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A construção da imagem de Camões como herói da pátria

Em 1825, Almeida Garrett publicou o poema Camões. Em sintonia com as comemorações do quinto centenário do nascimento do poeta Luís de Camões, não podemos deixar de lhe associar a efeméride do segundo centenário da edição da obra inaugural do Romantismo em Portugal. Com efeito, se não fosse Camões, que outro autor teria sido elegido como mito patriótico e herói supremo da nação? Inspirou autores, artistas e políticos, o Estado erigiu-lhe uma estátua em Lisboa e, em 1880, as suas ossadas foram trasladadas para o Mosteiro dos Jerónimos, com as de Vasco da Gama, o herói da epopeia camoniana.

No início do século XIX, poucos anos após Bocage ter composto o soneto “Camões, grande Camões” e prenunciado a idiossincrasia romântica no que diz respeito à urgente reabilitação do poeta-soldado renascentista e da sua obra, após séculos de censura inquisitorial, começa a sentir-se uma extrema admiração por este autor, cujo exemplo patriótico será evocado de forma progressiva sob as mais variadas formas de arte, como é o caso da literatura, da pintura, da música ou da escultura. Em 1817, José Maria de Sousa Botelho, morgado de Mateus, patrocina uma luxuosa edição em dois volumes ilustrados de Os Lusíadas, impressa na tipografia parisiense Firmin Didot; entre esse ano e o seguinte, o pianista Domingos Bomtempo compõe a Missa de Requiem em Dó Menor, Opus 23, uma celebração fúnebre à memória de Camões.

Após a revolução liberal de 1820, a crescente admiração pelo génio de Camões, considerado a partir deste período um modelo supremo de patriotismo, inspira diversos autores e artistas a representar e a divulgar alguns episódios da sua vida, em particular o momento dramático da sua morte. Em 1824, Domingos Sequeira expôs a pintura A morte de Camões no “Salon” do Louvre, premiada com uma medalha de ouro. Tendo desaparecido o original, restaram apenas dois estudos, um dos quais está exposto no Museu Nacional de Arte Antiga, em Lisboa; nesse desenho, feito a carvão e giz branco sobre papel (35,5×42,2 cm), podemos observar Camões débil e em tronco nu, sentado na sua enxerga com a face e os braços erguidos ao alto, à luz ténue duma vela, no momento em que recebe a notícia da perda da independência de Portugal.

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Imagem 1: Domingos Sequeira, A morte de Camões (Fonte: MNAA)

O século XIX foi, de facto, testemunhando a ascensão do culto camoniano e a admiração crescente pelo génio criativo do poeta-soldado renascentista. Em 1825, o Romantismo foi introduzido na literatura portuguesa com a publicação da obra Camões, um poema épico em dez cantos, composto em 1824 por Almeida Garrett, durante o seu sofrido, mas culturalmente enriquecedor, exílio em França, devido às suas opções pela causa liberal. Em seis décadas, esta obra teve oito edições: 1825 (Paris: Livraria Nacional Estrangeira); 1839 (Lisboa: Tipografia de José Baptista Miranda); 1844 (Lisboa: Imprensa Nacional); 1854 (Porto: Livraria Chardron); 1858 (Lisboa: Viúva Bertrand e Filhos); 1863 (Lisboa: Viúva Bertrand e Filhos); 1880, integrada nas comemorações camonianas e prefaciada por Camilo Castelo Branco (Porto: Livraria de Ernesto Chardron); e 1886 (Lisboa: Imprensa Nacional).

No início da Advertência ao seu poema, Almeida Garrett proclama a originalidade nele contida ao quebrar com os preceitos clássicos, e compara o seu processo de composição ao modo como os nautas lusos desbravaram novos mares. Nesta mesma Advertência, o autor sublinha ainda a sua liberdade: “Não sou clássico nem romântico: de mim digo que não tenho seita, nem partido em poesia (assim como em cousa nenhuma)” (Garrett 1973, 29). Com estas palavras, o pioneiro da escola romântica em Portugal pretende afirmar a sua autonomia, tanto em relação às estritas regras aristotélicas e horacianas da mimesis clássica, como ao estilo florescente de Walter Scott e Byron.

A educação de Almeida Garrett havia tido uma componente arcádica, através das leituras de clássicos gregos, como Horácio, Ésquilo, Eurípedes ou Sófocles, bem como de clássicos franceses, como Racine ou Voltaire. Assim se explica que as suas primeiras obras – Lucrécia (1819), Mérope (1820) e Catão (1821) – tenham sido tragédias clássicas. Em 1825, Garrett não renega a sua formação cultural e literária no classicismo, nem se declara romântico; com efeito, apesar das características românticas já contidas no poema, tais como a intensidade emocional, a quebra das regras clássicas ao nível da estrutura, da rima, dos atributos dos heróis épicos e trágicos, ou das valorização de personagens de baixa condição, Garrett não renuncia aos arcaísmos classicizantes. Na verdade, o patriarca da primeira geração romântica em Portugal entende que uma composição poética deve estar em conformidade com as prescrições recomendadas por Horácio na sua Arte Poética: tal como a abelha vai, de flor em flor, em busca do melhor pólen para obter o mel mais saboroso, também Garrett tenta conciliar em simultâneo a tradição dos grandes autores clássicos com a moderna escola romântica. Na defesa intransigente dos valores da individualidade e da afirmação do sujeito, é esta a ideia que defende para a poesia: originalidade e liberdade de imaginação.

O poema extenso Camões inspira-se na vida atribulada de Luís de Camões e na composição da sua obra épica, no qual sustenta a representação de um génio incompreendido pelas forças do poder, anatematizado pela má Fortuna e proscrito da sua pátria amada. Os dez cantos do poema garrettiano revelam, desde logo, um alinhamento com a estrutura formal d’Os Lusíadas, sendo cada um iniciado com uma epígrafe extraída da epopeia camoniana, à excepção do canto V, encabeçado por dois versos do soneto “Alma minha gentil que te partiste”. Como explicação desta intertextualidade camoniana por parte de Almeida Garrett, recorremos às palavras do crítico literário Carlos Reis: “para Garrett, restaurar o discurso camoniano, pela citação ou epígrafe, pela paráfrase ou pelo pastiche, correspondia também à recuperação da necessidade da epopeia, senão como género, pelo menos como estímulo para a revitalização da Pátria;” (Reis 1982, 73).

O Canto I é iniciado com a palavra “saudade”, que é, tal como é definida no primeiro verso, um “gosto amargo de infelizes” sentido em simultâneo quer pelo autor, quer pelo herói do poema, pois ambos experimentaram o acerbo distanciamento da pátria. À semelhança do que sucede com a típica invocação aos deuses feita nos primeiros versos das epopeias clássicas, a quem os seus autores rogavam inspiração, a saudade adquire aqui um estatuto de divindade, uma espécie de entidade misteriosa que dá ânimo à tristeza do autor; a saudade, uma doce e melódica palavra enunciada apenas em português, para a qual não existe tradução fiel em outras línguas, é esse ente sobrenatural que faz aproximar amigos e apaixonados ausentes e que permite que um poeta degredado “voe”, por breves momentos, desde o Sena, à beira do qual se encontra, até ao Tejo, símbolo da sua terra amada.

Após o lamento inicial de saudade, este canto prossegue com a narração do regresso de Camões a Lisboa, na companhia do seu escravo, após ter deambulado pelo Oriente durante quase duas décadas. Imbuído de cenas melancólicas e paisagens lúgubres, o canto II descreve o funeral de Natércia (anagrama de Caterina de Ataíde, dama da corte), uma das mulheres que o poeta teria cortejado. Nos cantos seguintes, Camões dirige-se a Sintra, a fim de apresentar a D. Sebastião a sua epopeia, que resgatou de um naufrágio e entende ser útil à pátria. Através de uma sequência de paráfrases, é narrada a viagem de Vasco da Gama e os seus principais eventos, em paralelo com o próprio desterro do poeta, revelando, uma vez mais, a simultaneidade de dois heróis épicos. Pelo meio, é mencionada a exuberante beleza de Sintra, com uma referência ao poeta romântico inglês Lord Byron, o bardo misterioso que havia dado a conhecer aquele espaço edénico quando o visitou e mencionou no seu poema Childe Harold’s Pilgrimage, publicado em 1818. Nos cantos VII e VIII, presenciamos Camões a declamar, perante o jovem rei, alguns episódios de Os Lusíadas.

Neste poema, Almeida Garrett explora não só a história de um poeta talentoso perseguido pelo infortúnio, mas também os estados de espírito do Jau, o bom e fiel escravo que mendigava pelas ruas de Lisboa, na calada da noite, para aplacar a fome do seu senhor e amigo. Assim, esta obra poética aborda, de uma forma pioneira na literatura portuguesa, o tema da escravatura, um negócio que iria ser gradualmente reduzido a partir do momento em que o marquês de Sá da Bandeira promulgou, em Dezembro de 1836, um decreto que proibia a exportação e a importação de escravos em todos os domínios portugueses, encerrando o envolvimento de Portugal nessa “nódoa indelével na história das Nações modernas”.

Até ao início do século XIX, pouco havia sido escrito a propósito da relação de Camões com o Jau (ou António, também assim chamado desde o seu baptismo cristão), o escravo javanês que adquiriu durante a sua permanência na ilha de Moçambique, a meio da sua jornada de repatriamento de Goa para Portugal, ou sobre qualquer espécie de emoção nascida dessa convivência. No início do século XVII, o padre Pedro de Mariz (1550-1615), autor do primeiro esboço biográfico de Camões, incluído na edição de 1613 de Os Lusíadas, menciona que Jau mendigava à noite nas ruas de Lisboa. No seu texto, Mariz transcreve o conteúdo de uma carta escrita por Camões ao fidalgo Rui Dias da Câmara, onde lhe pede desculpa pelo atraso na trasladação de alguns salmos penitenciais, e acrescenta ainda que estava pobre e a receber auxílio de um escravo chamado Jau: “quando fizera aqueles cantos, era mancebo, farto e namorado, querido e estimado, […], e que agora não tinha espírito, nem contentamento para nada, porque ali estava o seu jau que lhe pedia duas moedas para carvão, e ele as não tinha para lhas dar.” (Mariz 1613).

Este silêncio em torno da relação entre Camões e o seu escravo mudou com a proclamação do liberalismo em Portugal. Com efeito, a partir do momento em que a Constituição Política de 1822 estabeleceu a abolição da censura e a liberdade de imprensa, autores e artistas utilizaram a sua liberdade de expressão para dar vida a heróis históricos sob as mais diversas formas de arte, a fim de dotar a identidade nacional de um passado glorioso. O movimento romântico desse período rompeu com a tradição clássica e privilegiou a emoção, em detrimento da razão. Os artistas abraçaram os ideais de justiça e tolerância, juntamente com sentimentos antiescravistas, e começaram a pensar de forma diferente em relação à cor da pele e à raça. Essas correntes de historicismo, orgulho nacional e emocionalidade convergiram em algumas representações literárias e artísticas do convívio do poeta renascentista com o seu servo javanês ao longo de uma década.

Em Camões, Garrett atribui uma importância excepcional a momentos da vida do poeta após o seu regresso do Oriente e ao papel desempenhado pelo seu escravo Jau. Garrett atribui a este último não apenas um nome – António – e atributos morais, mas também uma voz activa, presente ao longo do poema. Longe de ser uma personagem secundária no poema garrettiano, o Jau é frequentemente destacado na acção principal; em termos narratológicos, é o adjuvante do herói, o companheiro e amigo que nunca o abandona, permanecendo fielmente ao seu lado até ao fim dos seus dias. Garrett induz, assim, os seus leitores a identificarem-se com os traços de personalidade do escravo, tais como honestidade, humildade, integridade, bondade e lealdade. Esta afeição criada entre o herói nacional e o seu servo pode, eventualmente, ainda ser considerada à luz do contexto colonial do Império Português, que tinha ficado reduzido após a declaração da independência do Brasil em 1822. Almeida Garrett tenta demonstrar a legitimidade de uma ideologia patriótica e colonialista através do relevante papel desempenhado por um escravo honrado e aquiescente.

O poema termina com os pungentes momentos finais da vida errante de Camões: “Arqueja exangue, / Definha à míngua, só, desamparado / Dos amigos, do rei, da pátria indigna, / O cantor dos Lusíadas.” (Garrett 1973, 175). Nos últimos versos do canto X, encontramos o patriotismo, o grande traço identitário do pensamento garrettiano, duplamente consolidado na ideologia liberal e no temperamento romântico, que está patente nas derradeiras palavras proferidas por Camões antes de perecer, em simultâneo com a perda da independência de Portugal: “Os olhos turvos para o céu levanta; / E já no arranco extremo: – «Pátria, ao menos / Juntos morremos…» – E expirou coa Pátria.” (Garrett 1973, 188).

A partir desta obra poética de 1825, que assinala a introdução do Romantismo em Portugal, irá desenvolver-se uma profunda admiração pelo poeta quinhentista, que já vinha sendo demonstrada por meio de outras formas artísticas, já aludidas no início do texto. António Feliciano de Castilho, escritor e pedagogo da primeira geração romântica, também se sentiu impelido a preencher as enigmáticas omissões biográficas da vida de Camões. Durante a sua permanência na ilha de São Miguel, em finais da década de 40, Castilho escreveu Camões: Estudo Histórico-Poético, um drama sobre a vida atribulada do poeta. Publicada em 1849, esta obra em três volumes envolve o escravo Jau, descrevendo-o como “mancebo robusto, impetuoso e poético”, com “briosa segurança na postura, nos movimentos e no falar”, apresenta algumas ideias para homenagear a memória de Camões e preservar o seu legado histórico-cultural, e propõe recuperar os seus restos mortais e trasladá-los para um mausoléu.

No período da Regeneração e da política fontista, permanece o sentimento patriótico, e alguns autores e artistas também procuram ilustrar, ao longo da segunda metade do século XIX, a vida aventurosa de Camões, sobretudo o período amargurado dos seus derradeiros anos.

Imagem 2: Francisco Metrass, Camões na gruta de Macau (Fonte: MNAC)

Em 1853, Francisco Metrass, o mais legítimo representante da pintura romântica em Portugal, pinta o quadro Camões na gruta de Macau. Nesta pintura a óleo sobre tela (1,63×1,32 m), exposta no MNAC – Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa, o poeta parece meditar no poema que o consagrará como vate da nação; a pena na sua mão direita e a espada a seus pés patenteiam o tema clássico das Armas e das Letras, os dois honoráveis talentos que um autêntico herói deve praticar com elevada destreza, e consubstanciam a sua própria vida, numa clara alusão aos derradeiros versos da epopeia camoniana: “Pera servir-vos, braço às armas feito, / Pera cantar-vos, mente às Musas dada.” (Os Lusíadas, X, est. 155). O seu escravo Jau, de semblante tímido e melancólico, é o único a seu lado.

Camões no leito da morte, uma litografia a preto e branco (34,5 x 50 cm) composta em 1861 por um artista de nome Cupertino, representa também os derradeiros momentos do poeta renascentista: temos aqui a imagem de um poeta envelhecido, débil, andrajoso e abatido, que recebe a visita de um nobre, presumivelmente o seu amigo Gonçalo Coutinho, que lhe transmite a notícia da perda da independência de Portugal. Enquanto descansa na sua humilde enxerga, Camões tem a seu lado um homem que o ampara e cujas características físicas se assemelham às representações tradicionais dos indígenas javaneses: cabelo delgado, olhos rasgados, e bigode e pera ao estilo oriental.

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Imagem 3: Cupertino, Camões no leito da morte (Fonte: BNP)

Em 1875, Eça de Queiroz publica O crime do Padre Amaro. Ao longo deste romance, o protagonista Amaro consegue adaptar-se sempre ao meio que o rodeia, tanto em Leiria como na passagem por Lisboa, em Maio de 1871, por altura dos eventos sanguinários da Comuna de Paris. No último capítulo, vemos o jovem sacerdote perto da estátua de Camões no Largo do Chiado, da autoria do escultor Victor Bastos, que havia sido inaugurada em 1867. Como exemplo superior deste retrato de degeneração nacional, junto ao pedestal da imponente estátua, encontram-se o padre Amaro e o cónego Dias, os mandatários da Igreja que acompanham o conde de Ribamar, representante do poder temporal e da classe aristocrática, que discursa sobre a prosperidade económica de Portugal. Nos últimos parágrafos, surge uma visão paradoxal: determinado em denunciar o lado sórdido da sociedade, o narrador repõe a verdade e mostra as pessoas que por ali circulam, ociosas e consumidas por vícios que causavam a degenerescência da raça e o definhamento da indústria. No plano derradeiro da obra, a pequenez daquela tríade de personagens medíocres e abstraídas da realidade, um símbolo da aliança entre o trono e o altar, contrasta ironicamente com a estátua de Camões, a evocar a epopeia marítima que, em tempos remotos, uma nação destemida havia concretizado.

Em 1880, o patriotismo, após o extremo valor que o regime liberal e a escola romântica lhe haviam dado, adquire uma nova dimensão política quando o movimento republicano também dele se apropria. Com efeito, na década de 80, o sentimento nacionalista torna-se um dos principais instrumentos do Partido Republicano Português, cuja linha ideológica é assinalada, neste período, pelo encorajamento à celebração dos grandes heróis da História, tal como sucedera em França com as homenagens prestadas aos filósofos Voltaire e Rousseau. Neste sentido, como forma de sublinhar os feitos grandíloquos do passado, a fase propagandística do PRP principia justamente com as comemorações do tricentenário da morte de Camões e a homenagem aos protagonistas dos descobrimentos marítimos, encabeçadas por Teófilo Braga.

Na edição de Outubro-Novembro de 1879 da revista portuense O Positivismo, dirigida por Teófilo Braga e Júlio de Matos entre 1878 e 1882, encontra-se o texto “O centenário de Camões em 1880”, onde Teófilo Braga propõe a união das forças civis para festejar condignamente a efeméride de Camões. O ideólogo republicano destaca a importância de se comemorar o 10 de Junho, em homenagem à grandeza poética e ao patriotismo exemplar do “santo laico da República” (Medina 1986, 18). Teófilo Braga critica o regime monárquico, denuncia o estado decadente da nação, mas mantém a confiança no futuro ao evocar Os Lusíadas, a inspiradora “bíblia” do povo e fonte de energia para a alma lusitana. Teófilo Braga procura, assim, consolidar a genialidade intemporal de Camões e enquadrar os festejos do seu centenário num enquadramento republicano e laico.

As comemorações do terceiro centenário da morte de Camões são, com efeito, uma excelente oportunidade de acção cívica por parte dos dirigentes republicanos, através de cortejos ao monumento do poeta, de edições literárias e outros eventos culturais. Neste mesmo período, o cronista gráfico Rafael Bordalo Pinheiro dá também um enorme impulso à propaganda republicana. As suas caricaturas, plenas de humor corrosivo, vão revelando o crescimento gradual do republicanismo, apostado em derrubar o regime monárquico por via eleitoral. Apesar de procurar manter algum distanciamento em relação às instituições político-partidárias, Bordalo manifestou muitas vezes a sua afinidade com a causa republicana, o que o levou a declinar, em 1886, a comenda régia da Ordem de São Tiago.

A 12 de Junho de 1875, Bordalo Bordalo inaugura a figura de Zé Povinho numa caricatura publicada na gazeta satírica A Lanterna Mágica. A partir desta data, Zé Povinho torna-se uma representação antropológica do português típico, com todas as idiossincrasias negativas de fraqueza, iliteracia, rudeza e conformismo. Nomeado com um duplo diminutivo, este pobre estereótipo simboliza a forma como o povo é continuamente iludido pela classe dirigente, e acaba por entrar no combate político ao tornar-se, segundo o historiador e crítico de arte José-Augusto França, “um porta-voz dos sentimentos republicanos” (França 1993, 562).

A 17 de Junho de 1880, Bordalo publica no jornal O António Maria, do qual era director, a “Crónica do Centenário”, uma caricatura em plena sintonia com os festejos camonianos e inserida num amplo conjunto de protestos desencadeados contra o regime monárquico. A este propósito, o historiador João Medina tece o seguinte comentário: “Nasceu de facto o nosso republicanismo com o tricentenário da morte do Poeta e as verdadeiras festas populares promovidas pelos republicanos, festejos que logo tiveram um cunho anti-brigantino, como o resumiu num “cartoon” o cronista gráfico da época, Rafael Bordalo Pinheiro […]” (Medina 1990, 21). Nesta ilustração bordaliana, Camões tem um barrete frígio na cabeça, ou seja, está simbolicamente convertido à ideologia republicana. A partir deste momento, assinalado de forma tão “caricata”, o poeta fica associado ao republicanismo e transforma-se, segundo a excelente metáfora que Eduardo Lourenço utiliza na sua obra O Labirinto da Saudade, numa “máquina de guerra ideológica contra a Monarquia […].” (Lourenço 1978, 163). Bordalo coloca Camões num plano de destaque, à frente do povo exultante, e menospreza os representantes da monarquia portuguesa, incluindo o rei D. Luís e Anselmo José Braamcamp, chefe do Governo, relegados para um canto; com efeito, o monarca e o seu governo haviam entendido que as comemorações camonianas eram uma iniciativa republicana e alhearam-se das cerimónias, facto que Bordalo Pinheiro não deixou de salientar na legenda inserida: “Camões agradece aos altos poderes do Estado não terem ido à sua procissão e terem-no feito republicano, com o qual muito ganhou a ideia”.

Entre outros importantíssimos tributos político-culturais que assinalaram estas comemorações, é de referir que as ossadas do poeta, juntamente com as de Vasco da Gama, o grande herói da epopeia camoniana, foram trasladadas para o Mosteiro dos Jerónimos, Cesário Verde publica o “O Sentimento dum Ocidental”, sai a sétima edição de Camões, de Almeida Garrett, prefaciada por Camilo Castelo Branco, e Gomes Leal edita A fome de Camões, em cujo poema extenso também é exposta a dependência económica do poeta em relação ao seu escravo. Com efeito, no século XIX, a veia romântica ampliou o espaço das emoções na cultura ocidental. No contexto de uma revolução liberal, que conduziu à abolição da escravatura, um crescente respeito pelo génio criativo de Camões inspirou autores e artistas a iniciar o processo de tornar este poeta uma lenda nacional e um grande exemplo de patriotismo. Com base no tema clássico do herói solitário e do seu fiel ajudante, e dando continuidade ao mito do Bom Selvagem, uma teoria do homem incivilizado atribuída a Rousseau, foram reinventados alguns aspectos da vida do poeta-soldado, incluindo a ênfase no desempenho do seu servo. Através do poderoso veículo de imaginação explorado por Almeida Garrett, este escravo denominado Jau – ou António – é o exemplo pioneiro das escassas representações da escravatura na literatura e arte em Portugal.

No século XX, já sob regime republicano, Camões assombrou o pensamento de Fernando Pessoa, continuou a marcar a cultura portuguesa e a manter-se como paradigma patriótico, com o empenho dos vários poderes políticos: o Estado Novo, liderado por Oliveira Salazar, passou a assinalar a data de 10 de Junho como “Dia de Camões, de Portugal e da Raça”; após a Revolução dos Cravos, o regime democrático deu-lhe um sentido mais amplo, convertendo-o em “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”; no último quartel deste século, criou-se o Instituto Camões, um organismo público que tem divulgado e ensinado a língua portuguesa pelos quatro cantos do mundo, e instituiu-se o Prémio Camões, o maior galardão com que, anualmente, o Estado laureia os autores de países lusófonos que contribuem para o engrandecimento literário e cultural da língua portuguesa. Vários poetas de renome o celebraram em seus versos, tais como Sophia de Mello Breyner Andresen, Miguel Torga, Manuel Alegre, Herberto Helder, Jorge de Sena, Carlos de Oliveira ou José Saramago.

Ao longo dos dois últimos séculos, Camões tem sido, portanto, o autor mais usado pelas diversas forças políticas, tanto em regime monárquico como republicano, e o seu exemplo supremo de patriotismo levou diversos autores e artistas a representar alguns episódios da sua vida sob as mais variadas formas de arte, como é o caso da literatura, da pintura, da música ou da escultura. Em pleno século XXI, com a obra deste poeta da diáspora lusa e da miscigenação entre os povos do mundo traduzida nas mais diversas línguas, estudada em várias universidades internacionais, algumas das quais criaram cátedras com o seu nome, e referência incontornável na literatura universal, vários eventos têm celebrado os 500 anos do seu nascimento. Para além de alguns problemas ocorridos com o Comissariado-Geral para as comemorações camonianas em 2024, deu-se também a contrariedade de esta efeméride ter coincidido justamente com os 50 anos da Revolução dos Cravos e da implementação da democracia em Portugal, um evento que ofuscou as comemorações camonianas e lhes retirou algum destaque.

Independentemente de todos os contratempos e constrangimentos, de uma coisa podemos estar certos: continuarão a ser debatidas questões do cânone e do corpus da lírica camoniana, que, segundo Aguiar e Silva, contêm o mais complexo problema textológico de toda a literatura portuguesa; para além disso, continuaremos a abordar, na sua obra, temas como o renascimento, o petrarquismo, o amor, a saudade, a natureza, o destino, a mitologia, a mudança e o desconcerto do mundo; e surgirão novas traduções da obra camoniana para diferentes línguas, bem como múltiplos estudos, ensaios ou biografias.

E a nível didáctico, qual é o lugar destinado a Camões e qual a representatividade da sua obra nos programas e metas curriculares de Português para o ensino secundário? Como estudar este poeta e o que estudar na sua obra? Ensinar Camões a jovens de 14 e 15 anos é, neste século marcado pela globalização, um desafio duplamente complexo: por um lado, a crescente e generalizada desmotivação para a leitura; por outro lado, uma maior heterogeneidade nas salas de aula, com cada vez mais alunos oriundos de vários continentes e nacionalidades, que possuem competências linguísticas, crenças religiosas e contextos culturais muito diversos.

Apesar dos novos desafios que se verificam nas salas de aula ao nível dos perfis assimétricos das novas gerações de alunos, Camões tem resistido às revisões de programas e metas curriculares, e mantém-se inabalável no cânone literário escolar, cujos textos, reconhecidos como modelo edificativo de escrita, contribuem bastante para a educação literária e para um melhor desempenho da escrita e da oralidade. A lírica e a épica camonianas continuarão a ser dadas a conhecer aos alunos do 9º e 10º anos de escolaridade, servindo os propósitos do ensino de literatura, história, retórica, estilística e sintaxe, e os programas escolares continuarão a incluir o texto camoniano, por ser uma grande fonte de estudo gramatical: como classificar e dividir as orações, identificar as figuras de estilo, ou, na métrica, saber distinguir a medida velha do verso decassilábico.

Todos os regimes políticos são efémeros, mas o génio de Camões perdurará ao longo dos tempos. Independentemente das políticas culturais e pedagógicas, o seu filão inextinguível continuará a oferecer novos mares por desbravar na literatura e na arte, e o seu nome estará sempre associado à diáspora dos portugueses e da sua língua. Perante a qualidade insofismável da obra camoniana, continuaremos a espalhar por toda a parte o engenho e arte deste poeta, e a ouvir o português a ser comummente designado como “a língua de Camões”. Enfim, o nosso poeta-soldado, que pela sua obra valorosa da lei da morte se libertou, continuará a ser uma sinédoque de Portugal e uma marca incontornável da cultura portuguesa.

Referências bibliográficas

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