O mito de uma terra onde o vinho jorra das fontes, onde comida e bens estão à disposição de todos, onde o trabalho é desnecessário, o conforto e o bem-estar estão garantidos, assim como a eterna felicidade assente no prazer sem fim; … essa terra é Cocanha. Estamos no eterno caminho dessa terra mitológica que políticos e governantes invocam inconscientemente, brandindo-a em sua ideia como um engodo para obter suporte à sua governança.

Figura – Oskar Herrfurth (1862-1934) – séries de seis postais

Arthur Schopenhauer não foi de todo um filosofo politico, porém, a sua linha de pensamento nesse campo repercute-se em um pequeno texto sobre o titulo “A Politica”.

“O Estado não é mais do que o açaimo cujo fim é tornar inofensivo esse animal carnívoro que é o homem, e dar-lhe o aspecto de um herbívoro.” (A Politica, A. Schopenhauer)

Por mais crua que esta prosa possa parecer, no nosso intimo mais profundo, sabemos que não esteja longe da realidade o sentido regulador do Estado como garante da ordem. Em um mundo de conforto com todas as necessidades básicas realizadas e mais ainda, teremos o discurso da razão e da humanidade, sabendo, porém, que na escassez e sofrimento, não há razão que se imponha ao instinto de sobreviver. Na dor, na fome, no caos em geral, colocamos o “eu” e os nossos em primeiro lugar, destruindo qualquer nuance de igualdade, fraternidade e liberdade imposta. O Homem selvático volta a revelar-se, pois;

“Se caíssem os grilhões e as cadeias da ordem legal, se a anarquia rebentasse, ver-se-ia então o que é o homem.” (A Politica, A. Schopenhauer)

Em pleno sec. XXI já não devemos ter duvidas do que tem sido o Homem, para o bem e para o mal. Olhar o percurso do Homem pelo mundo, nas variadíssimas culturas que criou, nações, impérios, guerras, massacres, avanços e recuos cívicos, e analisar sem preconceitos ideológicos a natureza humana. Segurar essa análise para a projectar na nossa actualidade e antever sobre consequências, comportamentos no futuro. Talvez esse seja o passo que nos falta enquanto Homem, para percebermos que o bom governo da Pólis não é uma questão de linha ideológica, mas sim de perceber o Homem e aceita-lo como é na sua mediocridade e grandeza. Só depois desse passo, só depois de aceitar e reconhecer os indivíduos como frutos de determinado território e cultura, é que haverá condições para estabelecer um Estado coeso e próspero. Sendo este processo sempre activo ao longo das gerações, pois os símbolos da cultura e do território devem ser cuidados e perpetuados sob pena de enfraquecerem, dividir e colocar em causa a coesão do Estado como figura de governo de uma nação, cujo o povo é elo da sua matéria e espirito.

Posto isto, impõe-se como primeira questão perguntarmo-nos a nós mesmos; devemos obedecer ao Estado(?). Da minha parte a resposta é clara, Sim. Mas não para nos tornarmos herbívoros ruminantes em um Estado aglutinante que nos quer dependentes da sua auréola. O Estado tem como principal objectivo proporcionar que cada cidadão possa encontrar “a vida boa”, de forma a que cada um possa florescer como melhor lhe apraz. Porém, essa “vida boa” não está garantida e só pode ser justa se for proporcional ao esforço e responsabilidade de cada um, sendo que para tal é imperativo os deveres de cada cidadão estarem hierarquicamente posicionados sobre os seus direitos. Desta forma haverá a constatação que a equidade entre cidadãos é fundamental para que se gere distribuição social, não por imposição estatal, mas por decisão solidária individual de cada cidadão.

A segunda questão que nos deve fazer reflectir é; como deve governar esse Estado(?).

“A organização da sociedade humana oscila como um pêndulo entre dois extremos, dois polos, dois males opostos: o despotismo e a anarquia.” (A Politica, A. Schopenhauer)

Na régua governativa entre a anarquia e o despotismo, seja ele de que pendor for, o Homem está condenado a deambular entre o caos e a tirania. E em ambos tem acesso ao estado mais medíocre do Homem. Aqui, A. Schopenhauer tende a apontar um Estado tendencionalmente mais do lado déspota do que do lado anarquista, pois a ordem social deve imperar sob pena do Estado desmoronar na desordem.

Aparecerão utópicos com formulações de Estados com governos perfeitos, onde o maná estatal é garantido em quantidade e para todos de igual forma, e se assim não for taxa-se quem mais tem por esforço próprio. Porém, o Homem é cru, mesmo que tal um dia fosse possível, logo apareceria um conjunto de indivíduos para se aproveitar, usurpar e destruir essa ténue harmonia. É isto que Schopenhaur nos deixa bem claro nos seguintes parágrafos.

“Em toda a parte e em todo o tempo, tem havido grande descontentamento contra os governos, as leis e as instituições públicas; é o resultado de estarem sempre dispostas a torna-los responsáveis da miséria inseparáveis da existência humana, pois tem por origem, segundo o mito, a maldição que feriu Adão e com ele toda a raça humana. Contudo, nunca essa tendência injusta foi explorada de um modo mais mentiroso do que pelos nossos demagogos contemporâneos. Estes de facto, por ódio ao cristianismo, proclamam-se optimistas: aos seus olhos, o mundo não tem fim algum fora de si mesmo, e, pela sua natureza, parece-lhes organizado na perfeição, uma verdadeira mansão da felicidade. É aos governos somente que atribuem as misérias colossais do mundo que bandam contra esta teoria; parece-lhes que se os governos fizessem o seu dever, o céu existiria na terra, isto é, todos os homens poderiam sem trabalho e sem cuidados comer e beber à farta, propagar-se e morrer: porque isto é o que eles entendem quando falam do progresso infinito da humanidade, de que fazem o fim da vida e do mundo, e que não se cansam de anunciar com frases pomposas e enfáticas” (A Politica, A. Schopenhauer)

“A raça humana é uma vez por todas e por natureza votada ao sofrimento e à ruina; embora fosse possível com o auxilio da Estado e da história remediar a injustiça e a miséria ao ponto da terra se tornar uma espécie de pais de Cocanha, os homens chegariam a disputar por aborrecimento, precipitar-se-iam uns sobre os outros, ou então o excesso de população resultaria em fome e esta destrui-los-ia.” (A Politica, A. Schopenhauer)

Um Estado implica uma agregação de indivíduos (elo), em um determinado território (matéria), com uma determinada cultura comum (espirito), aqui matéria e espirito, garantem conjuntamente a coesão desses indivíduos que consequentemente alicerçam o Estado pois o elo-matéria-espirito, são a própria ideia de povo. Se por alguma causa se dissolve, enfraquece o todo ou parte dessa tríade, o Estado fragiliza podendo mesmo colapsar.

“Querem planos utópicos: a única solução do problema politico e social seria o despotismo dos sábios e dos nobres, duma aristocracia pura e verdadeira, obtida por meio de geração, pela união dos homens de sentimentos altamente generosos com as mulheres mais inteligentes e finas. Esta proposta é a minha utopia e a minha Republica de Platão” (A Politica, A. Schopenhauer)

Talvez não nos reste mesmo hipótese de voltar à raiz da idealizada governança da Pólis, se queremos dar continuidade à matriz civilizacional europeia, repensemos “A República de Platão”. Uma nova reflexão de Estado e Governo tem de ter como base antes demais a psique do povo da nação a que se presta e compreender assim a tríade do elo matéria-espirito.

Sob pena de aqui estar a apregoar uma nova ideia de Cocanha, apenas peço espirito livre para reflectir sobre um Estado além de ideologias politicas, assente em valores próprios da sua nação-cultura e com um sentido pragmático e de rápida adaptação às circunstancias internas e externas, que permita os seus cidadãos florescer. Uma República de cidadãos cientes dos seus deveres para com a mesma. Se Aristóteles nos dizia que a duvida era o primeiro passo para a sabedoria, compartilh-se algumas duvidas/questões sobre três temas fundamentais, deixando o desafio de soluções/respostas ou o acréscimo de mais duvidas/questões. Acima e tudo uma reflexão sobre o contexto politico em que vivemos e se fará sentido continuar a sustentá-lo.

DEMOCRACIA – A Injustiça de um Homem um Voto

  • Haverá justiça onde o voto de cada Homem tem o mesmo valor?
  • Porque haverá o voto de um Homem que cumpre a lei e paga os seus devidos impostos, ter o mesmo valor que de um outro Homem que não cumpre a lei e/ou não paga impostos?
  • Não deveria o voto de cada cidadão ter mais valor mediante uma ponderação(?) entre:
      • o seu conhecimento (político, económico, histórico, etc)
      • o seu contributo em impostos bem como tempo contributivo
      • o seu contributo em regime de voluntariado na sociedade

Assim, para cada cidadão, o seu voto valeria tanto ou mais quanto mais alta fosse a sua qualificação relativamente a conhecimento (políticos, económicos, históricos, etc), impostos pagos, trabalho voluntario realizado.

  • E se para votar fosse imprescindível a emancipação do cidadão e ter pelo menos o tempo de uma legislatura de contribuição com impostos?
  • E se quem é judicialmente condenado por não cumprir leis fundamentais ou lesar o Estado, fosse considerado inapto para votar?
  • Devemos estreitar o “direito ao voto” e valorizar mais este a quem tem mais competências e contribui mais para a sociedade? (Talvez assim estejamos mais perto de pensar uma sofocracia do sec. XXI ou epistocracia como mais recentemente apelidada. Que fique vincada a ideia que o acto de votar não é um direito nem um dever, mas sim uma responsabilidade.)

GOVERNANTES – Governam os melhores e os mais aptos

  • Que sentido há em sermos governados por indivíduos, que não sendo os mais capazes e mais aptos, conseguem ascender ao poder pela maior influencia e favores que alcançam dentro de determinado partido?
  • Fará sentido sermos governados por lideres de partidos que nada mais querem do que alcançar o poder e testar as suas teorias ideológicas de uma forma cega, muitas delas que já falharam vezes sem conta em outras geografias?
  • Que prosperidade poderá haver em um estado, onde os governantes fizeram apenas carreira nos órgãos internos dos partidos, sem qualquer noção da vida real do “chão de fábrica”?
  • E se o Governo estivesse restrito apenas aos melhores na sua área, aqueles que já demonstraram saber gerir, administrar, coordenar, liderar com conduta ética, etc.?
  • E se em vez de partidos votássemos em estratégias de desenvolvimento e prosperidade para todos, assentes em estudos científicos imparciais e não em demagogia/populismo?

EDUCAÇÃO – Instrução, cultura, civismo e actividade física

  • Que melhor povo poderá haver em uma República se não um que é constantemente desafiado para a actividade intelectual e física?
  • Que tipo de Estado se desenvolve em um sistema educativo onde professores são parciais ideologicamente, burocratas arraigados ao sistema de ensino, sem qualquer experiencia de vida fora da academia?
  • Não deveria o estado promover que os seus cidadãos participassem em sessões culturais, debates, formações dos temas que mais apraz a cada individuo, e por tal, em caso de bom aproveitamento poderiam ter benesses fiscais? (povo culto, maior cidadania, mais prosperidade).
  • Não deveriam os órgãos culturais e desportivos do estado estarem sempre abertos e disponíveis para os cidadãos que contribuem?
  • Não deveriam todos os cidadãos anualmente ser chamados para simulacros militares ou catástrofes naturais?
  • Não deveria haver obrigatoriedade de serviço militar e/ou voluntariado social? (a disciplina e os deveres para com a Republica, são imprescindíveis para a convivência entre as diferentes classes e estruturantes para o civismo)

Muitas outras questões poderiam ser levantadas e tantos outros temas abordados, não obstante que fique aqui a ressonância para não nos acomodarmos ao actual sistema politico como o mais alto tecto civilizacional. Nem tão pouco reflitamos em outros sistemas como utopias, pois não é esse o intento, o que aqui tentei explanar, él a busca de um Estado que Governe pelo pragmatismo, pelos factos, pelo conhecimento cientifico imparcial, sem deixar de parte os campos da psique-espirito do Homem. Seja reflectida uma Republica sem Utopia, assente na realidade, onde o povo é o seu ponto central.

“Os Utópicos, por outro lado, nada aceitam. Estão demasiadamente preocupados com o que devia ser, para prestarem qualquer atenção séria ao que é. A realidade exterior desgosta-os, o sonho compensador é o universo em que vivem. O assunto das suas meditações não é o Homem, mas sim um monstro de racionalidade e virtude – de uma racionalidade e virtude, nesse aspecto, só deles” (“Os organizadores e os utopistas; Aldous Huxley)