Detesto ciclistas.

Detesto-os porque se espraiam, em fila indiana ou em pelotão, pela marginal de Cascais como se fossem donos da faixa da direita, donos do sol e da maresia, donos do trânsito engarrafado atrás deles.

E nós, os tristes automobilistas, fechados no metal e no ar condicionado, condenados a ver-lhes, mais ou menos flácidas, as nádegas de lycra fluorescente. É como se a estrada tivesse sido feita para eles e não para os carros. Ora há ciclovias, quilómetros de ciclovias, erguidas à custa dos meus impostos, ciclovias que não posso usar de carro e que eles, claro, desprezam. Preferem a Marginal. Porque tem vista de mar. Por isso fingem que são utentes da estrada, pessoas que precisam de se deslocar de bicicleta para o trabalho, como eu, mas não são: são diletantes de fim de semana, a empatar a vida a quem cá mora.

E no entanto, confesso, também sou ciclista. Mas nunca, nunca me passaria pela cabeça formar um pelotão na marginal, a emperrar o trânsito. Porque sei que sou frágil, que um camião não trava para me salvar os ossos, que basta uma distracção e caio da arriba abaixo, como aconteceu há poucos dias na Parede. Porque é o que acontece de vez em quando: um acidente grave, um ciclista no chão, sirenes, o capacete, às vezes o crânio, partidos como um ovo.

Nessas alturas, penso sempre: foi ele que se pôs a jeito. Só um maluco arrisca carne e osso contra carros que passam a setenta, oitenta. Mas nunca – nunca – me ocorre ir escrever nos fóruns de ciclistas: “é menos um”. Nunca me ocorre proibir o ciclismo, nem desejar a morte de quem pedala. Só penso: se tivesse usado a ciclovia, talvez ainda estivesse vivo, e a família não chorasse agora à porta da morgue. Livre-arbítrio, chamam-lhe.

Penso nisto, dos ciclistas, agora, por causa da polémica da semana: a morte de um jovem forcado na arena do Campo Pequeno e a torrente de ódio jubiloso dos anti-taurinos de teclado, os eternos moralistas da internet, aplaudindo aquela morte como se fosse justiça poética: se não houvesse arenas, ninguém/nada, homem ou touro, lá morria.

Penso também, sobre o mesmo tema, que estou dividido quanto à tourada. Em pequeno, na linha de Cascais, tourada era um cartaz esquecido colado ao muro, era uma festa de Cascais a que não ia. Cresci entre suburbanos de esquerda, onde quem gostava de touros era do CDS, e bastava esse selo – a do fascista do antigamente – para me repelir. Os ricos do CDS tinham barcos, os ricos do CDS tinham casas na Guia e os ricos do reviralho iam à tourada. Eu não.

Depois, quando estudei Engenharia Zootécnica nos Açores, lá não havia como escapar à festa brava: os colegas vinham de Moura, de Barrancos, da Terceira – a terra portuguesa de maior afición, onde até as mulheres são forcadas, como se vê pela foto que aqui vos deixo, de uns saudosos anos 90 do século passado – e falavam dos artistas da festa brava como eu falava dos Smiths ou dos Aztec Camera.

Todos sabiam o que era uma verónica, uma chicuelina, uma vacada. E muitos eram forcados: rapazes de dezoito, vinte anos, que se atiravam aos touros como outros se atiravam ao rock’n’roll ou saltavam da prancha dos 10 metros, nas piscinas. Para eles, o grupo era irmandade, era prova de coragem com o risco da morte sempre à espreita. E a morte, sempre próxima, às vezes vinha.

Eu vi-a, um dia. Vi um corpo a ficar estendido, imóvel como um trapo na Monumental de Angra, ouvi o som da cabeça de António Gouveia a embater no chão no dia do seu aniversário, escutei o silêncio súbito, a sombra da morte a passar sobre os outros, a passar sobre nós. Faz parte.

E por fazer parte, há marialvismo, claro. Hoje chamar-lhe-iam masculinidade tóxica. Há fanfarronice, cerveja, palmadas nas costas, hombridade exagerada. Mas há também uma amizade colegial, uma quase ternura viril, semelhante à dos soldados que regressam da frente de batalha. Ninguém se metia com um forcado do Grupo de Forcados Amadores da Tertúlia Tauromáquica Terceirense, porque os forcados da Terceira eram os nossos ciganos: quem se metia com um, levava de todos os outros.

Nada disto interessa aos wokes, que acabaram com o serviço militar obrigatório e andam há anos para proibir a tauromaquia. Para eles, ser anti-tourada é extensão de ser anti-tudo: anti-fóssil, anti-colonialismo, anti-patriarcado, anti-qualquer coisa.

Mas não basta ser contra: é preciso encenar, é preciso chocar. O Picasso dizia que a arte era um dedo espetado no cu da burguesia. Os wokes fizeram disso método: espectáculos de drag queens em escolas primárias, barbas com batom em festivais de música, pronomes inventados, uma exigência fascizóide de que toda a sociedade dobre a língua para se lhes adequar, às minorias que inventaram que desde sempre foram reprimidas e que agora chegou a sua vez de brilhar. E de reprimir.

E assim – tal como com a ânsia de humilhar os “fascistas”, os “racistas” e os “homofóbicos” – o ódio que destilam aos “taurinos” faz com que atirem fora o menino com a água do banho.

Porque regozijar-se com a morte de um forcado não ajuda os touros: fortalece as Touradas. Uma prática já em declínio, quase folclórica, condenada a extinguir-se como os almocreves ou as lojas de revelação de rolos fotográficos, ganha nova vida no asco que lhe atiram.

Um dia cansar-nos-emos dos animalistas de sofá, dos que resgatam cães para depois os largarem na rua, dos que castram gatos enquanto derramam lágrimas virtuais pela bicharada, dos que falam de como são bons “tutores” com a mesma hipocrisia com que abandonam animais na berma da estrada. Um dia, depois de tanto moralismo e de tanta sinalização de virtude, voltaremos ao pragmatismo: eutanásia para os cães vadios, silêncio nos fóruns, menos virtude exibida, menos ódio transvestido de compaixão.

E é aqui que entramos na forma como olhamos para os animais, nós, urbanos, em contraste com quem viveu sempre no campo.

No interior agrícola, o animal é animal. Não é filho, nem companheiro de cama, nem membro da família com festa de aniversário e bolo de ração. É amigo, sim, muitas vezes companheiro de solidão e de trabalho, mas sobretudo é comida, é força, é parte do ciclo natural das coisas.

A vaca dá leite, o boi puxa(va) o arado, o cão guarda a casa, o porco acaba na salgadeira. Essa é a verdade nua e crua, sem sentimentalismos. E, paradoxalmente, é uma relação mais honesta e saudável do que a urbana: porque não há disfarce, não há antropomorfismo, não se projecta no animal uma humanidade que ele não tem. Há respeito, há cuidado, porque da saúde do animal depende às vezes a sobrevivência da família. Há afecto, mas um afecto sem ilusões.

Na cidade, pelo contrário, os animais de companhia ocupam o vazio deixado pelas relações humanas em declínio. O cão ou o gato já não são apenas companhia, são substitutos de filhos, são confidentes, são projectos de vida.

Exige-se para eles o que não se consegue para os humanos: um SNS veterinário, psicólogos caninos, consultas de nutrição felina. E, enquanto isso, a vizinhança deixa de se falar, os amigos são trocados por um Huskie – esse cão tão típico de Portugal – ou a maternidade por uma cadela esterilizada com laçarote cor-de-rosa.

Não é raro ver casais que tratam o cão como um primogénito, pessoas solitárias que dedicam mais horas ao gato do que ao convívio com outros humanos, solteiros que encontram no animal não apenas companhia mas a ilusão de um amor incondicional que acham que os demais homens e mulheres de carne e osso não lhe conseguem oferecer.

O paradoxo é este: enquanto o urbano pede para os animais estatuto de cidadãos, equivalentes em direitos aos humanos, o rural, que os abate e os come, convive com eles de forma mais equilibrada, mais natural, menos neurótica.

E talvez seja essa diferença que explica porque é que, nas cidades, se aplaude a morte de um forcado e se exige funeral digno para um caniche, enquanto no campo se enterra o cão no quintal com uma lágrima sincera e no dia seguinte se continua a lavrar.

O futuro dirá se esta substituição dos humanos por animais de companhia é apenas moda passageira ou se é sintoma de uma sociedade que desaprendeu de ser comunidade.

Por agora, basta olhar para as ruas urbanas pejadas de patudos ansiosos para irem cagar nos passeios nos poucos minutos que os seus don.. perdão, os seus tutores, lhes podem dispensar, e gatos entediados em apartamentos T0, para percebermos que talvez o problema não esteja nos animais, mas em nós – nós, que os usamos para preencher o vazio que deixámos crescer entre uns e outros.