A Urgência de um Novo Laço

A URGÊNCIA DE UM NOVO LAÇO[1], texto de Simão Mata[2]para o primeiro encontro do Laço Analítico/Núcleo de Lisboa.

Começo por me desculpar por não conseguir estar presente fisicamente convosco neste primeiro Encontro do Laço Analítico/Núcleo de Lisboa. Mas se não posso estar presente é por razões que me ultrapassam e que se prendem com a minha agenda profissional. Ainda assim, tal não significa que eu não possa dizer algumas palavras sobre o evento que hoje se está a celebrar em Portugal. E começo precisamente por aqui, pela minha impossibilidade em estar aí, fazendo-me chegar por intermédio deste texto e pela voz de uma colega psicanalista. Sou, por isso, ausência e personifico-me numa voz alheia o que, para mim, equivale a que isto que escrevo tenha outra dimensão, que salte de mim e que me escape de certa forma.

Pois bem, a necessidade deste meu escrito prende-se, justamente, com a necessidade de fazer laço convosco, mesmo não podendo estar presente. O que esta necessidade aponta mesmo sendo impossível a minha presença física é já, justamente, uma dimensão simbólica do laço, uma dimensão que ultrapassa, portanto, qualquer barreira, linguística, geográfica ou de outra natureza, ao ponto de eu, mesmo assim, querer fazer laço convosco. “O discurso é laço social” diz-nos Lacan. Fazer laço pela minha ausência, portanto, pela falta, pelo equívoco da minha presença/ausência e pelas palavras ditas por um outro e que se faz, por isso, um outro-outro. Que maravilha!

Gostaria de vos felicitar, a todos os que tiveram a ideia de trazer o Laço Analítico do Brasil para Portugal. Seria um lugar-comum esta felicitação, mas penso que ela comporta mais do que um mero ato formal. “A minha pátria é a língua portuguesa”, disse Fernando Pessoa e esta frase cabe também aqui nesta altura da fundação do Laço Analítico em Portugal. Vinícius de Morais, para não me acusarem de estar a citar apenas um poeta português, disse que era um homem meio sem pátria e que a sua pátria era a humanidade. Se o que nos une é a Língua, une-nos também a cultura, as tradições, os mitos mas também as nossas formas de expressão de angústias, sofrimentos, aspirações e sonhos. Todos sabemos, como lacanianos que somos, da importância da Língua e da Linguagem para nos constituirmos como sujeitos da falta. Mas para que o Laço se aprofunde será necessário também destacar as nossas incomensuráveis diferenças pois se é na proximidade que os nós se atam para formar laço também parece ser nas distâncias e nos equívocos que eles se desenrolam para se voltarem a formar. E, nesse sentido, o que hoje assistimos são laços sociais amorfos, amalgamados, sem distanciamentos devidos, levando-nos à indiferenciação psicótica, uma espécie de núcleo fusional onde, não nos separando, tornamo-nos uno quando deveríamos ser múltiplos a todo o momento e em toda a parte. Este Laço, o analítico, que aqui críamos, e estou certo de que todos os Laços serão assim, estão cravados de camadas estratificadas e contraditórias de sentidos e significantes devendo convocar uma escuta atenta, particular e singular.

Evito, por isso, qualquer tentativa de inculcação de uma psicanálise “à portuguesa” em detrimento de uma “à brasileira” ou “à francesa” pois, para mim, psicanálise só há uma: a freudiana que é, convém lembra-lo sempre, sobretudo os mais incautos, a do inconsciente. Há, por assim dizer, um oceâneo de palavras, sentidos e significantes impronunciáveis que separam os laços da nossa lusofonia, que os une também, pois foi e é ainda através deles que circulamos e que comunicamos. Talvez haja também, nas profundezas do oceâneo atlântico, muito para explicar neste laço denso entre Portugal e Brasil. Trata-se, porque não dizê-lo já para não manter este assunto na penumbra por mais tempo, de uma relação entre hemisférios – o do Norte, onde está Portugal, a Europa, o lado dominante do planeta, e o do Sul, onde está o Brasil e outros países latino-americanos, o lado dominado pela roldana da História. Uma relação, portanto, que é muito mais do que uma mera diferença geográfica, mas de epistemologias, de clivagens socioeconómicas e de dominações socioculturais. Convém que tenhamos isto presente na altura de fazermos Laço. Pois o Sul foi sempre dominado por um Norte geopolítico que ousa anular diferenças e inculca, a toda a hora e momento, o que julga ser verdadeiro e democrático, alimentando o progresso e a civilização, a força da ordem, fazendo equivaler tudo o que não cabe nesta ordem mundial como a barbárie incorrigível, o resíduo que deve levar ao silenciamento progressivo daqueles que ousem pensar, sentir e agir de forma diferente. Para Boaventura de Sousa Santos esta divisão ocorre no plano de uma “linha abissal” que separa o Norte e o Sul, sendo que neste último se podem encontrar: “(…) conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas que desaparecem como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem além do universo do verdadeiro e do falso” (Santos, 2009, p. 25).

Voltando agora à relação entre Portugal e o Brasil lembro-me, a este respeito, do discurso já muito embriagado, mas sempre certeiro, de Vinícius de Morais quando em casa de Amália Rodrigues[3] disse que o português se tinha que desengravatar. Refletindo sobre a sua estadia em Portugal após o convívio com intelectuais portugueses concluiu que teve uma impressão simultânea de beleza e tristeza: “Uma impressão de tristeza de ver este povo tão formalizado ainda. Eu tenho a impressão que o povo português precisa de se desengravatar, perder uma série de formalismos que ele conserva ainda. Despir-se de seu formalismo! Comunicar-se cada vez mais, amar-se sem problemas (…) Rompam com as cadeias, amem-se! Rompam com as tradições, rompam os preconceitos!”

O que queria, à distância das décadas, dizer Vinicius com a sua voz inebriada pela cachaça naquele serão de fados lisboeta?

Pois bem, vivia-se, na altura, a ditadura salazarista e os ventos eram, de facto, de um considerável engravatamento dos costumes, das tradições, temperados por um fado de esperança e de saudade onde os ventos que eram gerados além-fronteiras, ventos do progresso e da justiça, levavam logo os ditadores do regime fascista a apertar o laço (da gravata) dos portugueses que viviam com esperanças e sonhos de mudança. Relembro que também a gravata tem um laço. E este laço está, por vezes, apertado, tão apertado que ficam asfixiados e amedrontados todos aqueles que usam gravata. Espero que aqui não estejam presentes sujeitos engravatados. E, nos tempos que correm vemos o laço a ficar cada vez mais apertado – não o do Laço discursivo, claro. Mas o da gravata.

Comemoramos há dias o cinquentenário da nossa revolução dos cravos de 1974. Se a data é festiva deve ser também de reflexão profunda sobre o caminho que a pulsão revolucionária está a ter no nosso país. Afinal, depois da afirmação da liberdade, da emergência dos nossos impulsos reprimidos enquanto povo, qual tem sido o caminho desta atividade pulsional no pós-revolução? Acreditaríamos ingenuamente que após o momento da libertação da opressão que esta não se imporia novamente por forças mais ou menos conscientes? Enfim, quais os caminhos desta nova pulsão de liberdade que vivemos hoje, em pleno cinquentenário da revolução, em Portugal?

Por esta Europa e Mundo fora multiplicam-se experiências de natureza fascista (convém que não façamos polimentos na linguagem e que assumamos de uma vez por todas as pretensões dessas ideias convertidas em “neoconservadorismo”…) e, concretamente, em Portugal, essas ideias têm proliferado como cogumelos um pouco por toda a parte de que o seu sintoma mais recente são as últimas eleições legislativas de março onde o Partido Chega teve um milhão de votantes, afirmando-se como a terceira força política. Não estou a ensinar-vos nada sobre este aspeto pois durante quatro anos tiveram que lidar na presidência do vosso país com alguém com ideais análogos ao que esta força representa em Portugal. Mas importa lançarmos, desde já, a questão: como faremos Laço com o Outro, com o diferente, com o estrangeiro, quando isto nos acontece politicamente? Está na altura de resgatarmos a obra de um filósofo holandês, Rob Riemen, nomeadamente o seu Eterno Retorno do Fascismo (2012) onde a propósito da ascenção do fascismo no seu país refere: “Nos Países Baixos, Geert Wilders e o Partido da Liberdade são os protótipos do Fascismo contemporâneo e, enquanto tal, não são senão as consequências políticas lógicas de uma sociedade pela qual todos somos responsáveis. O fascismo contemporâneo resulta, mais uma vez, de partidos políticos que renunciaram à sua tradição intelectual, de intelectuais que cultivam um niilismo complacente, de universidades que já não são dignas desse nome, da ganância do mundo dos negócios e de mass media que pretendem ser ventrículos do público em vez do seu espelho crítico. São estas as elites corrompidas que alimentam o vazio espiritual, contribuindo para uma nova expansão do fascismo” (pp. 75-76). Deduzimos por esta citação do filósofo holandês que todos temos a nossa quota parte pela ascensão atual do fascismo. Mas temos também a responsabilidade coletiva de o fazer desaparecer.

Façamos agora uma incursão no campo que nos traz aqui hoje: a psicanálise. Penso que ela, sendo um discurso sobre o qual nada se sabe é, por excelência, o discurso mais democrático de todos. Pois coloca-nos a todos no lugar dos equívocos, das desconfirmações, e das nossas próprias contradições. Foi assim desde o seu nascimento. Por muita teoria psicanalítica que exista, feita às vezes de forma enigmática por conceitos que permanecem cristalizados no tempo, a psicanálise pura – é essa que importa – reside na absoluta ignorância epistémica e o psicanalista que se orienta por ela e para ela não deve ser, embora muitas vezes o seja, um “proletário teórico”[4], espécie de “verificador” da teoria freudiana, lacaniana ou de qualquer outra linhagem.

De forma muito simples, mas bastante esclarecedora penso eu, para entendermos essa coisa tão rocambolesca chamada inconsciente basta pensarmos no seguinte: todo e qualquer sujeito em determinada fase da sua existência dá-se conta do hiato, da falha que existe entre o seu lado, isto é, a verdade, e tudo aquilo que personifica a impossibilidade efetiva da realização das suas necessidades pulsionais. Isto é o inconsciente. Simples. Em Lacan (1953) esse conceito está definido de forma muito clara também: “O inconsciente é a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade do seu discurso consciente” (p. 260) ou ainda, como refere mais adiante no seu texto: “O inconsciente é o capítulo da minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado” (p. 261). Basta recordarmos a condição secundária/segunda consciência das histéricas de Freud, isto é, de um discurso consciente que sofria, afinal, de pouca consistência, de equívocos constantes, de falhas e deformações para percebermos que isso que aí se manifestava era, afinal, o produto dessa fenda entre o sujeito e o mundo. Dir-se-ia que a discursividade histérica não era retilínea, mas estava antes carregada de viragens, dobras e cortes. A teia discursiva era multiforme. Alguns viram défices. Freud viu um outro mundo. E com esse outro mundo, o que fez? Fez Laço e criou a psicanálise.

Ora, os tempos que vivemos hoje são contrários à psicanálise devido a uma contração muito significativa dos espaços para o contraditório, a reflexão e a tensão dialética. Não digo que sejam contrários no mesmo sentido da época freudiana mas ainda estamos perante uma “moral sexual civilizada”, vertida em preces de bons costumes e de meninos e meninas bem comportados (as). Quando digo contrários quero antes dizer que não são favoráveis, que a Psicanálise terá que lutar pela sua afirmação como arte, como ciência, como técnica, como uma teoria geral da ação humana, como uma metapsicologia, pois os tempos são de certezas que se querem absolutas e toda a atividade intelectual do Homem parece estar, não na identificação e elaboração das suas contradições e impasses mas numa fuga para a frente sem igual, num esforço desmesurado de não se escutar nada nem ninguém, de não se analisar coisa nenhuma. Tudo isto acontece numa sociedade que se autodesigna paradoxalmente de “terapêutica”, pois proliferam as psicoterapias do ego por esse Portugal e Mundo Fora. A psicanálise poderia encontrar aí, e talvez encontre em certo sentido, um ecossistema onde possa respirar e sobreviver. Mas talvez não tenhamos que vender assim tão ao desbarato o ouro da associação livre pelo cobre da sugestão direta das psicoterapias convencionais…

Psicanálise, pluralidade e democracia habitam em conjunto desde o seu nascimento. O pensamento único não é coincidente com a psicanálise. Daí que ela tenha sempre dificuldades em afirmar-se em qualquer época onde se afirmam os fascismos pois aí há o disparate, a bizarria, a infâmia e não o contraditório, a valorização das minorias discursivas, essas que Michel Foucault chamava de sombras da História. A psicanálise é, a meu ver, um discurso sobre as sombras da nossa existência situando-se nos antípodas da posição de algumas abordagens que se entretém em colocar feixes luminosos nas nossas vidas sempre precárias. A sombra humana, o não-dito, continua a ser, desde Freud, o que deve orientar o quefazer psicanalítico.

Por tudo isto que foi dito mas sobretudo por aquilo que não foi, torna-se urgente fazer Laço com os democratas de todo o mundo para que tenhamos a oportunidade de, com nossos Laços, realizarmos as batalhas ideológicas que se impõem no presente e no futuro. Citando o poeta Eugénio de Andrade: “É urgente o amor”. E o que é o amor senão o lado sublime do Laço Social? Daí que, voltando ao Laço Analítico, estamos em tempo de alegria e de festa porque vemos esta pluralidade afirmar-se no meu país, no vosso país, no meu eterno Portugal.

Referências bibliográficas

Glaser, B. & Strauss, A. (1967). The Discovery of Grouded Theory. New York: Aldine de Gruyter.

Lacan, J. (1953). Função e campo da linguagem em psicanálise. In J. Lacan (Ed.). Escritos (pp. 237-323). Rio de Janeiro: Edições Jorge Zahar

Riemen, R. (2012). O eterno retorno do fascismo. Lisboa: Editorial Bizâncio.

Santos, B. (2009). Para além do Pensamento Abissal: das linhas globais a uma ecologia dos saberes. In B. Santos & M. Menezes (Eds.). Epistemologias do Sul (pp. 23-72). Coimbra: Edições Almedina.

  1. Este texto foi produzido no âmbito da comunicação oral que realizei nas I Jornadas de Psicanálise Laço Analítico/Escola de Psicanálise – Núcleo Portugal no dia 27 de Abril de 2024. O Encontro ocorreu na Casa do Brasil em Lisboa. Agradeço à colega Mel Rutkoski a gentiliza de ler este meu texto nas referidas jornadas.
  2. Membro do Centro Português de Psicanálise – Associação Lacaniana Internacional (CPP – ALI).
  3. Refiro-me ao célebre encontro ocorrido no final do ano de 1968 na casa de Amália Rodrigues onde estavam vários intelectuais e poetas, nomeadamente Vinícius de Morais, Natália Correia, David Mourão-Ferreira e José Carlos Ary dos Santos. Disponível em: Vinícius de Moraes em Casa de Amália Rodrigues – YouTube .
  4. Inspiro-me em Glaser e Strauss (1967) e na crítica que os autores fazem sobre o papel da teoria na pesquisa em ciências sociais e humanas.