Os “Recursos” do “Planeta” São “Infinitos”

Novo artigo de Ricardo Fortunato: uma tese contra-intuitiva mas factual conforme um ecossistema dinâmico que tem em conta (1) a complexidade dos elementos e das relações que o constituem e (2) o registo da história universal do homem. O argumento consiste em estabelecer que a procura de recursos varia conforme o tempo, que a quantidade absoluta dos mesmos nunca ou quase nunca é absolutamente determinável, que não só as inovações tecnológicas permitem que os rácios de aproveitamento dos mesmo sejam cada vez melhores, mas também que sejam substituídos por outros; e, por último, que são poucos ou nenhuns os recursos naturais que até hoje tenham sido extintos.

A proposta deste breve argumento parece seguramente contra-intuitiva, mas é factual. Factual não conforme um quadro tão abstracto quão estático do “planeta” como um sistema fechado de recursos materiais, naturalmente limitado pelas leis da física do espaço e do tempo, e pelas leis da lógica que indicariam que o consumo dos mesmos, de quantidade material-espacial limitada, ao longo do tempo, encontrariam, naturalmente, um fim, mas factual conforme um quadro dinâmico que tem em conta (1) a complexidade dos elementos e das relações que o constituem e (2) o registo da história que conhecemos. Vejamos como.

O quadro que propomos não é um que projecte cartesianamente as dimensões da escala e da complexidade de um micro-sistema num macro-sistema como o do planeta, mas antes um que se baseia tanto na a história real, não imaginada, não moralizada e abstratizante, da humanidade, das culturas e das civilizações — inclusive da fase globalizada pós-capitalista — como também num modelo dinâmico das práticas humanas de exploração dos recursos terrestres — um modelo que tem em conta mudanças materiais e culturais que ocorrem de forma espontânea e natural, ou, que, pelo menos até agora, têm assim ocorrido.

Um terrário, plantado por David Latimer em 1960, um sistema biológico selado e auto-suficiente.

Efectivamente, se nos regermos por uma ideia de sistema biológico fechado, de ecossistema, em que determinados seres vivos consomem recursos do meio-ambiente, produzindo resíduos absorvidos por esse mesmo meio-ambiente e consumidos e transformados por outros seres vivos a ele pertencentes, ou através de processos físico-químicos não relacionados com a vida, estamos a falar de um sistema cíclico de recursos finitos sujeitos continuamente a processos de transformação que mantém os seus participantes biológicos numa relação de interdependência e, em última análise, vivos e reproduzindo-se. Isto é fácil de conceber em pequena escala, seja a nível de um pequeno charco, de um lago, ou de uma floresta, embora esta concepção seja sempre até certo ponto inteiramente abstracta, já que não é possível obter medidas concretas de todas as interacções que estão a ter lugar (como se conseguiriam num meio muito mais pequeno e controlado, numa placa de Petri, por exemplo): a nossa concepção do sistema e do seu funcionamento, no entanto, é credível, e pode admitir-se que baterá certo com a realidade.

Pode dizer-se, de certo modo, que esta dificuldade de escala e de mesura se torna ainda mais díficil quando nos referimos à totalidade do planeta. Apesar de o conceito de ecossistema ser minimamente credível — embora não em absoluto — quando aplicado a unidades mais ou menos redutíveis a termos simples, quando transportado para a totalidade e esmagadora quantidade das interacções físicas, químicas e biológicas à escala de todo o planeta, estamos no terreno do incomensurável. Daqui emergem muitas dificuldades para, por exemplo, a climatologia, cujas leituras popularizadas por serem politicamente alarmistas se baseiam em modelos consecutivamente falíveis, muito distantes de ecossistemas locais ou placas de Petri.

Com efeito, apesar de ser inegável que o planeta — ao contrário, possivelmente, do universo — é um espaço finito, limitado em termos de matéria e objectos, e não ser concebível nem comprovável para qualquer pessoa lúcida outra visão sobre o assunto, é de notar que tanto as questões da medida como as de escala têm aqui importância que desvirtua significativamente uma leitura linear e reducionista do assunto. No caso da medida, admitamos, à partida, que não é possível obter medida exacta de recurso natural praticamente nenhum à face da terra, e ainda mais no caso de recursos naturais que se localizam precisamente abaixo da terra. São anedóticas as sucessivas referências aos picos de extracção de matéria petrolífera desde meados dos anos setenta, estimando-se que as mesmas estariam numa curva descendente em termos de reservas. Na verdade, nada disso se passou, e novas fontes da matéria têm sido sucessivamente descobertas. O facto de não se conseguir obter uma medida não tem corolário lógico em as matérias serem infinitas, naturalmente, nem se supor que o seu consumo e aproveitamente não se regem pelas regras da lógica. No caso da escala, tanto o nível de quantidade dos elementos como de complexidade das suas relações — inclusive aquelas que desconhecemos, pois o estado-da-arte da ciência em dado momento, ao contrário do que frequentemente se presume, não é nem nunca é o estado último do conhecimento das coisas — encontramos uma diferneça substancial entre a placa de Petri e a dimensão de um planeta. É este o estado em que nos encontramos quando falamos de um ecossistema de tal dimensão: impossibilidade de mesura e complexidade ininteligível das interacções entre os seus elementos.

O que sucede, assim, aos recursos naturais, é que estão integrados num sistema de consumo muito mais complexo do que aquele que se baseie somente na linearidade da sua quantidade física. Dois factores transformam essa linearidade numa equação de dinamismo mais complexo e mais imprevisível: um, o factor cultural, dado que as necessidades humanas são maleáveis, adaptáveis, fluidas, e muitas vezes mudam conforme outras surgem, ou, antes, muda o objecto sobre o qual se focam. Outro, o factor tecnológico, dado que a evolução científica permite não apenas obter rácios de aproveitmaneto exponencialmente mais eficazes em relação a determinada matéria, mas também leva a que matérias anteriormente encaradas como inúteis em termos de aproveitamento sejam transformadas em recursos úteis que substituem outros mais ineficazes.

New England whaling c. 1860: Whale fishery – attacking a right whale, by Currier & Ives

O exemplo mais próximo e mais acessível historicamente é o da indústria do óleo/gordura de baleia, amplamente usado para iluminação pública e privada, suplantada pelo desenvolvimento da indústria petrolífera e também, mais tarde, pela descoberta da eletricidade. A caça à baleia, que teve o seu pico em meados do século XIX, era uma indústria titânica, absolutamente necessária ao desenvolvimento das sociedades recém-industriais e ao conforto das populações aglomeradas em grandes centros urbanos. Inovações tecnológicas tornaram o produto obsoleto em muito pouco tempo, estando já as frotas de pesca deste animal muito reduzidas no final desse mesmo século, e representando hoje um sector muito ireelevante na indústria mundial. A substituição do óleo de baleia por outros produtos terá evitado, segundo se julga, a provável extinção do animal. Eis, então, um exemplo muito simples de como, na prática, o recurso não era “finito”: primeiro, porque não se sabia ao certo os números exactos da população de baleias, nem sabemos se acordos governamentais e comerciais teriam sido feito de modo a não deixar que a espécie de extinguisse; segundo, porque os desenvolvimentos tecnológicos ultrapassaram o uso do recurso em específico e substituiram-no por outro, culminando na situação actual: total reequilíbrio do equilíbrio da espécie em específico com o ecosistema e abundância do mesmo recurso em específico de acordo com diminuição monumental da procura.

Areia.

Outro exemplo é ainda mais rudimentar: o da areia, durante milénios usada somente como recurso estrutural e militar básico, de valor muito diminuto, tornou-se, a partir de determinado ponto, um recurso muito mais valioso, particularmente algumas espécies da mesma, aquando do seu uso para fabrico do vidro. Tipicamente vista como aquilo que não tem qualquer valor, a areia permite precisamente a ocorrência dessa matéria tão fundamental para a vida humana desde há milénios e cuja importância não tem de todo diminuído, antes pelo contrário. Calculamos que um homem pré-histórico não fosse de todo capaz de olhar para uma matéria aparentemente tão trivial e imaginar que fosse possível através dela criar uma outra completamente diferente e com tantas e tão úteis valências. É bom lembrar que também nós, e qualquer pessoa em qualquer ponto do tempo e espaço, pode estar perante tal situação: olhar para matérias completamente inúteis e não fazer a mínima ideia das valências que daí podem ser futuramente extraídas, conforme desenvolvimento da tecnologia adequada e possibilidade física.

Por último, e saindo do reino dos exemplos concretos, cremos importante formular a questão de modo inteiramente lígico e abstracto, sendo isto nada injusto, já que os defensores das teses dos “recursos finitos” fazem exactamente o mesmo tipo de exercício. Colocando assim a questão em termos matemáticos relativamente acessíveis, ficamos com a seguinte fórmula: se a evolução e melhoramento do rácio entre quantidade do recurso natural em questao e o aproveitamento que do mesmo se faz, seja esse energético ou de outro tipo, for superior a velocidade com que o consumimos, então, na prática, e por muito estranho e contra intuitivo que possa parecer, trata-se de um recurso infinito. Em parte foi isto que sucedeu com o óleo de baleia; em parte, também, é isso que possivelmente estará a acontecer com os combustíveis fósseis, cujos índices de eficiência energética melhoraram significativamente desde a sua incepção; além disso, não conhecemos a quantidade de cada um destes recursos, nem é certo que alguma vez a conheçamos ao certo, sendo o mais provável, de acordo com a história, que acabemos por espontaneamente os substituir por outros, por mera contingência do desenvolvimento tecnológico, antes de termos qualquer noção definitiva sobre as suas quantidades.

Adam and Eve in paradise (The Fall): Eve gives Adam the forbidden fruit, by Lucas Cranach the Elder, 1533

Sugerimos assim que todos os adeptos de teorias catastrofistas de esgotamento dos recursos, alicerçadas aliás em mundivisões culturais e religiosas muito mais antigas, que concebem o homem como um invasor na criação pós-adâmica, pós-jardim-do-éden, pensem, em primeiro lugar, nas raízes culturais profunda desse tipo de medos; e, em segundo lugar, nas relações entre homem e natureza como relações dinâmicas e não estáticas, e seguramente não facilmente redutíveis a sistemas que façam meramente a quantificação dos recursos existentes num dado ponto do tempo e do espaço, como se esse determinado ponto correspondesse ao princípio e ao fim do mundo. As coisas não são assim.

Cremos ter apresentado com suficiente rigor as linhas gerais deste argumento contra-intuitivo mas convicente, que prova tanto como não conhecemos a quantidade finita de quase nenhum recurso com precisão como também que não é previsível a evolução dos rácios de aproveitamento que fazemos desses mesmos recursos. Talvez o facto mais sólido que nos aponta como o argumento não é, de todo, fantasioso, seja o facto histórico de que, até hoje, na história registada da humanidade, não há memória de nenhum “recurso natural” de larga escala que tenha ficado extinto. Caso tal venha a acontecer, o que é improvável, teríamos de colocar alguns entraves nesta espécie de teoria aqui formulada, de raiz naturalista, em que decorre uma auto-gestão das relações entre sociedades humanas e o seu meio-ambiente, quer a nível local quer a nível global. Mas, até tal acontecer, mantém-se a tese: os recursos naturais do planeta são, não na teoria mas na prática, infinitos.