Tez de Lua Cheia: Entre o Breu e a Alvorada — Como se explica a diferença na prevalência do albinismo entre a Europa e África? Texto de Rafael Torres, Janaína Gonçalves, Teresa Rito, Pedro Soares, Centro de Biologia Molecular e Ambiental, Universidade do Minho
Como chegámos a esta paleta Humana?
A cor da pele é um dos traços mais visíveis e distintivos da diversidade humana. A cor é determinada pela quantidade de pigmento produzido pelos melanócitos na pele e a sua variação entre populações humanas é o resultado da dispersão do homem moderno através de migrações, moldada pela adaptação evolutiva às diferentes condições ambientais ao longo da história.
É geralmente aceite que, com a perda de pelo, os primeiros hominídeos ficaram com uma pele clara, semelhante à dos chimpanzés, exposta ao efeito abrasivo do sol das savanas tropicais. Pressões seletivas levaram ao desenvolvimento de pele escura, rica em melanina, de forma a manter a capacidade de termorregulação da pele nua, mas aumentando a proteção contra os raios ultravioleta (UV) [1].
No entanto, com uma incidência muito menor de luz UV a altas latitudes, elevadas concentrações de melanina na pele não permitem a produção adequada de vitamina D, cuja deficiência pode resultar em raquitismo ou osteoporose, bem como cancro, doenças cardiovasculares, diabetes ou doenças autoimunes [2]. Consequentemente, uma população com pele mais clara está melhor adaptada para viver a latitudes mais elevadas. O desenvolvimento de pele clara em várias populações não africanas, devido a diferentes alterações genéticas, sugere que esta adaptação ocorreu de maneira convergente para diversas populações que se estabeleceram a partir de migrações fora dos trópicos africanos [1].
De modo inverso, um indivíduo com pele mais clara está menos protegido contra os danos da luz UV nas regiões de baixa latitude, que incluem queimaduras, dano do DNA e risco de desenvolver cancro da pele. Face a estes danos, uma hipótese para uma evolução no sentido da maior produção de melanina em populações de regiões tropicais é o garante de uma maior proteção contra danos actínicos e cancro da pele. No entanto, esta hipótese não é a principal explicação evolutiva para o escurecimento da pele, uma vez que estes danos raramente têm incidência numa idade que afete o sucesso reprodutivo.
Na realidade, atualmente prevalece a hipótese de que a vantagem evolutiva que advém da pele mais escura reside no facto de garantir proteção contra a fotodegradação do ácido fólico sistémico e cutâneo, que para além do papel importante na regulação da biossíntese de DNA e outras atividades metabólicas, está estritamente relacionado com a fertilidade humana [3].
O que é o albinismo?
O albinismo é uma condição genética rara que se caracteriza pela diminuição da pigmentação da pele, cabelo e/ou olhos, e problemas visuais, por deficiência na produção de melanina. Até ao momento, existem pelo menos 21 genes descritos associados com o albinismo [4], com mutações que podem resultar em vários tipos de albinismo, podendo ser classificados em três grupos principais: albinismo oculocutâneo, albinismo ocular e albinismo sindrómico. O albinismo oculocutâneo envolve a pele, cabelo e olhos, enquanto no albinismo ocular, a hipopigmentação afeta principalmente as células do epitélio pigmentar da retina, permanecendo a pele e o cabelo pigmentados. Nas formas sindrómicas de albinismo, como a Síndrome de Hermansky-Pudlak e a Síndrome de Chediak-Higashi, os fenótipos mais severos afetam uma vasta gama de células, além das células pigmentares, e são menos comuns do que os tipos de albinismo oculocutâneo e ocular [5]. Cada um destes tipos de albinismo tem características distintas e é causado por diferentes mutações genéticas. A investigação contínua nesta área está a ajudar a compreender melhor estas condições e potencialmente desenvolver tratamentos eficazes, embora atualmente a melhor forma de mitigar a extrema sensibilidade dos portadores de albinismo a danos solares é simplesmente a aplicação de protetor solar e o uso de roupa adequada que proteja dos danos solares. Infelizmente, mesmo este tratamento é muitas vezes inacessível para as populações com baixos recursos económicos e muito vulneráveis em termos sociais e climáticos, como é o caso das populações subsaarianas.
A sociedade e o albinismo
Além da função biológica, de proteção contra os danos causados pelos raios ultravioleta do sol, a tonalidade da pele foi desde sempre associada a conceitos de beleza, status social e identidade cultural. Este foi o ponto de partida para uma associação que levou a preconceitos, discriminação e racismo em muitas sociedades e que se perpetua até à atualidade.
Pessoas com albinismo enfrentam desafios e discriminação, desde o estigma social até à marginalização e exclusão, o que dificulta a sua plena participação na sociedade e o usufruir do exercício dos seus direitos humanos [6], sobretudo em sociedades com “maior grau de contraste na pigmentação” em relação aos que sofrem de albinismo (Organização das Nações Unidas). Em África, especialmente, algumas destas crenças associam o albinismo a práticas de conceção culturalmente inaceitáveis durante a menstruação ou consideram-no como um castigo dos deuses pelos erros de um antepassado [7]. Devido a esta discriminação profundamente enraizada, a qualidade de vida das pessoas com albinismo é significativamente afetada, numa sucessão de eventos cíclicos: O portador de albinismo tem maior probabilidade de abandonar a escola precocemente ficando desde cedo social e culturalmente excluído, conduzindo a uma situação de vulnerabilidade e dependência do núcleo familiar. Enfrenta, deste modo, maiores desafios para conseguir emprego e estabelecer relacionamentos matrimoniais em comparação com a população em geral. Para além de consequências ao nível do risco aumentado de desenvolver cancro da pele, em todo o continente africano, um número significativo de indivíduos com albinismo, especialmente crianças, têm sido vítimas de ataques brutais e assassinatos ou mutilações em nome de bruxaria, superstição e procura de riqueza [8]. Além disso, devido a mitos tradicionais relacionados com a etiologia do albinismo, os familiares dessas pessoas podem enfrentar discriminação por parte da comunidade, como é o caso de mães de crianças que sofrem com estigma e sofrimento psicológico [9].
Como se explica a diferença na prevalência entre África e a Europa?
No que diz respeito a estimativas, em África, a prevalência do albinismo surge com uma frequência que desafia a lógica aparente. Comparando estudos com metodologia adequada e uma população de amostragem suficientemente grande (>1 000 000) na Europa e em África, a prevalência média de portadores de albinismo em países europeus é de cerca de 1 por cada 12 000 indivíduos, enquanto em África é de 1 pessoa com albinismo por 4264 pessoas sem albinismo [10].
Como foi referido, a presença de melanina foi um avanço evolutivo essencial para a ocupação da África Subsaariana pelos humanos, pelo que seria expectável que um fenótipo que contraria o sentido da evolução fosse fortemente penalizado pelo ambiente, certamente de forma mais veemente, em países com altos níveis de radiação UV, resultando em prevalências de albinismo muito inferiores nos países africanos em relação aos europeus. Como se pode então explicar esta notória diferença na prevalência do albinismo, sendo precisamente nos países africanos, onde há maior contraste com a população que evoluiu para se adaptar a esse ambiente, mais relatos de violência e discriminação contra este grupo, assim como maior incidência de luz UV, que se regista uma maior prevalência?
A resposta a esta questão pode ser multifactorial. Em primeiro lugar, em países africanos, o diagnóstico de albinismo tende a ser mais imediato devido ao evidente contraste com a população predominante, o que pode resultar em estimativas de prevalência mais próximas da realidade do que em países maioritariamente caucasianos. Outro motivo poderia ser a existência de fenómenos de consanguinidade, o que aumentaria significativamente a prevalência de albinismo, já que é uma condição genética causada por genes recessivos, que precisam de ser herdados de ambos os pais, o que é mais provável entre parentes próximos. Estes fenómenos seriam explicados pelo isolamento religioso ou social de algumas comunidades africanas bem como o facto dos portadores desta condição se encontram muitas vezes marginalizados da sociedade predominante, sendo deste modo mais vulneráveis a ataques sexuais e formas de opressão. Finalmente, em certas sociedades, fatores sociais e mitos sobrenaturais podem facilitar a difusão de genes que causam albinismo por aumento da taxa reprodutiva.
As estimativas da prevalência do albinismo
Os diferentes tipos de albinismo (referidos anteriormente), traduzem-se em formas fenotípicas mais ou menos severas. No entanto, numa pessoa com feições tipicamente da África Subsaariana é notória a deficiência na produção de melanina, independentemente do tipo ou severidade do albinismo oculocutâneo. Contrariamente, em indivíduos caucasianos, essa deficiência é muito menos aparente, sendo menos evidente que se trata de alguém que, pela sua condição genética, diverge da população geral através da produção deficiente de melanina. Efetivamente, estudos sobre albinismo em África estão sobrerrepresentados, representando cerca de 44% dos estudos [11] no panorama global. Como tal, é possível haver uma significativa falta de diagnóstico do albinismo em sociedades caucasianas, resultando numa perceção exagerada de uma maior prevalência de albinismo em África. Contudo, estudos epidemiológicos e genéticos em populações europeias argumentam contra esta suposição.
Consanguinidade
Embora não existam dados concretos sobre a taxa de consanguinidade em muitos dos países do continente africano, particularmente na região subsaariana (Figura 1, retirada de [12]), é indiscutível que determinados costumes culturais e o isolamento de comunidades podem potenciar a ocorrência de casamentos dentro do núcleo familiar próximo. É bem conhecido que em populações com elevadas taxas de consanguinidade, a prevalência de albinismo é mais alta, como é natural para diversas doenças genéticas e evidenciado pela prevalência da condição nos povos Kuna do Panamá e Bhatti do Paquistão (5 portadores por cada 100 pessoas não portadoras e entre 5 e 10 por cada 100 pessoas não portadoras, respetivamente, [13]). Com base em observações e interações com indivíduos da população angolana, foi possível identificar algumas conceções sociais que podem ser responsáveis pela alta taxa de albinismo. Talvez a mais significativa seja a prática cultural que impõe o casamento dentro do mesmo grupo étnico, o que, indubitavelmente, aumenta a probabilidade de casamentos consanguíneos e nascimento de pessoas portadoras de albinismo.
Crenças e mitos
As crenças e mitos podem também contribuir diretamente para a seleção de pessoas com albinismo como parceiro sexual, consensual ou não consensual, aumentando assim a prevalência do albinismo. Um exemplo é a crença existente em vários países africanos de que ter relações sexuais com uma pessoa com albinismo pode curar a síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA) [14][15]. Esta crença acaba por culminar em episódios recorrentes de violações e agressão sexual às portadoras de albinismo. No mesmo sentido, há relatos de abusos sexuais como resultado da curiosidade de ter relações sexuais com alguém com albinismo, muitas vezes ilibado e mascarado pela falta de voz das vítimas na sociedade [15]. Outro exemplo é um fenómeno que é consequência da alteração do modo de vida dos portadores de albinismo. Foi descrito tanto nas tribos Hopi do Arizona, como no povo Kuna, que enquanto os não portadores de albinismo desempenham tarefas ao longo do dia sob o sol, os indivíduos do género masculino portadores de albinismo, devido ao elevado risco de danos por exposição solar, ficam na aldeia com as mulheres, tendo assim mais oportunidades para ter relações sexuais [16][17]. A verdadeira prevalência destes fenómenos não é totalmente conhecida, mas certamente contribuem para um aumento da prevalência desta condição.
Lubango, em Angola, o meu caso pessoal de contacto com pessoas com albinismo (Rafael Torres)
Interrompo o relato mais científico do albinismo enquanto condição genética e de vulnerabilidade social, para reportar a realidade de uma visita de 9 dias a Angola, em abril deste ano (Figura 2). Ao falar com pessoas que vivem com albinismo, nos municípios do Lubango e da Humpata, e tendo já conhecimento de alguns aspetos, pude perceber algumas das dificuldades que enfrentam diariamente. Desde a luta para obter cuidados médicos adequados até à simples compra de protetor solar (desproporcionalmente caros), cada obstáculo é uma batalha. A comunidade com albinismo é uma comunidade que vive em insegurança, marginalizada, com dificuldades em olhar os outros nos olhos, mas que tem de ser ajudada, atendida, com cuidados adicionais. Embora tenha conhecido pessoas capazes de verbalizar e descrever as dificuldades que enfrentam, também encontrei outras que, seja por trauma ou problemas de socialização, não conseguiam expressar o que sentiam. Ver crianças com feridas causadas pelo sol e sentir a aspereza da pele de alguém da minha idade durante um simples aperto de mão são experiências que me fizeram perceber a realidade desafiadora que enfrentam. Esses encontros pessoais destacaram não apenas as questões médicas, mas também os mitos e desafios sociais que cercam o albinismo. Foi possível perceber que por trás do tratamento desigual e até inumano, está a crença de que as pessoas que, de forma aleatória, herdaram dos dois pais genes causadores de albinismo, pela diferença no tom de pele, não pertencem à mesma etnia que os demais da comunidade em que nasceram. A realização de questionários simples é um desafio devido à pouca alfabetização destas comunidades, agravando-se a própria baixa auto-estima dos inquiridos. Ficou claro que, apesar da criação de instituições de apoio, é necessário realizar um trabalho adicional, até nas instituições, para efetivamente transformar a desafiadora condição enfrentada por centenas de milhares de pessoas, em Angola, de forma particular e em África, de forma geral, devido ao albinismo. Este esforço tem de procurar reverter a perceção negativa associada à condição, melhorando a vida das pessoas e a sua inclusão na sociedade.
Figura 1 – Taxa de Casamentos Consanguíneos, por país (para países a cinzento não há dados). Retirado de worldpopulationreview.com
Figura 2 – Investigadores Rafael Torres e Janaína Gonçalves (lado direito) em conversa com portadores de albinismo no Tchivinguiro, Huíla, Angola.