Sobre a Teologia de Friedrich Hölderlin

O que é Deus? desconhecido, no entanto

Cheia de atributos dele está a face

Do céu. É que os relâmpagos

São a cólera de um Deus. Quanto mais

Invisível, um é,………mais se ajusta ao estranho. Mas o trovão

É a fama de Deus. O amor de imortalidade

Também é, como a nossa, propriedade

De um Deus.

Hölderlin, “O que é Deus?”[1]

PREÂMBULO

O ensaio de T. S. Eliot “Shakespeare and the Stoicism of Seneca”[2] (1927) é, provavelmente, um dos mais interessantes que o seu autor nos legou. O propósito central do ensaio é contrariar as tendências de apropriação de Shakespeare, que Eliot identificava no seu tempo – e que, fosse ele vivo hoje em dia, certamente identificaria no nosso tempo, tão dado a leituras ecológicas, queer, ou outras, de Shakespeare, bem como de outros autores – por parte de autores cujo labor resultava na assimilação do autor estudado à corrente ideológica do seu intérprete. Mas o ensaio de Eliot também contém um argumento contra a “influência”, ou pelo menos contra a influência directa, de um autor noutros, cujo desenvolvimento não cabe no escopo do presente ensaio, assim como uma tese sobre o trabalho poético, assente na emoção do autor e, por sua vez, produzindo emoções. Do modo como Eliot concebe o trabalho poético está notoriamente ausente o pensamento – a que nós seríamos tentados a chamar “especulativo” –, sendo que este é sobretudo substituído pelo expediente poético. De facto, foi neste ensaio que T. S. Eliot afirmou famosamente que os poetas não pensam e que, quando parecem pensar, é porque se estão a servir dos pensamentos de outros, sobretudo filósofos ou teólogos. Assim, por exemplo, por trás de Dante, a servir-lhe de suporte, Eliot identifica o sistema filosófico do grande São Tomás de Aquino, enquanto que, por trás de Shakespeare, se encontraria, segundo o mesmo autor, uma mistura enlameada de filósofos que Eliot considera menores, como Montaigne, ou Maquiavel – ou Séneca –, ou as ideias que circulavam na Inglaterra isabelina sobre o que seriam estes filósofos, coisa assinalavelmente diferente por vezes, do filósofo em si. Diz Eliot:

It is the general notion of ‘thinking’ that I would challenge. One has the difficulty of having to use the same words for different things. We say, in a vague way, that Shakespeare, or Dante, or Lucretius, is a poet who thinks, and that Swinburne is a poet who does not think […]. But what we really mean is not a difference in quality of thought, but a difference in quality of emotion. The poet who ‘thinks’ is merely the poet who can express the emotional equivalent of thought. But he is not necessarily interested in thought itself.[3]

Esta passagem é eloquente e dá conta das preocupações de Eliot. Para ele, a “profissão” do poeta não é pensar, mas sim traduzir em poesia a sua experiência pessoal e o seu tempo, o pensar e o sentir do seu tempo, e as escolhas que faz e o que parece pensar ou crer são matérias de expediente poético e de fidelidade à realidade que pretende traduzir em poesia. Assim, Shakespeare não acredita nem deixa de acreditar no estoicismo de Séneca[4], assim como Dante não acredita nem deixa de acreditar na teologia de São Tomás de Aquino. Usam na sua poesia aquilo que contribui para fazer boa poesia, sendo esta uma das medidas do talento poético: a capacidade de fazer opções de acordo com o que contribui para fazer a melhor poesia possível e a que expressa com maior precisão a emoção que se quer transmitir. Assim, Eliot dissocia de forma marcada pensamento “especulativo” e criação poética. Para Eliot, o poeta não se confunde a si próprio com um pensador e tem consciência de si qua poeta. No entanto, o poeta não passa sem pensamento, pois é do pensar do seu tempo e das suas relações com esse pensamento que extrai as emoções de que é urdida a sua poesia. Seguindo esta lógica, seria possível aduzir inúmeros outros exemplos do cânone ocidental e encontraríamos replicada sempre esta estranha simbiose dissociativa entre pensamento e criação poética. No entanto, nesta como em várias outras coisas, podemos também perguntar-nos se não terá neste particular ido Eliot longe demais ao dizer que nenhum poeta pensa. Podemos modificar essa afirmação dizendo que nenhum poeta pensa qua poeta – mas que pode, de facto, pensar. E mesmo nesta formulação mais branda e menos radical a teoria não é inquestionável. Parece haver poesia que não poderia ter sido escrita sem a existência de pensamento especulativo por parte do poeta e que dá conta da existência de um tal pensamento. Nesse sentido, nenhum exemplo é tão eloquente quanto o de Friedrich Hölderlin, que nos permite encontrar na sua poesia um antídoto poderoso contra a tese de Eliot. Um crítico eliotesco contraporia que, por trás de Hölderlin, a servir de base à sua elaboração poética, se encontra a filosofia de Hegel, ou, se preferirmos, uma filosofia indefinida na origem do pensamento de todos os expoentes do Idealismo Alemão. Mas, quanto a Hegel, é sobejamente evidente, para quem ler as poesias e os escritos teóricos dos nosso poeta, que, ainda que, por um lado, muitas das suas preocupações filosóficas sejam coincidentes com as de Hegel, por outro lado Hölderlin parece por vezes preceder e exceder Hegel e, mais importante do que isso, o seu pensamento move-se, por vezes, em direcções não exploradas pelo seu colega de estudos e amigo, não se limitando, por isso, a sua poesia a uma ilustração ou depuração poética da filosofia hegeliana ou dos demais representantes do Idealismo Alemão. Um atento estudo da sua obra poética mostrará que Hölderlin de facto pensa, que pensa precisamente no sentido especulativo que Eliot julga estar além das fronteiras do trabalho poético, e que esse pensamento é, por vezes, de uma audácia extrema. Por razões que se tornarão mais claras no decorrer deste ensaio, poderíamos mesmo dizer que a tragédia de Hölderlin, se esta pudesse ser reduzida a fórmulas desta natureza, foi precisamente pensar demais – lembremo-nos que o poeta viveu, em números redondos, mais de trinta e cinco anos em estado de loucura, a cujas causas seria legítimo pensar não serem alheios os seus altos vôos intelectuais e as múltiplas tensões do seu pensamento e, consequentemente, do mais profundo da sua personalidade, de que a sua obra dá testemunho manifesto. O seu pensamento encontra-se, de facto, a cada passo, armadilhado de tensões, de tal forma que parece estar sempre em processo de colapso: o chamamento oposto da terra natal e das terras do seu imaginário intelectual – sobretudo a Grécia dos antigos –; a oposição entre a modernidade – e as suas exigências – e a antiguidade; o sonho de replicar no seu tempo as realizações dessa antiguidade perdida e de as levar mais longe, ao mesmo tempo que se reconhece a sua irreplicabilidade; a busca da transposição para o idioma alemão dos ritmos e métricas aperfeiçoados pelos escritores gregos clássicos e a luta constante contra os limites da linguagem e do sentido; a tensão entre conteúdo e forma ideal, etc. De entre estas tensões avulta a tensão teológica, o combate que, na obra de Hölderlin, travam o cristianismo no seio do qual foi educado e o politeísmo grego clássico que o apaixonava – e não só isso, pois veremos facilmente que o cristianismo do poeta não é um todo unificado. Tem-se discutido sobre a influência do pietismo suábio em Hölderlin e esta parece, afinal, não ter sido tão marcada quanto a princípio se suspeitou. Por outro lado, parece haver, na sua obra, um certo “namoro” com o catolicismo, nomeadamente ao nível da estética da linguagem. E mesmo o seu (neo-)paganismo não é exactamente ortodoxo, como veremos. Assim, o pensamento religioso de Hölderlin parece ser uma hidra heterodoxa indefinida[5] e é precisamente a tensão que resulta dessa mistura de elementos de várias tradições, aliada à busca da autenticidade que sempre preocupou o poeta, que procurarei descrever neste estudo. Não pretendo chegar a conclusões finais que permitam catalogar, de forma cómoda para o intérprete, Hölderlin ou engavetá-lo na gaveta própria com o rótulo de “cristão” ou “pagão” – ou “protestante”, ou “católico”. Uma parte do problema é um pseudo-problema, uma vez que Hölderlin – que foi, um estudante de teologia no Stift de Tübingen e in illo tempore destinado à carreira de pastor luterano – faz parte da tradição luterana. Mas, na sua obra poética, procurou encastoar no mesmo universo mental os elementos da mundividência cristã e os da mundividência pagã helénica clássica, Deus Pai e Zeus, Jesus Cristo e Dioniso, e é precisamente a tensão criada por essa tentativa de constituição de uma teologia sincrética que se procura aqui descrever. Para tal, concentrei-me na elegia “O Pão e o Vinho”, que me parece conter todos os problemas maiores em embrião, fazendo, no entanto, a partir dela, frequentes incursões pela restante produção literária de Hölderlin. Não tendo ainda acesso aos originais alemães, tive de escolher entre as versões disponíveis noutras línguas, acabando por me decidir por usar, em vez da versão inglesa de Michael Hamburger, a tradução portuguesa de Paulo Quintela, que se encontra na edição da Fundação Calouste Gulbenkian das suas obras completas[6], por me parecer a que melhor clarifica o sentido, por vezes obscuro – não menos pela sintaxe intrincada do que pelo mistério da alusão –, dos versos de Hölderlin, ao mesmo tempo que deixa intacta – ou, pelo menos, tão intocada quanto possível – a complexidade, a autenticidade de que deriva, do original alemão. Ensinaram-me que uma tradução é sempre, de certo modo, uma traição[7]. Espero ter escolhido a traição menor e, ao mesmo tempo, a que melhor se preste à introdução do leitor à poesia de Hölderlin, pois um dos objectivos deste estudo é do motivar a leitura crítica deste poeta por parte do público português.

I

DEUS E OS DEUSES

A longa elegia “O Pão e o Vinho”[8] está pejada de tensões, dissonâncias e modulações, tendo muitas delas a ver com o tema deste ensaio. O poema começa com uma descrição do que poderíamos dizer ser uma cena do presente poético, o cenário de uma cidade ao anoitecer. Essa descrição depressa se transforma numa contemplação da beleza e estranheza da noite – que no poema aparece divinizada – e dos fenómenos com ela associados. O mistério é assim descrito na segunda estrofe:

De maravilhar é a graça da Sublime e ninguém

Sabe donde ela vem e o que dela nos pode suceder.

De tal modo ela move o mundo e a alma esp’rançada dos homens,

Nem mesmo um sábio compreende o que ela prepara, pois

Assim o quer o Deus supremo, que muito te ama, e por isso

Tu amas ainda mais do que a ela o dia lúcido. (2.1-6)[9]

Poderíamos, numa primeira leitura, sentir-nos pelo menos ligeiramente teologicamente reconfortados por esta passagem, com a sua menção do “Deus supremo”, pois seria de esperar que esta fosse uma profissão de fé inequívoca no Deus cristão. No entanto, a própria formulação que nos poderia acalmar carrega já em si as sementes da discórdia teológica, pois para quê dizer “Deus supremo” se não estivesse nisso também implícita a admissão da existência de outros deuses além do que assim designamos? Só esta breve expressão abre as portas a toda uma série de problemas, porque, como se verá, no universo poético de Hölderlin são postos em palco ao mesmo tempo Deus e os deuses. E, para tornar as coisas ainda menos cómodas para o leitor cristão, nem sequer podemos, aqui, dar-nos por convencidos de que o Deus cristão seja o primeiro deus, o Deus dos deuses. E também não podemos estar inteiramente certos de ser este “Deus supremo” o Deus cristão ou de que, a sê-lo, ainda tenha alguma coisa de cristão, apesar do reconfortante – porque reconhecível – aparte “que muito te ama”. Na quarta estrofe, este Deus supremo parece ser feito coincidir com a entidade a quem Hölderlin chama reiteradamente “Pai Éter”. Parece, portanto, que o “Deus supremo” é o Pai Éter. Mas o que significa isso? Para averiguar as características deste “Pai Éter” temos de comparar aturadamente vários poemas e cotejar aquilo que é dito nuns lugares com o que é dito noutros – e isto, relembre-se, sem grandes esperanças de chegar a uma unidade isenta de contradições. Vejamos, pois, o que o poeta diz no poema “Ao Éter”[10]:

Fiel e amigo, como tu, nenhum dos deuses e dos homens,

Ó Pai Éter! Me educou; ainda antes que a Mãe

Me tomasse nos braços e os seus peitos me criassem,

Pegaste em mim com ternura e me insuflaste

Celestial bebida, o sopro santo no peito em germe. (1.1-5)

Há aqui várias coisas dignas de nota: “Mãe”, “celestial bebida” e “sopro santo”. Que “Mãe” não se refere à mãe do poeta ou, se preferirmos, do “eu poético”, é óbvio. No entanto, se nos propusermos tentar convencer-nos de que no aparecimento combinado de “Pai” e “Mãe” se encontra uma indicação de que se está a falar do Deus cristão e da Santíssima Virgem Maria sairemos decepcionados. Não há provas inequívocas em nenhuma direcção, mas sugiro que tomemos “Mãe” como referindo-se à Natureza ou à “Terra”, que aparece similarmente designada noutros poemas. Portanto, parece estar a falar-se aqui de um par de entidades muito mais pagãs na forma do que cristãs. Mesmo assim, as dificuldades estão longe de terem terminado. Quanto a “celestial bebida” e “sopro santo”, aparentemente sinónimos, não é claro se significam a inspiração poética ou a uma pietas ou amor aos deuses – ou uma mistura dos dois, ou outra coisa qualquer que ainda não podemos adivinhar.

No entanto, dizer que o “Pai Éter” parece ser mais pagão do que cristão é ainda uma simplificação. Note-se que “Pai” é uma condição do Deus cristão, que é pai de Cristo, pai da Humanidade e pai de cada homem em particular[11]. Acontece também que, na estrofe seguinte, Hölderlin adapta a célebre resposta de Jesus ao Diabo durante as tentações no deserto em Mateus IV:4, dizendo que “Nem só de pão terrestre é que os seres medram / Mas tu todos manténs com o teu néctar, Pai!”[12]. Estes versos permitem confundir ainda mais a questão de saber o que é o néctar – que parece ser sinónimo de “celestial bebida” e “sopro santo”, ou andar lá perto –, pois lembremo-nos que, no Evangelho Segundo São Mateus, Jesus diz a Satanás que, além do pão, o que alimenta o homem é “toda a palavra que sai da boca de Deus”[13]. Poderemos, então, admitir que o “néctar”, “a bebida”, o “sopro santo” que foi dado ao poeta foi a Palavra de Deus? Uma vez que só em “Patmos”[14] é que há[15] uma menção directa da Sagrada Escritura, não parece muito evidente. É mais verosímil pensar que se trata simplesmente de uma apropriação das palavras bíblicas no contexto de uma teologia heterodoxa – mais nem por isso devemos abandonar a prossecução deste indício, ao qual voltaremos em breve. No entanto, é possível, desde logo, com a ajuda deste poema, afirmar uma coisa. Olhemos para a sexta estrofe de “Ao Éter”:

Mas os filhos bem-amados do Éter, as felizes aves,

Moram e brincam alegres no palácio eterno do Pai.

Há campo pra todos. Caminhos não marcados a ninguém,

E livres pela casa mexem-se grandes e pequenos,

Rejubilam-me por sobre a cabeça e o coração anseia-me

Misteriosamente para eles; como amorosa pátria

Acena-me do alto, e para o cume dos Alpes

Desejaria eu ir, gritar de lá à águia rápida

Que me leve, como outrora o menino venturoso

Aos braços de Zeus, da prisão para os paços do Éter. (6.1-10)

Que as aves sejam ditas filhas do Éter não nos ajuda muito, pois metáforas deste tipo eram moeda corrente a propósito de vários deuses pagãos, fossem eles Zeus ou Óðin. No entanto, os dois últimos versos, que comparam um episódio mitológico envolvendo Zeus com o desejo do poeta de ser levado “para os paços do Éter”, precisamente porque há uma comparação que aproxima as duas coisas, permitem-nos inferir que há uma distância entre elas e que, por isso, “Pai Éter” e “Zeus” não são a mesma entidade[16]. A esta conclusão podíamos adicionar a suspeita de que, portanto, o “Pai Éter” não é um deus supremo no sentido em que Zeus ou Óðin são deuses supremos – se é que algum deles com propriedade o é. Tal pensamento aumenta a indefinição na medida em que a sua continuação lógica é a de que o “Pai Éter” de Hölderlin é “Deus” e “supremo” num sentido mais parecido com o do Deus cristão. A ser isso verdade, como me parece ser, é preciso averiguar, pois os deuses pagãos não andam longe, a hierarquia deste panteão.

Para procurar resolver esta questão, é preciso olhar para mais alguns passos de “O Pão e o Vinho”:

Ó Grécia feliz! ó casa de todos os deuses celestes!

É pois verdade o que ouvimos outrora na juventude?

Sala festiva! o soalho é o mar! e mesas os montes,

Feitos em verdade há idades para este uso único!

Mas onde os tronos? onde os templos? e as taças

Onde, cheias de néctar? onde o canto pra prazer dos deuses?

Onde, onde brilham eles, os oráculos que acertam longe?

Delfos dormita, e onde ressoa o grande Destino?

Onde está o Destino veloz? donde irrompe, cheio de ventura patente,

Trovejante do ar calmo por sobre os nossos olhos?

Pai Éter! tal o grito que de boca em boca voava

Mil vezes; ninguém suportava a vida sozinho;

Tal bem, repartido, alegra, e trocado com ‘stranhos

Faz-se júbilo, e dormindo cresce a força do verbo.

Ó Pai sereno! e ressoa, até onde pode chegar, o sinal

Antiquíssimo, herdado de avós, criador e eficaz.

Pois é assim que os Celestiais surgem, estremecendo fundo

Desce das sombras a sua luz para os homens.

(…)

Na verdade, quando há pouco – há muito a nós nos parece –

De novo subiram ao céu os que alegraram a vida,

Quando o Pai desviou do dos homens o seu rosto

E com razão começou o luto na terra,

Quando por fim apar’ceu um Génio tranquilo, com celestes

Consolações, que anunciou o fim do dia e desapareceu,

Como sinal de que aqui estivera e havia de voltar

De novo, deixou o coro divino alguns dons,

Para que, como outrora, humanamente deles nos pudéssemos alegrar… (4.1-18 e 8.1-9)

Que se está a falar nesta última estrofe de Jesus Cristo e dos sacramentos é uma questão importante, à qual voltaremos. O que agora primeiro interessa é a questão da hierarquia celeste de Hölderlin e o modo como essa amalgama cristianismo e paganismo. Estas duas estrofes correspondem ao princípio e ao final de uma longa dissertação sobre o curso da História e o papel dos deuses. Começa por se olhar para um passado em que os deuses estavam presentes na terra, em que havia “tronos”, “templos”, “taças cheias de néctar”, “oráculos”, coroas de flores e dança sacra. Esse é o tempo da Grécia clássica, um tempo em que, para Hölderlin, os deuses viveram entre os homens e que corresponde a um pico de desenvolvimento e sofisticação civilizacional. Mas com esse olhar para trás, constata-se também que o presente corresponde a “tempos de indigência”, em que os deuses “de novo subiram ao céu” e estão ausentes de entre os mortais. Isto coincide com o facto de o Pai (Éter) ter desviado “do dos homens o seu rosto”. Ou seja, parece que assim que os ciclos da história humana e a presença ou ausência dos deuses – aqui deuses entende-se por deuses gregos – são determinados pelo Pai Éter. Ou seja, o Pai Éter é realmente (solução a uma das nossas primeiras questões) o Deus supremo que está acima dos deuses do panteão grego e os supra-determina. Uma outra coisa que é interessante observar, e que nos introduz à próxima etapa desta investigação, é que Cristo é designado por “Génio tranquilo”, não parecendo ser considerado exactamente um deus, e nem mesmo filho de Deus – na nona estrofe, quem é designado por “Filho” do “Altíssimo” é Dioniso, o deus do vinho –, não havendo, no entanto, nenhuma ênfase na humanidade de Cristo. Antes se diz que Cristo “apar’ceu” com “celestes consolações” e “anunciou o fim do dia e desapareceu”. Não se diz de onde vem nem para onde foi, mas diz-se que traz consolações celestes, o que permite inferir que desceu do reino dos “celestes”, parecendo ser um ser intermédio, um mediador entre o homem e os deuses (gregos). Portanto, e para sumarizar, existe no panteão de Hölderlin um deus supremo designado por Pai Éter que parece ser a versão hölderliniana do Deus cristão, que preside e está acima de uma categoria de deuses que são os do politeísmo grego e, putativamente directamente dependente do Pai Éter mas numa categoria do ser inferior à dos deuses gregos, está Jesus Cristo, o “Génio tranquilo”. É de notar que, obviamente, tudo isto é completamente heterodoxo, para não dizer herético.

II

A Holderlinturm, ou “Torre de Holderlin”, em Tubingen, onde o poeta viveu durante os 36 últimos anos de vida, entre 1807 e 1843.

JESUS, A EUCARISTIA, DIONISO E O SENTIDO DA HISTÓRIA

Citemos agora a oitava estrofe, desta feita completa:

Na verdade, quando há pouco – há muito a nós nos parece –

De novo subiram ao céu os que alegram a vida,

Quando o Pai desviou do dos homens o seu rosto

E com razão começou o luto na terra,

Quando por fim apar’ceu um Génio tranquilo, com celestes

Consolações, que anunciou o fim do dia e desapareceu,

Como sinal de que aqui estivera e havia de voltar

De novo, deixou o coro divino alguns dons,

Para que, como outrora, humanamente deles nos pudéssemos alegrar,

Uma vez que para a alegria, com o Espírito, o Maio se fez grande de mais

Entre os homens e ainda, ainda faltam os fortes para as maiores

Alegrias, mas vive ainda em silêncio alguma gratidão.

O pão é fruto da terra, mas está pela luz abençoado,

E do Deus trovejante vem a alegria do vinho.

Por isso ao gozá-los pensamos nos deuses, que outrora

Aqui estiveram e que hão-de voltar no tempo devido:

Por isso os poeta cantam também graves o Deus-do-Vinho

E esse louvor não soa vã invenção aos ouvidos do Velho. (8.1-18)

Desde logo se vê que a colocação de Jesus num plano intermédio entre a divindade e a humanidade, não sendo exactamente nem uma coisa nem outra, afasta a sua cristologia da concepção tradicional ortodoxa e católica. De facto, o Cristo de Hölderlin não é nenhum Pantocrator, não é o Senhor do Universo, por quem todas as coisas foram feitas, nem sequer uma união hipostática de duas naturezas, humana e divina. É um ser mais angélico e diminuto do que o Cristo católico poderia alguma vez ser. É um Cristo claramente derivado da concepção luterana de Cristo, há uma profunda deflação da pessoa de Cristo. Assim também a sua concepção da Eucaristia é essencialmente luterana – mas veremos que até os luteranos ficariam chocados come ela. Tal como Cristo não é totalmente Deus e totalmente Homem, assim também o pão e o vinho não são o corpo e o sangue de Cristo, nem participam da natureza divina, não há presença real nos “dons”. Os “dons” de que o poeta fala são essencialmente um memorial[17]. No entanto, há dois pormenores de grande significado que horrorizariam tanto católicos como luteranos normativos. Olhemos para os versos 5 a 8 da oitava estrofe, citada acima. A sintaxe é muito intrincada, mas claro que foi o “Génio tranquilo”, i.e. Jesus Cristo, que trouxe as “celestes consolações” aos homens. Mas que tenha sido ele a outorgá-los é menos claro. Os versos 7 e 8, “Como sinal de que aqui estivera e havia de voltar / De novo, deixou o coro divino alguns dons”, parece indicar que a Eucaristia não é um memorial do sacrifício de Cristo – de resto não há qualquer alusão à Crucificação – mas da presença do “coro divino”, ou seja, do conjunto dos “deuses” pagãos gregos, um substituto da presença fortificante que Hölderlin atribui às divindades que, para ele, são as mais directamente importantes. Isto, de resto, é confirmado pela afirmação de que o vinho pertence ao pelouro de Dioniso e pelos versos 15-16 da oitava estrofe: “Por isso ao gozá-los [o pão e o vinho] pensamos nos deuses, que outrora / Aqui estiveram e que hão-de voltar no tempo devido”. Ou seja, o grande sacramento da Igreja não nos leva a elevar a mente para Deus Pai e, de modo muito marcado, para a Paixão de Cristo, mas para divindades pagãs, e está mais associado com a “alegria do vinho” e os prazeres báquicos do que com o sacrifício redentor. Também não é claro à partida quem é que há-de voltar. Pelos versos 5 a 8 ficamos na dúvida sobre se é Cristo ou se são os deuses gregos. Mas os versos 15-16 esclarecem que o poeta se refere de facto a uma nova vinda dos deuses gregos, que virão habitar de novo entre os mortais – e não se fala e mais lado nenhum nada que se pareça com a segunda vinda de Jesus Cristo no Dia do Juízo[18]. Ou seja, Hölderlin subverte e paganiza todas as crenças centrais do cristianismo.

O avento, no fim do poema, não é o do Juízo Final[19], mas sim o de Dioniso. Veja-se a nona e última estrofe:

Sim! com razão dizem que ele[20] faz as pazes entre o dia e a noite,

Faz subir e descer eternamente as estrelas do céu,

Sempre alegres, como a folhagem do sempre-verde pinheiro

Que ele ama, como a coroa de hera que pra si ‘scolheu,

Porque ele permanece e traz o sinal dos deuses fugidos

Cá pra baixo aos sem-deuses no meio das trevas.

O que a canção dos antigos profetizou dos filhos de Deus,

Olha! somos nós, nós; fruto das Hespérides é!

Por milagre e ao certo se cumpriu como em homens,

Creia-o quem o provou! – mas por mais que aconteça,

Nada tem efeito, pois não temos coração, somos sombras,

Até que o nosso Pai Éter, por todos reconhecido, a todos pertença.

Mas entretanto desce, como portador do facho, do Altíssimo

O Filho, o Sírio, para entre as sombras.

Sábios felizes o vêem; um sorriso da alma cativa

Resplandece, para a luz se abrem inda os seus olhos.

Mais suave sonha e dorme o Titã nos braços da terra,

E mesmo o Cérbero, invejoso, bebe e dorme. (9.1-18)

A vinda de Dioniso parece dar sentido ao canto do poeta. É de notar que Dioniso, neste poema, substitui Apolo como deus tutelar da poesia e que os fenómenos de poesia estão muito mais ligados à noite dionisíaca do que ao dia apolíneo. Dá sentido também à história, na medida em que parece anunciar ou prenunciar um tempo em que o Homem já não precisará do pão e do vinho ou do furor dionisíaco para se unir à divindade, na medida em que o Pai Éter será “por todos reconhecido” e os deuses voltarão à terra. Assim, é bom de ver que para Hölderlin vivemos, não no tempo da graça pregado por São Paulo, que se segue ao tempo da Lei, mas num tempo de privação e “indigência” que se seguiu a um período áureo e ao qual se seguirá outro período áureo em que os deuses voltarão à terra. Assim, o curso da história é cíclico, e tem muito mais a ver com o politeísmo grego do que com a linearidade do tempo cristão. Nisto, Hölderlin estava em sintonia com o seu amigo Hegel – e estaria também em sintonia com Marx.

CONCLUSÃO

Por tudo o que foi dito atrás, conclui-se que aquilo a que se poderia chamar a teologia de Hölderlin, tal como a de outros poetas da sua época, não é de todo homogénea nem ortodoxa. Antes é um misto de influências de cristianismo e paganismo, que resulta num síntese nova absolutamente original e profunda e irremediavelmente iconoclasta e herética. Também é fácil de ver, pelo que fica dito atrás, como o elemento teológico avulta como uma das tensões que constituem o pensamento de Hölderlin. Assim como no caso da métrica e da musicalidade, campo no qual Hölderlin procurou reproduzir os modelos clássicos na língua alemã, assim também no seu pensamento religioso procurou o poeta fundir a mitologia grega – à qual deu uma nova vitalidade e substância – com a teologia e a Revelação cristãs, compondo um todo que funciona como uma orquestra conduzida por um maestro surdo, um todo desarmónico e sincrético, em que avultam as muitas cabeças da hidra e que é um testamento das paixões e complexidades do grande poeta que foi Friedrich Hölderlin.

Nota do autor: Este texto foi escrito em Abril de 2019. Os seus únicos leitores além de mim, antes de submetido para publicação nesta revista, foram o Prof. Doutor Hans Ulrich Gumbrecht, cujo seminário sobre o poeta objecto deste texto frequentei em 2017, e João Esteves da Silva, meu estimado colega no Programa em Teoria da Literatura da FLUL e autor de um trabalho sobre Holderlin muito mais extenso e digno de publicação do que o meu. Reler um trabalho próprio com mais de cinco foi um interessante convite à humildade pelo carácter manifestamente incipiente do mesmo e só com dificuldade fui persuadido a cedê-lo para publicação. No entanto, sendo o meu interesse neste poeta alemão manifestamente marginal no contexto das minhas preocupações intelectuais hodiernas, não dispus de força de vontade para o rever. Quod scripsi, scripsi, como diria Pôncio Pilatos.

BIBLIOGRAFIA

Eliot, T.S., Selected Essays, London: Faber and Faber, 1980

Nova Bíblia dos Capuchinhos para o Terceiro Milénio da Encarnação, coord. Herculano Alves, OFMCap., Lisboa e Fátima: Difusora Bíblica, 1998

Quintela, Paulo, Obras Completas II. Traduções I, org. Ludwig Scheidl, António Sousa Ribeiro, Carlos Guimarães e Maria Helena Simões, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997

  1. Friedrich Hölderlin, “O Que É Deus?”, trad. Paulo Quintela, in Paulo Quintela, Obras Completas II. Traduções I, org. Ludwig Scheidl, António Sousa Ribeiro, Carlos Guimarães e Maria Helena Simões, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997

  2. In T.S.Eliot, Selected Essays, London: Faber and Faber, 1980, pp. 126-140

  3. Idem, “Shakespeare and the Stoicism of Seneca”, in ibidem, pp.134-135

  4. Suponhamos que é esse o caso, uma vez que, para Eliot, não há um “Senecan Shakespeare”, mas sim um Shakespeare que faz uso de Séneca – se é que podemos dizer mesmo esse tanto.

  5. Fui alertado pelo Professor Doutor Miguel Tamen, a quem agradeço, para o facto de tal ser geralmente o caso com a obra de poetas alemães desta época como, por exemplo, Novalis.

  6. Paulo Quintela, Obras Completas II. Traduções I, org. Ludwig Scheidl, António Sousa Ribeiro, Carlos Guimarães e Maria Helena Simões, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997

  7. Tomo esta expressão da Professora Doutora Maria Leonor Xavier, em cujas aulas de Filosofia e Teologia na Idade Média tive o privilégio de ser aluno.

  8. Friedrich Hölderlin, in idem, ibidem, pp.356-360

  9. Refiro-me aos poemas de Hölderlin indicando o número da estrofe e o do verso. A tradução utilizada é sempre a de Paulo Quintela

  10. Id., ibid., pp.300-301.

  11. Contra esta ideia, no entanto, poder-se-ia argumentar que a paternidade não é exclusiva do Deus cristão, antes sendo até mais conspícua no caso de Zeus e de outros deuses pagãos, cujos inúmeros filhos legítimos e bastardos se encontram espalhados por toda uma paleta de histórias da antiguidade greco-romana – e não só – que Hölderlin conhecia muito bem.

  12. Id., ibid., p. 300.

  13. A versão utilizada é a da Nova Bíblia dos Capuchinhos para o Terceiro Milénio da Encarnação

  14. Friedrich Hölderlin in Paulo Quintela, ibid., pp.407-412.

  15. Que eu saiba.

  16. Surge uma complicação para esta teoria, para a qual não tenho solução, na última estrofe do poema, quando o deus Dioniso, ali apelidado de “o Sírio”, é designado Filho do Altíssimo, o que parece contradizer o que aqui afirmo, na medida em que pareceria que o “Altíssimo” é o “Pai Éter” e que, logo, como Dioniso é filho de Zeus na mitologia grega, o “Altíssimo” seria Zeus. Mas mesmo que o Pai Éter, o Deus supremo de Hölderlin, seja identificado com Zeus, isso não obsta a que tenha uma configuração mais próxima da do Deus cristão ou do Primeiro Motor de Aristóteles do que da configuração tradicional de Zeus.

  17. Apesar da dificuldade de saber o que se entende exactamente por essas palavras quando Hölderlin diz que o pão “está pela luz abençoado” (8.13) Haverá algum namoro com a noção de energeia, ou acção, divina? Se sim, isso tornaria o pão de Hölderlin mais parecido com as relíquias de santos para o catolicismo ou com os ícones sagrados na teologia ortodoxa moderna.

  18. Quando, em 8.6, se diz que Cristo “anunciou o fim do dia e desapareceu” não podemos ficar convencidos de que se trata de uma alusão ao fim do mundo e ao Dia do Juízo. É mais provável que essas palavras queiram dizer que Cristo veio no término do período áureo em que os deuses caminharam entre os mortais, como uma conclusão desse período, para deixar à Humanidade algo a que se apegar (a Eucaristia) na ausência dos deuses, como memorial dos mesmos. Mas mais sobre isto no que está para vir.

  19. Onde poderíamos ver uma alusão a algo equivalente ao Juízo Final seria nos versos 3-4 da estrofe número seis: “Nada a luz deve ver que não agrade aos excelsos, / Ante o Éter não vale nada tentado em vão.” Mas nem mesmo aí creio que se esteja a falar do Juízo, mas sim de algo muito mais pagão.

  20. O deus do vinho.