Que justiça você quer construir para si e para sua aldeia? Uma travessia a partir das mulheres Samburu
Laís Cristina Neiva de Sousa[1]
No final de março, deparei-me com uma reportagem no jornal Nation Kenya intitulada, numa tradução livre ao português, Quebrando barreiras: Como as mulheres de Samburu encontraram sua voz nos tribunais tradicionais[2], escrita pela jornalista Florah Koech. O texto contava as experiências — uso o plural porque, na minha visão, são múltiplas e coletivas — de justiça restaurativa no Quênia, país da África Oriental. A história me capturou de imediato, não só pela força do relato, mas também por me lembrar do meu próprio artigo — Um diálogo entre Direitos Humanos, Justiça Restaurativa e Hermenêutica Filosófica: os círculos restaurativos como vivência da linguagem na perspectiva gadameriana[3], no qual investiguei experiências restaurativas no contexto brasileiro.
As experiências no território Samburu, em resumo, mostram como a implementação de um sistema de justiça restaurativa com uma perspectiva de gênero pode transformar profundamente a realidade de um território inteiro. Estamos a falar de uma sociedade pastoral patriarcal, onde o Conselho de Anciãos era composto exclusivamente por homens. Esse cenário começou a mudar com a inclusão de quatro mulheres no Conselho, que é composto em seu total por 19 pessoas, formando o que eles chamaram de Loip — o Tribunal sob a Árvore. Antes relegadas ao trabalho doméstico e ao pastoreio, essas mulheres não participavam de negociações importantes para sua realidade, como por exemplo os casamentos e dotes de suas filhas. No entanto, a partir da sua inclusão, Koech nos conta como elas passaram a desempenhar um papel central na resolução de conflitos, especialmente em casos de violência doméstica, outrora ignorados ou empurrados para o esquecimento.
Nesse contexto, a justiça restaurativa, agora também feita por mulheres, trouxe uma nova sensibilidade à comunidade Samburu: os conflitos passaram a ser resolvidos de forma amigável, incluindo disputas por terras e até casos criminais, como homicídio. Ademais, a presença feminina alterou a própria estrutura social da comunidade, pois os homens mais velhos começaram a ouvir as suas esposas nas decisões familiares. Isso evidencia como o gênero importa, não como categoria biológica, mas como lente de mundo. É através do olhar dessas mulheres que outras se reconhecem e conseguem se aproximar das experiências fenomenológicas de estar-no-mundo sendo mulher, seja no Brasil, seja no Quênia, em meio a todos o complexo de relações que perpassam por nossos corpos.
O conceito de poder simbólico[4], formulado por Pierre Bourdieu, é essencial para compreender essa dinâmica. Ele nos ensina que as instituições humanas carregam um poder invisível, porém potente, que legitima uma determinada visão de mundo como se fosse natural, e não o é. Entretanto, é esse tipo de poder que culturalmente determina comportamentos e práticas que buscam excluir a presença feminina dos locais de tomada de decisão, de poder real. O sistema de justiça não é diferente: a linguagem, os rituais jurídicos e a própria figura do juiz são socialmente reconhecidos como legítimos, mesmo quando perpetuam desigualdades. Por isso é tão importante ter esses espaços ocupados por mulheres e outras identidades historicamente vulnerabilizadas, para que o poder represente, de fato, o social. E isso ressoa, como se viu na comunidade Samburu.
Neste panorama, lá atrás, no meu artigo, eu já refletia como as práticas restaurativas podem ser vistas como formas criativas de resistência social. São alternativas que desafiam a racionalidade dominante, questionam estruturas excludentes e abrem espaço para novas formas de pensar justiça — para além da sanção. Além disso, essas práticas promovem uma educação para a paz, centrada nos direitos humanos e na transformação social. Uma paz que exige responsabilidade e cidadania participativa.
Para além disso, a experiência Samburu também desafia a lógica do “ganha-perde” da justiça tradicional, substituindo-a por um modelo de “ganha-ganha” comunitário. Outro dado relevante trazido pela reportagem é como a justiça restaurativa, ali, é ponte entre o tradicional e o formal. O Loip recebe os casos, resolvem-nos segundo regras locais e comunicam os resultados ao sistema formal, num fluxo que desobstrui a justiça estatal e fortalece os laços comunitários.
Aqui, a hermenêutica de Gadamer[5] ilumina o processo: a fusão de horizontes permite reformular pré-compreensões. O sujeito aberto à escuta coloca em jogo seus próprios preconceitos e forma outros horizontes de mundo. Assim, saímos de um modelo de justiça tradicional e patriarcal para uma experiência circular, comunitária, onde laços sociais rompidos pelo mau-feito são restabelecidos. Ou seja, tem-se uma forma decolonial, ou contracolonial, como propunha o mestre Nêgo Bispo[6].
Pensar em formas alternativas de justiça, que nos representem desde epistemologias do Sul — seja na América do Sul ou na África Oriental — é fundamental. O gênero importa. A empatia importa. A escuta importa. São esses elementos que podem gerar novas formas de efetivamente fazer justiça, uma justiça que sirva à coletividade.
Agradeço profundamente a Florah Koech pelo valoroso artigo, e ao Dossier África[7], promovido pela Casa África de diplomacia espanhola, por fazer com que essas experiências cheguem a outras latitudes, cruzem oceanos e dialoguem com janelas já abertas. Que possamos, então, continuar a problematizar desde outros olhares, de forma viva e insurgente.
Afinal, não existem respostas melhores que outras, elas são reflexos de cada povo. Basta se perguntar: que justiça você quer construir para si e para sua aldeia?
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Laís Neiva é Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Especializou-se em Direitos humanos e Democracia. Também concluiu um Diplomado de Liderança em Inclusão Social e Acesso a Direitos pela Organização dos Estado Americanos (OEA). Já desempenhou cargos públicos de Assessora Jurídica de autoridades brasileiras como Magistrado (TJPI) e Promotor de Justiça (MPPI). Atualmente, é mestra em Estudos de Tolerância Mundial e Paz pela Universidade Católica de Murcia (UCAM) e também atua como pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais (GEDAI) da Universidade Federal do Ceará (UFC). Sua pesquisa se concentra em questões raciais, violência policial e direitos humanos no Brasil. Comprometida com a promoção dos direitos humanos, acredita em seu potencial transformador para a sociedade, integrando essa perspectiva em sua carreira acadêmica e vida pública. ↑
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Koech, F. (2025, 27 de março). Breaking barriers: How Samburu women found their voice in traditional courts. Nation Kenya. https://nation.africa/kenya/news/gender/breaking-barriers-how-samburu-women-found-their-voice-in-traditional-courts-4979682 . ↑
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Sousa, L. C. N. d. (2024). Um diálogo entre Direitos Humanos, Justiça Restaurativa e Hermenêutica Filosófica: os círculos restaurativos como vivência da linguagem na perspectiva gadameriana. Revista do Ministério Público / Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro., 01(01), 93–119. https://www.mprj.mp.br/servicos/revista-do-mp/revista-91 . ↑
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Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico, tradução de Fernando Tomaz (Lisboa: Difel, 1989), 7-16. ↑
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Hans-Georg Gadamer, Verdade e método II: complementos e índice, tradução de Enio Paulo Giachini, revisão da tradução de Maria de Sá Calvacante-Schuback (Petrópolis, RJ: Vozes, 2002), 132. ↑
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Filósofo, poeta, escritor, professor e ativista político, publicou três livros e dezenas de artigos sobre a história da luta do povo negro. Propôs o conceito de contracolonialismo, uma atitude para reforçar a cultura, as práticas, a organização social e todas as manifestações coletivas dos povos colonizados contra os esforços de imposição dos colonizadores. Para ele, a contracolonização seria o “antídoto” contra a colonização, que ele definia como “veneno”. Ver: https://oglobo.globo.com/cultura/noticia/2023/12/04/antonio-bispo-dos-santos-o-nego-bispo-propos-contra-colonialismo-contra-veneno-da-colonizacao.ghtml ↑
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Dosier África. (s.d.). Casafrica. https://www.casafrica.es/es/DosierAfrica ↑