Encenar saltimbancos na Ibéria medieval

 códice da British Library, Royal MS 10.E.IV, fol. 58, do século XIV

Encenar saltimbancos na Ibéria medieval

(o zajal nº 12 de Ibn Quzmán)

O poeta andaluz Ibn Quzmán (c. 1090?-1160) nasceu no seio de uma família abastada de Córdoba e foi apoiado por vários mecenas não só em Córdoba, como em Sevilha, Granada, Jaén e Fez. Tendo-se especializado num género popular-urbano de canção, o zajal, escrito no dialecto hispano-árabe ­— extinto há séculos e de difícil compreensão mesmo entre arabistas —, cultivou, apesar de casado e com filhos, uma reputação escandalosa de marginal, bêbado e ímpio, que em certa ocasião lhe valeu o cárcere. Desde a descoberta, em 1881, de um manuscrito com a sua obra, é considerado um dos autores cimeiros do Al-Andalus, e certamente o mais original de todos.

Entre as suas letras, que ao leitor moderno poderão lembrar canções de cabaret, chamou-me desde logo a atenção o zajal nº 12, por mim lido, há décadas, numa tradução castelhana de Emilio García Gómez (1972, 1981), que o subintitulou “Os jograis”. Cheguei mesmo a tentar traduzir o início do poema, num capítulo dedicado ao instrumentário medieval (Ferreira 1994). Contudo, o acesso recente a interpretações alternativas levou-me a querer revisitar o texto e a traduzi-lo na íntegra para português:

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

Tamboris tende prontos, | o adufe esteja à mão;

depressa, às castanholas | prestem todos atenção,

e se um pandeiro houver, | será óptima adição

à palheta, ó malta! | Ela vai-vos animar.

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

A Qurra, ponham véu | de seda leve, trançada;

de tafetá, a veste | toda em ponto bordada,

coberta de amuletos | da Babilónia afamada.

Toca a mexer, por Deus! | Já vos vejo a dormitar.

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

O Palonço está à espera. | Haja vida neste estrado!

E arreai um calduço | no que for desafinado.

Zuhra, Maryam, ‘Aixa, | onde estais? Rabo alçado!

Ululem, ó rameiras, | por quem está a liderar!

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

Dai ao juiz assento | feito de muito coxim,

pois há que honrar quem venha | da classe de onde eu vim.

E, gentes, é tão moço! | Agrada-me ser assim.

Bem vos vejo, por Deus! | E onde se meteu Qunbar?

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

Que esteja pronta a espada, | as faixas já na cintura,

mais um turbante branco, | lenço de rubra tintura;

e os Árabes que soem | seu grito: está na altura.

A postos a camela | e o camelo, para entrar.

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

Que achais deste Guerreiro e | do Velhote estropiado

à sombra do abanico | (às moscas, por Deus, poupado),

balbuciando queixas | em lamento soluçado

e assim se escapando, | logo após representar?

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

Isto é que é magia: | quem não dorme fica mal.

Xô!, cão branco-de-cal! | E xô!, cão branco-de-cal!

Enroscai essas caudas | e ide para o curral,

que amanhã podereis | alçá-las, para caçar.

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

Eu amo a vós todos. | Amai-me, pelo Profeta!

Sem vós não passo bem, | nem vós sem a minha festa.

Se azar me desgraçara, | vossa dor seria lesta;

Se a vós ele calhara, | como iria eu chorar…!

Saudações, saudações! | Já aqui irei voltar.

Nesta canção de Ibn Quzmán, o poeta imagina-se na pele do líder de uma companhia itinerante de variedades — ou grupo de saltimbancos —, que alicia o público com um misto de números musicais, teatrais e circenses. Mencionam-se instrumentos musicais, um travesti (Qurra), um coro de mulheres, uma camela e um camelo de carga, cães amestrados e personagens tipificados como o Palonço, um grupo de Árabes, um Guerreiro e um Ancião alquebrado. Entretanto, o organizador do espectáculo, cuja rudeza é patente, aproveita para se apresentar como um homem de distinção, roubando ao juiz presente (não nomeado) o panegírico de regra, no que confirma a sua falta de educação.

Contudo, a acção passa-se, maioritariamente, nos bastidores: enquanto mestre de cerimónias, o encenador saúda o público só para o convidar à espera, deixando, porém, a cena aberta para que os preparativos lhe sejam revelados (uma audácia que costumamos associar à arte moderna). Imperceptivelmente, a preparação da actuação, no seu enervamento desconjuntado, pontuada por ordens, censuras, alusões e lampejos de cor, transforma-se em espectáculo; e o refrão, que anunciava a saída de cena, anuncia por fim o seu encerramento e a promessa de nova visita ao lugar.

A canção ilustra a forma poética do zajal (precursor do vilancico ibérico); a tradução em português procura reproduzi-la, usando versos de treze ou catorze sílabas métricas com cesura interna segundo o esquema métrico 6() | 7(), com rimas A || bbba. O seu conteúdo foi baseado nas edições, comentários e traduções para o inglês e castelhano de, respectivamente, James T. Monroe (1979) e Federico Corriente (1980 para a edição-base, 1989 e 1996 para a tradução comentada), considerando também uma observação crítica de Abu-Haidar (1998)[1].

Manuel Pedro Ferreira

P. S.: Não posso deixar de registar aqui o imenso prazer que foi ler o trabalho de James T. Monroe sobre este poema, abarcando edição do texto original, discussão terminológica e linguística, exegese literária comparativa, cinco lâminas ilustrativas e duas propostas de tradução (literal e poética). Ainda que, à luz da posterior contribuição de Corriente, alguns pontos possam ser contestados, a energia intelectual, a erudição e a largueza de horizontes aí patentes fornecem uma lição, propõem um percurso aliciante e permanecem um regalo para o leitor. A discussão, pertinente e detalhada, dos instrumentos musicais mencionados na primeira estrofe (naqra, duff, xīz, bandayr [termo românico] e zamīr) teve o contributo do etnomusicólogo Israel J. Katz (1930-2021), com quem também eu, há muito tempo, me correspondi, e que cheguei a visitar em Nova Iorque. Na minha tradução, em vez de usar o termo técnico português para naqra ­— nácares—, optei pelo plural de «tamboril», dado ser de compreensão mais imediata e convocar a imagem de tambores de pequenas dimensões e carácter popular, como julgo seria o caso. Para designar zamīr, optei não por «charamela», que evoca os músicos profissionais activos entre c. 1400-1700, mas por «palheta», que é o aerofone correspondente de palheta dupla e campânula, de tipo rústico (Oliveira, 2000, pp. 247-48).

Bibliografia citada:

Abu-Haidar, J. A.: “The Script and Text of Ibn Quzmān’s Dīwān: Some Giveaway Secrets”, Al-Qantara 19/2 (1998), 273-313.

Corriente, Federico: Gramática, Métrica y Texto del Cancionero Hispanoárabe de Aban Quzmán (Madrid: Instituto Hispano-Árabe de Cultura, 1980).

Corriente, Federico: Ibn Quzmán — Cancionero andalusí. Edición de —, 2a edición (Madrid: Hiperión, 1989).

Corriente, Federico: Ibn Quzmán — Cancionero andalusí. Nueva edición, mejorada y puesta al día. Traducción, introducción y notas de — (Madrid: Hiperión, 1996).

Ferreira, Manuel Pedro: “As raízes medievais dos instrumentos musicais europeus”, in Fábricas de Sons: Instrumentos de música europeus dos séculos XVI a XX (Lisboa: Electa, 1994), pp. 33-40.

García Gómez, Emilio: Todo Ben Quzmān: editado, interpretado, medido y explicado (Madrid: Gredos, 1972).

García Gómez, Emilio: El mejor Ben Quzmán en 40 zéjeles (Madrid: Alianza, 1981).

Monroe, James T.: “Prolegomena to the Study of Ibn Quzmān: The Poet as Jongleur”, in El Romancero hoy: Historia, Comparatismo, Bibliografía crítica (Madrid, 1979), pp. 77-129.

Oliveira, Ernesto Veiga de: Instrumentos musicais populares portugueses, 3ª edição (Lisboa: Fundação C. Gulbenkian, 2000).

  1. Quando há divergência entre Monroe e Corriente, sigo Monroe nas identificações organológicas da estrofe I e também no verso V.3; adopto a leitura de Corriente no verso III.4; opto por uma solução intermédia em IV.3, IV.4 e VI.2; e sigo Abu-Haidar no verso V.4. O verso IV.3, no qual García Gómez e Monroe vêm a inscrição do nome do poeta, tem posto muitas dificuldades interpretativas. Corriente apresentou sucessivamente três hipóteses de leitura: ʾáy gulám! ya qázma! kaḏá húwwa ʾínsi? (1980); ay gulámi yáfiḏ? hakaḏá hu ínsi (1989); ay ḡulám ya qáwmi, kaḏá hu insí? (1996). Monroe, no mesmo passo, leu, na esteira de García Gómez: áy ġulám yā qúzmān | āha [húwa] ʾúnsī.