Em 1973, um grupo de amigos que aborrecia o Estado Novo e que o Estado Novo aborrecia fundou em Bad Münstereifel, na Alemanha Ocidental, o Partido Socialista. Constituída a agremiação, imagino, os fundadores foram tomar café ao Hotel Kurhaus Uhlenberg e dizer mal de Marcello Caetano.

Três anos antes, em 1970, uma rapaziada da Universidade de Lisboa – que, levando-a a sério, lera a tradução francesa de “O Capital” – nutria o estimável propósito de cortar o pescoço à burguesia e entregar o poder aos serralheiros e electricistas da Lisnave. Pela imprensa estrangeira, tivera notícia de que, na China, a estudantada, impulsionada pelo Grande Timoneiro, andava a espancar professores e a caçar intelectuais traidores da revolução e dos camponeses. Invejosa e anti-soviética, fundara o Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado.

Em Abril de 1974, o PS representava um grupo de amigos de café que aborrecia o Estado Novo e que o Estado Novo aborrecia; o MRPP representava uma parte relevante da rapaziada universitária de Lisboa, os díscolos. O único partido realmente existente, organizado, implantado no terreno e com actividade clandestina de muitas décadas, era o Partido Comunista Português. Acrescia que, aproveitando o fim político de Salazar e o desnorte da Primavera Marcelista, o PCP tomara conta dos sindicatos.

Neste cenário, não espanta que, logo após o pronunciamento do 25 de Abril, o PCP (e o seu braço farisaico apresentável à boa sociedade, o MDP/CDE) tenha imediatamente mobilizado meios, ocupado edifícios, ocupado fábricas, designado autarcas, invadido herdades, assumido a direcção de escolas, saneado «fascistas»… tomado conta do país. E tomado também conta dos capitães de Abril a quem, assarapantados, o poder tinha caído nos braços, sem saber o que fazer com ele.

Com o PCP, o pronunciamento de Abril tornou-se revolução e a revolução tornou-se processo. Comeu os seus primeiros filhos.

Sempre muito alucinado e distante de um laivo mínimo de noção da realidade – como já, preocupado, notara Caetano, no início de 74 – António de Spínola fantasiou que a sua pessoa era importante e indigerível. Em Março de 1975, tornou patente à cidade e ao mundo que não era apenas senhor de uma mente delirante. Também não primava pela inteligência. Foi para Tancos preparar a regeneração da pátria. Acabou em Madrid, a sonhar com Paiva Couceiro.

A revolução acelerou. A banca, os seguros, as petrolíferas, as cimenteiras, as transportadoras, as cervejeiras, a Siderurgia Nacional, a CUF e, por arrasto, a insignificante Sociedade Nacional de Estratificados foram nacionalizadas. O PCP, que tinha tomado conta do país, tornou-se dono do país.

Foi neste ponto que Álvaro Cunhal cometeu um erro fatal (ou, mais provavelmente, não o pôde evitar, porque , ao contrário de Spínola, não era dado a ilusões): permitiu que em 25 de Abril de 1975 se realizassem eleições livres para a Assembleia Constituinte.

O resultado das eleições revelou que, tirando no Alentejo rural da pobreza e na gritaria industrial da margem sul do Tejo, o PCP não tinha expressão em Portugal.

Foi o fim da revolução.

Vencedor das eleições, Mário Soares convocou uma manifestação para a Fonte Luminosa e atou laços de amizade eterna com a Igreja Católica. A esquerda militar aproveitou para salvar a pele. Juntou-se aos socialistas e, em Agosto, no que ficaria conhecido como “Documento dos Nove”, arrumou com Vasco Gonçalves e com o PCP.

A Quinta Divisão – órgão da propaganda militar do PCP – foi extinta e Otelo Saraiva de Carvalho demarcou-se de vez dos comunistas soviéticos, avançando com firmeza e insanidade rumo ao abismo.

Com o controle da situação perdido, Cunhal tentou juntar os cacos. Em Setembro, deixou cair Vasco Gonçalves, lamentou a incompreensão dos católicos, tentou outra vez, desesperado, trazer a esquerda militar e os socialistas ao seu redil frentista, procurou recuperar Otelo.

Falhou em toda a linha. Nas eleições de Abril, toda a gente tinha percebido que o PCP não metia medo a ninguém. A revolução tinha acabado. Cunhal compreendeu-o ou alguém do Comité Central do PCUS lho explicou. Resignou-se, consolando-se com a ideia de que Angola passara para a esfera do Leste.

Da revolução, sobraram uns tolinhos de extrema-esquerda. Os tolinhos confiaram noutro tolinho, Otelo. Na manhã de 25 de Novembro de 1975, lançaram a revolução final, a mãe de todas as revoluções. Por volta das sete horas, tropas paraquedistas tomaram o comando da 1.ª Região Aérea, à espera de Otelo. Retido no Palácio de Belém até altas horas da madrugada, Otelo fora libertado, ao que parece, mediante a promessa de ir para casa dormir. Foi para casa dormir. No princípio do dia seguinte, 26 de Novembro, foi declarada encerrada a sessão. Eanes e Jaime Neves assinaram a acta.

Em suma, se algum acontecimento foi decisivo para o estabelecimento da democracia em Portugal, esse acontecimento foram as eleições de 25 de Abril de 1975, para a Assembleia Constituinte. Foram eleições materialmente honestas e livres*. As primeiras, na História de Portugal. Só puderam ocorrer, porque um ano antes tinha havido o 25 de Abril de 1974.

Acontece que a direita actualmente no poder abomina (e com liberdade e legitimidade para abominar) o 25 de Abril. Por isso, usou o pretexto da morte do Papa para não o festejar. Por isso, inventa a celebração do irrelevante 25 de Novembro. Para desvalorizar o 25 de Abril.

Mas, para valorizar o 25 de Novembro e desvalorizar o 25 de Abril, tem de omitir o marco absolutamente crucial que foram as eleições livres de 25 de Abril de 1975, as eleições que ditaram que o caminho luso seria a democracia de tipo ocidental. É que, se em Abril de 1975 houve eleições livres, é porque a liberdade não foi instituída em Novembro. Foi instituída antes.

É por isso que a direita actualmente no poder, com grosseira e descarada desonestidade intelectual, tem de rever a História e anunciar a grande comemoração das primeiras eleições pós-25 de Novembro: as eleições de 1976, umas eleições sem qualquer importância especial, iguais a dezenas de outras que se realizaram em Portugal nos últimos 50 anos.

O gesto tem um nome: vigarice.

* Digo materialmente, no sentido de que o voto foi universal, secreto e honesto. Não houve, por qualquer modo, fraude eleitoral. Formalmente, não foram inteiramente livres, porque houve partidos – o MRPP, a AOC (Aliança Operário-Camponesa), o PDC (Partido da Democracia Cristã) – que foram impedidos de concorrer; e outros, por alegadamente fascistas, nem sequer foram autorizados a constituir-se ou foram imediatamente ilegalizados.