Não partilho das paixões positivas ou negativas em torno da figura de Francisco Pinto Balsemão. Trabalhei como jornalista do Expresso durante 13 anos. Contactei esporadicamente com ele, no elevador, nos corredores da antiga redação em Lisboa, que foi onde ingressei no jornal. Fui por ele recebido, um par de semanas depois do ingresso nos quadros, como era da praxe na “família Expresso”, fui um ano depois, no primeiro e último almoço de aniversário do jornal a que compareci, brindado por ele com um laudatório, “o nosso mais jovem e brilhante repórter”, de mãos pousadas sobre os meus surpreendidos ombros.
Ameno, elegante, cordial, discreto. Todos estes adjetivos vão bem com o carácter de um homem que, pelas origens familiares (elites republicanas e monárquicas, simultaneamente), pela enorme fortuna pessoal-familiar, teve apenas de ser inteligente para não desbaratar esse poder, como qualquer vulgar “héritier” e ampliá-lo ao ponto de o reconverter na aparência de “simples” autoridade.
Nunca Balsemão me fez qualquer ditado e creio que a nenhum outro jornalista da casa ou fora dela. Mas, não precisava. Balsemão nomeou uma entourage e um capatazariato suficientemente domesticados para não precisar de coisas dessas. Existem casos esporádicos como o de João Carreira Bom, aparentemente despedido depois de uma crítica mais ácida, já nos tempos da SIC. Um ou outro mais, como a sua direta intervenção -ao que parece- na censura de uma entrevista com dirigentes da ETA, que realizei em 2003, já depois da minha saída do Expresso. Um ou outro caso mais…
Balsemão não precisava de sujar as mãos. Conhecia bem os homens. Sabia que pagando-lhes bem (e o Expresso nesse tempo pagava obscenamente bem aos seus, por comparação com os demais jornais), dando-lhes amplitude de ação dentro de parâmetros implicitamente bem claros de poder, conferindo-lhes status, a maioria, sobretudo os provindos da área “plebeia”, com predomínio de provenientes da chamada extrema-esquerda, todos eles fariam o que era suposto fazerem sem grandes sobressaltos. Uma pequena elite gozava de uns furos acima no prestígio e status, e provinha da “oligarquia” política e das famílias de alta burguesia do país, actuando tão descontraidamente como só quem não conheceu da vida as dificuldades é capaz de o fazer.
Esta era, a meu ver, a estrutura da esfera de influência e opinião que Francisco Pinto Balsemão construiu na vida dirigente do país, ao perceber que no mundo da construção de opinião, a hegemonia obtém-se não controlando em absoluto o que se publica mas, pelo contrário, admitindo e mesmo promovendo, até certo ponto, a dissidência que projeta uma ideia de democraticidade num sistema real ferreamente telecomandado. Poucos, na altura, sabiam isso, num Portugal moldado pela imposição de Salazar e a hesitação de Caetano.
Também na política, Balsemão seguiu o mesmo padrão pouco contraído de ação. Mais do que um social-democrata (coisa muito vasta no plano do pensamento político), ele compreendeu -ainda dentro do regime de Caetano- que era melhor acentuar uma transição “tecnocrática” como viria a suceder no Estado espanhol, do que teimar numa inflexibilidade ditatorial que só a questão colonial impedia que se consumasse. A seguir ao 25 de abril, Balsemão tinha na esfera da opinião o instrumento fundamental, credível para as elites políticas, o Expresso, para criar a ferramenta necessária na esfera da decisão, o PPD, um partido, como alguém dizia por estes dias, “que nasceu na sede de um jornal”, ainda assim reputado de apartidário, independente e objetivo.
Mais “atlantista” (leia-se pró-EUA, leia-se Grupo Bilderberg) do que europeísta (pró-CEE) Balsemão dispunha da “machine à faire des Dieux” na nova sociedade portuguesa. Intocável pelos adeptos do 24 de abril, importante para os adeptos do 25 de abril, só hostilizou (e mesmo assim na medida que entendeu estritamente necessária) os praticantes do 26 de abril, dos primeiros de maio (sobretudo do segundo primeiro de maio).
Percebeu, por via de uma visão política mais treinada e modernizada que a da concorrência, que o futuro do presente não estava no passado, como julgavam as mentes mais empedernidas de uma direita em grande medida estupidificada pelo longo consulado de meio século de poder com Salazar. Por outras palavras, com os norte-americanos de Carlucci e da CIA percebeu que era com Mário Soares que a festa se faria e não com os nostálgicos do regime, coisa que terá ajudado os próprios norte-americanos e a CIA a perceberem também.
Compreendeu que mais do que ter o poder, o seu poder consistiria em ser aquele (ou um dos poucos aqueles) que detinha o poder de dar o poder a outros que, por tal crédito lhe ficariam permanentemente em débito. Isso passou-se com o jornalismo e os jornalistas conforme se passou com a política e os políticos. Francisco Balsemão percebeu, mais cedo que os outros -e tinha para isso condições- que mais importante do que aparecer na televisão era ter uma televisão capaz de dar a aparecer aqueles para quem esse aparecer era o melhor a que podiam aspirar. E disso é feita a “classe” jornalística e a “classe” política que sucedeu degradada e tantas vezes desgraçadamente, à geração de Balsemão (veja-se quem são hoje os “nossos mais jovens e brilhantes repórteres” ou os novos “patrões dos media” e o quadro explica-se a si mesmo).
Em suma, Francisco Pinto Balsemão foi um democrata de mercado, que nunca se confundiu quanto à ordem dos factores. Sempre que mercado e democracia colidiram, era aquele que predominava e não esta. Talvez por isso, nas escolhas eleitorais convertidas em mercado de votos, como na política convertida em mercado de cargos e influências, poucos possam dizer que Balsemão lhes foi alheio.
Como num automóvel, do qual vemos as rodas a girar, mas não o eixo que as liga e coordena, compreende-se o luto póstumo de quantos têm para com Balsemão dívidas tais de gratidão, que nem os maiores e mais velhos ressentimentos permitem furar a hagiografia do luto nacional em torno de uma figura capital da reconfiguração portuguesa do sistema do capital no tardo-fascismo e no liberal-parlamentarismo que se lhe seguiu e que temos atrás do que somos. Descanse em paz, como costuma dizer-se nestas ocasiões.
