou trinta abrigos em termos de guerra permanente. Em alguns estavam instalados postos de comunicação – os pontos do teatro, ávidos de contracena. Atiravam palavras para longe, para lá do palco, para o outro lado do opúsculo. Palavras difusas, em gritos de archote, por ajuda a Bissalanca, rápida, o quanto antes, que se estava a perder a resistência e a saliva.
«Aqui não havia messes», refere um comandante no desenrolar da memória. Aqui só havia o equilíbrio a exercitar-se sobre caixas de pandora, e também havia muitas nuvens de papiro a perturbar os cérebros delirantes. Beber whiskey com gelo, ao fim da tarde, em cadeira de encosto e pés no espaldar – era uma alucinação – só no começo da ressaca da bruma, a bruma antiga, aquela capaz de cegar quem sonha acordado.
Depois, para quebrar o ritmo já conhecido da actuação, surgiu uma novidade: um mês preenchido com dias ainda mais perturbantes e tensos, que muitos contam ter sido causador de elevado tormento, de enorme nervosismo e inquietação. Colocavam-se «atiradores especiais com armas de mira telescópica junto às árvores, a uma distância de quinhentos metros e faziam disparos, um ou dois disparos por dia, sempre à hora do almoço. Atingiram, algumas vezes, elementos da companhia, embora só uma vez com gravidade, causando grande pressão psicológica. Durante aquele mês, quando se aproximava a hora de almoço, começava a reinar o silêncio, um silêncio quase absoluto» e todos tinham a mesma pergunta dentro do pensamento: «quando é que vem o tiro?» Ou seja, dentro do grande drama, outro drama se encaixava, mais pequenino, mas não menos febril. Mexia com as tripas, com a deglutição e com os tímpanos. Era um drama-língua-no-anzol, de ferroada sinistra.
O aquartelamento tinha o seu perímetro «todo iluminado com postes electrificados, situados junto da terceira fiada de arame farpado, duas fiadas de arame do lado de dentro da iluminação e outra fiada de arame do lado de fora da iluminação.» Pendiam do arame, como pássaros mestres do restolho, garrafas de cerveja vazias, aos pares, de modo a que, perante qualquer toque no arame, tilintassem, e funcionassem como um alerta às sentinelas.
Para quê as garrafas, se havia iluminação? A iluminação «ia abaixo», devido a curto-circuitos provocados pelos ataques ou por cortes de fios, fazendo disparar o gerador e «ficava-se sem energia», daí a importância de «mecanismos suplementares de aviso da intrusão de qualquer inimigo.» Garrafas cantadoras, que o vento quebrou e a chuva esmerilhou. Já só os gargalos e pouco mais, chocalhos a crepitar nos panos de cena, panos de vidro que o arame teceu. Banda-sonora transconsciente feita de vidro a zurzir no metal, trinante, e sem saber de nada.
Agnelo Dantas, combatente do PAIGC, virá a confessar: «o objectivo era tornar a vida daquele aquartelamento impossível, mantendo-o sempre em situação de guerra e, mais cedo ou mais tarde, fazer os militares portugueses abandonarem o local.» Profecias de rasgar ao meio, de tirar as possibilidades, de adivinhar o êxodo aguardado.
Não existia no território, zona estratégica mais importante para o PAIGC do que Madina, não só pela natureza acidentada do terreno que facilitava o treino para a luta de guerrilha, mas porque esta região estava na fronteira com a República da Guiné. Era exactamente através de Conacri que as tropas de Cabral recebiam o apoio externo sem o qual dificilmente poderiam prosseguir a guerra. Havia a intenção do PAIGC libertar esta região para a desbravar e fazer daquele lugar uma base central, construindo um aeroporto onde os aviões pudessem aterrar para deixar materiais e fornecer a guerrilha espalhada pelo território, com o apoio da União Soviética, mesmo até, transferir para ali o seu secretariado. Logo, este era um espaço muito importante do ponto de vista estratégico. A preciosidade de um chão sem ouro nem ópio, chão a reclamar alforria de um estranho acampamento, para servir de ninho a bizarros pássaros de ferro.
Para os altos comandos portugueses, a região pouco interessava pelo facto de ser de difícil acesso e essencialmente por não ter ali populações que justificassem a presença de uma ou mais unidades de infantaria. Segundo a teoria de Spínola, a actuação das tropas devia fazer-se junto das populações. Naquele tipo de guerra, controlar o movimento dos civis e regular a vida nas aldeias tornava-se fundamental e, Madina, não tinha civis nem aldeias. Ali, os nativos eram poucos, não havia estradas, pontes, ou edifícios para proteger. Sob o ponto de vista militar as companhias de Beli e de Madina estavam simplesmente a defender-se a si mesmas.
Face a isto, Hélio Felgas e Spínola conversaram em Bissau. Concluíram ser necessário retirar as companhias ali instaladas. Spínola, depois de ter visitado a região, redigiu uma directiva, reflectindo essa preocupação. A Directiva Número Um de 1968, com a remodelação do dispositivo na região do Boé.
A competir com este inflexível e alucinado palco de guerra, existia a plataforma oposta – um importante centro político militar, onde o PAIGC, com o auxílio de instrutores chineses e o desempenho de guineenses formados na China, armava os seus quadros e preparava os guerrilheiros. Era ali que se encenava a arte da guerrilha. Era ali que se doutrinavam os elementares fundamentos políticos, de maneira a melhor se interiorizarem as razões da luta de libertação. Libertar do jugo, negar a representação do papel escolhido pelos colonos, envergar o traje de pelejadores sem medo, resistindo e avançando, ainda que também caíssem, derrotados, alguns dos seus heróis.
Domingos Ramos, um dos mais destacados comandantes da guerrilha acabou morto em Madina do Boé, a poucas dezenas de metros do arame farpado, que circundava o aquartelamento português, atingido por um estilhaço de granada. Os seus companheiros ergueram-lhe um memorial, no local onde caiu para sempre.
Na outra extremidade do bordão dos sentimentos e, com assombro, sabemos que no cerne do pior dos dramas, laivos de comédia sempre emergem, como narizes de palhaços-operários-do-submundo, no meio de um denso nevoeiro mental. O conforto do convívio e o sentido de humor são armas invisíveis feitas para atacar o medo constante. Se algumas vezes, no meio de um tiroteio sem fim, «com estardalhaço para cá e para lá», houver um corneteiro que suba a um abrigo e se ponha a tocar «Carga»,
«Avançar» ou «Vitória», em Madina do Boé, isso será apenas um acto do Apocalipse descritivo dos anjos com trombetas. «O quinto anjo tocou a sua trombeta, e viu uma estrela que havia caído do céu sobre a terra. À estrela foi dada a chave do poço do Abismo. Quando ela abriu o Abismo, subiu dele fumo como o de uma gigantesca fornalha. O sol e o céu escureceram com o fumo que saía do Abismo.» Mas , assomará de seguida o seu comandante, dissonante, a alertar para o perigo e a ordenar que se recolha no poço do Abismo, designado de abrigo subterrâneo. A realidade, sempre a importunar a fantasia. Que enfastiante!
Madina, lugar perdido no Boé. Ali tinham poisado as forças de quadrícula, muito próximas da famosa fonte da Colina, onde nasciam as escassas águas: o bálsamo no semi-deserto. Os aquartelamentos têm de ser construídos perto das fontes e das borboletas, para que os cantis se refresquem, os rostos empoeirados se desencardam e se possa respirar a pureza do crepúsculo rotativo de Jericó, tão contrastante com o espaço em volta, endurecido.
Em Madina do Boé, não havia messes, não havia tabancas, nem sossego. Não havia nada. Se houvesse, ao menos, tempo, rezar-se-ia o «Pai-nosso», com a entoação de Luís Miguel Cintra:
«Pai-nosso que estás no Nada. Seja o Nada o teu nome. Venha a nós o Nada do teu reino. Seja claro o Nada da tua vontade. Assim na Terra como no Céu. O Nada que nos alimenta nos dá hoje. Perdoa-nos sempre que não formos Nada. Como tentaremos perdoar a cada uma das tuas criaturas. Não nos deixes incorrer em tentação. E livra-nos de não sermos o teu Nada.»