“Cometem em tais decisões milhentos erros”: Política, Guerra e Erro em Maquiavel

«Se nas outras coisas se cometem alguns erros, nas coisas da guerra cometem-se todos». Assim afirma Fabrizio Colonna, no VI Livro da Arte da Guerra de Maquiavel[1]. Ainda mais maquiaveliana, Hannah Arendt acrescenta, no seu ensaio Sobre a violência: «em nenhum outro lugar a Fortuna, a boa ou má sorte, representa um papel mais fatídico nos negócios humanos do que no campo de batalha». Fortuna e virtù, noutras palavras: as duas coordenadas do pensamento político maquiaveliano. E continua: «esta intrusão do totalmente inesperado não desaparece quando as pessoas o chamam de um “evento casual” e tomam-no por cientificamente suspeito; e o totalmente inesperado não pode ser eliminado por simulações, roteiros, teorias dos jogos». E se é verdade que, a partir da Segunda Guerra Mundial, toda a guerra é guerra nuclear – porque os conflitos não nucleares que foram combatidos até hoje são sempre definidos, na sua extensão e nos seus objetivos, pelo horizonte da guerra nuclear –, então, conclui significativamente Arendt, «não é segredo para ninguém que o famoso evento casual venha a aparecer provavelmente naquelas partes do mundo em que o velho adágio “não há alternativa à vitória” guarda um alto grau de plausibilidade»[2].

Retomemos o início. Fabrizio Colonna, condottiero e porta-voz de Maquiavel na Arte da Guerra, afirma sem meios termos que na guerra “cometem-se todos os erros”. Surge então a pergunta: para que serve a Arte da Guerra? Por que razão se escreve um diálogo que, supostamente, deveria ensinar a não fazer erros, e ao mesmo tempo coloca-se na boca do seu protagonista aquelas palavras? Creio que compreender a fundo esta frase, talvez descontextualizando-a um pouco, nos permitiria ver dois aspetos cruciais da obra de Maquiavel.

O primeiro, e algo que quem estuda Maquiavel não se cansa de repetir, é que a sua grandeza, aquilo que o distingue de outros escritores políticos seus contemporâneos, é que os seus livros não devem ser lidos, de modo nenhum, como meros repertórios de máximas: como livros de receitas para os bastidores da política. O eficaz aforismo do escritor italiano Vitaliano Brancati sobre o Príncipe como livre de chevet de todos os falidos é, ao mesmo tempo, verdadeiro e falso. Diz Brancati: «Na cabeceira de todos os vencidos foi encontrado o Príncipe: César Bórgia, Guilherme II, Mussolini, Hitler tinham aprendido de cor aquelas regrads»[3]. Ora, além do anacronismo (de qualquer modo irrelevante) de César Bórgia que, quando Maquiavel escreveu aquelas regras, já tinha falecido há 5 anos, o que é preciso fazer é entendermo-nos quanto ao significado daquele vencido.

Comecemos, justamente, por César Bórgia, para o qual é preciso inverter a ordem do aforismo de Brancati (não é o Príncipe o livro de referência do duque, mas é o duque um dos exemplos de referência do Príncipe). César Bórgia é citado, no Príncipe, como modelo enquanto vence, mas quando, por uma conjunção maligna de má sorte (a doença) e credulidade (confiar na palavra do cardeal Giuliano della Rovere), cai em erro e é vencido, então, e só então, desaparece do horizonte de Maquiavel e é liquidado com poucas palavras. Deixa, justamente, de ser um modelo. Ora bem, para sermos honestos, poder-se-ia dizer a mesma coisa dos outros vencidos citados por Brancati. Vale, aqui, a aparentemente óbvia, mas certamente eficaz objeção que Trasímaco faz a Sócrates no Livro I da República de Platão. Quando Trasímaco reconduz a justiça à conveniência do mais forte, ou seja, de quem detém o poder, e Sócrates lhe faz notar que mesmo quem detém o poder se engana quanto à avaliação daquilo que lhe convém, é fácil, para Trasímaco, retorquir que isto é verdade mas que, quando se engana, esse indivíduo deixa de ser o mais forte e sai, portanto, do horizonte de qualquer discurso sobre o poder. O aforismo de Brancati, em suma, poderia ser invertido novamente: enquanto Mussolini ou Hitler venceram, seguiram aquelas regras que tinham aprendido de cor, quando deixaram de as seguir, foram vencidos. Porém, esta conclusão é ingénua e superficial. Há um sentido na base do qual o aforismo de Brancati é particularmente eficaz. E é, justamente, a ideia frequentemente propagandeada por editores à procura de compradores, de que o Príncipe ou a Arte da Guerra não são outra coisa senão uns repertórios de regras que devem ser aprendidas de cor para vencer. Esta ideia, creio eu, realmente é a receita segura para a derrota.

Voltemos então, novamente, à frase de Fabrizio Colonna. A perspetiva muda quando lermos Maquiavel não procurando nele um repertório de máximas, mas sim o oposto: um repertório de erros[4]. Se considerarmos o Príncipe e os Discursos – as duas obras políticas maiores do secretário florentino – poucos são os exemplos de homens políticos aos quais não atribua, a um certo ponto, um erro, inclusive a muitos exemplos virtuosos. Do rei de França, Luís XII, enumera seis erros no capítulo III do Príncipe[5]. Já falamos de César Bórgia, ao qual dedica o capítulo VII: caso exemplar de príncipe novo que ascendeu ao império por fortuna e armas alheias, comete o erro fatal de favorecer a eleição do cardeal Giuliano della Rovere a Papa (Júlio II) e é descartado com uma frase que soa como um epitáfio: «errou, pois, o duque, nesta escolha, e foi o motivo da sua ruína definitiva»[6]. Até quando fala do tirano Ápio Cláudio, detém-se sobre os «muitos erros» feitos «em desfavor daquela tirania que ele tinha proposto estabelecer em Roma»[7].

Há, nesta centralidade atribuída ao erro, uma justificação de ordem metodológica e outra de ordem, poder-se-ia dizer usando a palavra no seu significado mais amplo, filosófica. A primeira é que Maquiavel evidentemente julga ser mais eficaz ensinar por meio do erro. Se em todas as coisas «se cometem alguns erros», e nas coisas da guerra «cometem-se todos», então a própria história é um repertório de erros que têm de ser analisados para estabelecer a sua origem e natureza, para compreender se podem ou não ser evitados, se a causa da ruína recai naquela «metade das nossas ações» nas quais é árbitra a fortuna, ou na outra «metade, ou quase» que ela nos deixa governar[8]. A segunda justificação, que vou adiantar, mas à qual queria voltar no fim, é que a centralidade do erro decorre da premissa do pessimismo antropológico maquiaveliano. O erro é a consequência inevitável da força propulsiva que as paixões representam para a ação humana, perante a qual a razão desempenha uma função auxiliar, cujo resultado imediato não é frear, mas sim exponenciar a potência dos humores, dos apetites. Se até Temístocles, «homem excelentíssimo», caiu em erro vítima das falsas esperanças que animam os “banidos” – os foragidos, os exilados –, imaginemos quanto possam errar «aqueles que, por menor virtude, se deixarão arrastar pela sua vontade e pela sua paixão»[9].

Noutro sentido, a afirmação de Fabrizio Colonna deve ser considerada como uma demonstração ulterior da centralidade do tema da guerra e, consequentemente, das milícias em Maquiavel. Também neste caso, poder-se-ia muito bem deslocar o foco da perspetiva e considerar a Arte da Guerra, os escritos ditos menores sobre as milícias florentinas, o segundo livro dos Discursos ou os capítulos sobre as armas do Príncipe (do 12 ao 14) como mais do que páginas marginais do Maquiavel político. Estas são páginas que se costumam ler rapidamente e que parecem, aliás, mal envelhecidas, não só porque a guerra de hoje não é a do século XVI, mas também porque as próprias ideias de Maquiavel eram antiquadas, mesmo em relação aos seus tempos (a célebre subestimação do papel das artilharias). Sem exagerar no lugar-comum da atualidade de Maquiavel, parece-me que este juízo deve ser reconsiderado. Nestas como noutras páginas sobressai a inspiração tucidideana de Maquiavel, pois realmente, para ele, a guerra é um “mestre violento”: um βίαιος διδάσκαλος[10]. Não apenas porque, como afirma Tucídides, adapta as tendências da maior parte das pessoas às circunstâncias dos tempos de guerra, mas porque, em razão das condições extremas e das consequências sempre dramáticas de cada decisão, evidencia a dimensão trágica da política. E nada a evidencia mais do que, justamente, o erro.

Para Maquiavel, o erro é de tal maneira conatural à urgência da ação (política e militar), que no capítulo 31 do livro I dos Discursos ele louva os romanos porque não puniam «extraordinariamente» os seus capitães «por um erro cometido». Aliás, não os puniam de todo, caso o erro fosse «por ignorância», castigando-os, mas mesmo assim «humanamente», apenas se fosse «por malícia». O texto maquiaveliano reenvia aqui ao último capítulo do livro II dos Discursos, o 33, onde ele louva os romanos por darem aos seus capitães «mandato livre», isto é, ampla margem de manobra e discricionariedade de ação, opondo-os ao péssimo hábito das autoridades políticas venezianas e florentinas suas contemporâneas, que interferiam continuamente no governo das campanhas militares. Mas reenvia, também, a um dos mais típicos leitmotiv maquiavelianos, que se encontra em toda a obra do secretário florentino. Isto é, a convicção de que «é melhor fazer e arrepender-se, do que não fazer e arrepender-se», o que indica que – mesmo admitindo a lei geral que é sempre preciso conformar as nossas ações às circunstâncias, ao contingente – é melhor tomar uma decisão do que temporizar, agir do que protelar, resolver-se e não aguardar até os problemas se resolverem por si sós, pelo «benefício do tempo». Mas se, por um lado, é melhor agir e, por outro, o peso da fortuna e a insuficiência da razão humana (por muito que seja virtuoso, um capitão nunca poderá considerar todas as variáveis) tornam o erro inevitável, então é preciso conceder margem de manobra. Finalmente, nem todos os erros são iguais. Antes de tudo, como vimos, há erros de malícia e erros de ignorância, e os dois tipos não se encontram no mesmo plano, sendo que os primeiros são menos escusáveis do que os segundos. Mas também a propósito da ignorância, é preciso ver melhor. Príncipes, capitães e povos erram por incapacidade de compreender as intenções dos outros (pelo que um capitão pode errar na maneira mais trágica, pensando estar a vencer quando está a perder, ou vice-versa: assim é em Discursos, III, 18), por «falsa imagem de bem», ou por ficarem cegados pelas “opiniões” (assim erra o povo, em Discursos I, 53); erra-se por falta de “experiência das coisas” (Discursos, II, 22) ou por «opinião falaz» e «juízo falso» (Histórias Florentinas, III, 5).

Voltemos, então, ao pessimismo antropológico como axioma maquiaveliano. Há, portanto, também um limite estrutural na capacidade de ler a realidade até ao fim. O problema não é, apenas, o domínio das paixões, mas são também os nossos inevitáveis limites cognitivos. Até podemos considerar como metafórica aquela «noite» referida no capítulo 18 do Livro III dos Discursos, na qual quem venceu acredita ter perdido e quem perdeu acredita ter vencido, isto é, como uma metáfora daquele erro de juízo que faz com que se tomem decisões contrárias à «salvação» de quem as tomou. Se tentássemos passar do diagnóstico para a terapia, deveríamos concluir, seguindo a letra do capítulo 9 do Livro III, que «convém ir variando com os tempos, se sempre se quiser ter boa fortuna», e que é justamente em razão da «diversidade dos cidadãos» que o governo dos muitos tem mais possibilidade de ter “boa fortuna” do que o dos poucos ou de um só. De facto, quando «um homem que esteja habituado a proceder de certo modo» e «jamais muda», encontra tempos conformes aos seus hábitos, então pode prosperar, como no caso de Júlio II ou de Quinto Fábio Máximo. Mas basta que aconteça algo que requer uma reação «em desconformidade» com o «seu modo», então, «ele arruína-se», como ocorreu ao próprio César Bórgia ou a Pier Soderini, o irresoluto gonfaloneiro da República Florentina. E com ele, facilmente, arruína-se todo o estado. O forte argumento a favor da superioridade das repúblicas baseia-se, em suma, numa premissa substancialmente pessimista sobre as capacidades dos seres humanos de se governarem e de governarem, e é articulado, não por acaso, num capítulo dedicado à fortuna. Facto, este último, que me parece depor a favor de uma interpretação segundo a qual esta superioridade, mais do que da prudência de quem governa, depende do acaso, sendo verdadeiro que também as repúblicas não se podem emancipar do arbítrio da fortuna.

Chegado ao último ponto, gostaria de voltar, pela última vez, às duas citações que abriram este texto, uma de Maquiavel e outra de Arendt. e que reenviam para a inevitabilidade do erro e para o domínio da fortuna nos conflitos. Há outro tipo de erro, nesta circunstância, que interessa a Maquiavel em particular. É o erro causado pela esperança. Nos Discursos, encontra-se uma referência, em particular no capítulo sobre os foragidos (os “banidos” dos quais falei anteriormente), e no capítulo 27 do II Livro: «Aos príncipes e às repúblicas prudentes deve bastar vencer; porque na maioria das vezes, quando não basta, perdem-se». É neste último que Maquiavel faz referência à «insolência» que dá «ou a vitória ou a falsa esperança da vitória», que faz errar os homens «não apenas no dizer, mas também no fazer». Fá-los «ultrapassar o limite e, o mais das vezes, fá-los perder aquela ocasião de ter um bem certo, esperando ter um melhor incerto». Daí segue que «não podem […] os príncipes que são atacados cometer um erro maior, quando o ataque é movido por homens de longe mais poderosos do que eles, do que recusar um acordo, sobretudo quando lhes é oferecido; porque jamais será oferecido em condições tão desfavoráveis que não haja, nele, algo benéfico para quem o aceita, que terá nele uma parte da sua vitória».

Concluindo, se a história – e com ela a guerra e a política – é um repertório de erros e se os erros nascem dos preconceitos ou da dificuldade de prever aqueles “eventos casuais” de que fala Arendt, então se há uma receita geral para o homem político que podemos encontrar em Maquiavel não é só a de aprender pelos erros, mas também a de aprender o que fazer dos erros. Como governar incluindo o erro no horizonte das variáveis, não como um acontecimento secundário ou como um desafortunado acidente, mas como um elemento central. Aprender a pensar, diria Arendt, que alertava como nessas circunstâncias poucas coisas parecem mais assustadoras do que a difusão de uma mentalidade pseudocientífica. Os portadores desta mentalidade, continuava Arendt, não pensam, porque confundem o cálculo das variáveis com a ilusão de um controlo total sobre a realidade que não têm nem podem ter. A tudo isto tem de se acrescentar, como se disse anteriormente, que a guerra do século XXI não é, como é óbvio, a guerra do século XVI. Significativamente, na primeira versão do seu ensaio Sobre a violência (o artigo intitulado Consideration on Violence), Arendt, introduzindo o conceito de “evento casual” (random event), acrescentava: «this intrusion of the “Random Event” can be eliminated by no game theories but only by the certainty of mutual destruction»[11].

  1. N. Machiavelli, L’Arte della Guerra, em Id., Tutte le Opere (ed. M. Martelli), p. 1090 (trad. minha)

  2. H. Arendt, Sobre a violência (trad. A. Duarte), Relume-Dumará, Rio de Janeiro, 2001, pp. 14-15. No original: «Fortuna, good or ill luck»; a palavra latina reenvia claramente ao texto maquiaveliano.

  3. V. Brancati, Racconti, teatro, scritti giornalistici, (org. M. Dondero), Mondadori, Milano, 2003, p. 1273

  4. Sobre este tema, limitadamente aos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ver M.C. Figorilli, “I

    Discorsi di Machiavelli e l’‘errore’”, em R. Ruggiero (org.), Lessico ed etica nella tradizione italiana del primo Cinquecento, Pensa Multimedia, Lecce, 2016, pp. 97-122.

  5. «Aniquilou os menos potentes; aumentou em Itália a potência de um potente; meteu lá um forasteiro; não veio para aqui habitar; não meteu aqui colónias. [Tirou] o estado aos venezianos» (N. Maquiavel, O Príncipe [trad. D. Pires Aurélio], Bertrand, Lisboa, 2021, p. 22)

  6. Ibid., p. 43.

  7. N. Maquiavel, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, L. I, cap. 40 (trad. A. Santos Campos e G. Damele, Edições 70, Lisboa, no prelo). Todas as citações seguintes referem-se a desta tradução.

  8. N. Maquiavel, Príncipe, cit., p. 122.

  9. N. Maquiavel, Discursos, cit., L. II, cap. 31.

  10. Um «mestre severo» na tradução de R.M. Rosado Fernandes e M.G.P. Granwehr (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2013, p. 317. Hobbes, na sua versão da História de Tucídides, optava pela tradução, ainda mais eficaz, «a must violent master», sendo que o adjetivo βίαιος reenvia ao substantivo βία: “força, violência”.

  11. H. Arendt, Reflections on Violence, “Journal of International Affairs”, 1969, Vol. 23, No. 1, p. 2.